Três poemas de Mell Renault
Mell Renault é escritora e dramaturga. Mineira de Belo Horizonte, tem 34 anos, quatro filhos e é casada com o fotógrafo e escritor Carlos Figueiredo – que mantém e organiza sua obra artística.
Manteve, dos 15 aos 25 anos, o blogue Pensamento Polaroid – que deixou de ser blogue para se tornar um fanzine de incentivo à leitura. Pensamento Polaroid é hoje conhecido no Brasil e no exterior como o único fanzine literário no mundo com um trabalho completamente manual – desde a capa até os textos. Publicou em diversas revistas literárias: Diversos Afins, Alagunas e Mallarmargens, é também colaboradora da revista literária InComunidade (Portugal). Lançou em 2019, pela Editora Coralina, seu livro de poemas Patuá.
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Esse Amor, Essa Fúria
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
te espero
te recebo
te aceito.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
te concebo – homem –
te dou um nome
crio tua presença.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
te abraço
te anuncio
te inauguro.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
te sinto
– esse filamento –
sangue e sal
– esse bálsamo –
suor e lágrima.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
te tenho
uma coça
um estado volátil
quase despedaçado
abrindo outra margem
num outro amparo
de mãos peito pernas.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
te reconheço
parte
outra metade
contradição.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
te receio
no fogo flamejante
da libertação
dos tempos
na inflamação
dos dias
te acolho outro
renovado transmutado
transfigurado
sépia.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
nem a vida cismada
nem os abalos da morte
nada
te faz ausente.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
tu andas comigo
na flecha lançada
na espada cravada
no meio do redemoinho.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
mapas traçados
ordem despejo
tesouros escondidos
– a ver navios –
tudo isso não aflige
teu rosto
não te desfigura
cinza carbono chumbo.
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
caminharemos
aves répteis
sobre as mesmas águas
num mesmo patamar
sem ganhar
nem perder
galgando outro lugar
onde só o nosso amor é possível.
(…)
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
no ponto cego
no instante delirante
na hora morta
te vigio
te sigo
te louvo
ressuscitado
Porque
tu andas comigo
no vale da morte
no secreto paraíso
Porque
somos nós
essa cólera
essa danação
somos nós
esse feroz
que morde que sangra
somos nós
essa encarnação de amor.
(…)
Mesmo do outro lado da fronteira desse corpo
te amarro
te envolvo
te embolo
nos emaranhados
do meu ventre
para que teu secreto alimento
viva
tu e eu, meu amor,
anárquicos
caóticos
apaixonados.
Do áudio livro Esse Amor, Essa Fúria, Cine Book Editorial – 2020.
*
Sólido
Saber da pedra
sua inscrição
sua saliência.
Da pedra saber
sua ranhura
sua mística.
Saber da pedra
sua crueza,
sua concretude.
Da pedra saber
sua manifestação
rocha
moinho
lama.
Saber da pedra
destino
sua sina rupestre
marcando
o tempo
do caminho.
Do livro Patuá, Editora Coralina – 2019.
*
Anil
Sangue memoriado
de azul
concha
– dois olhos –
exoesqueleto
visão antiga.
Sangue memoriado
de azul
navegações
ilhas perdidas
praias desertas
dentro
do mais secreto
de mim.
Sangue memoriado
de azul
espelho d’água
sol e lua
estrelas do mar
no lugar de espadas
peixe.
sangue memoriado
de azul
tempo suspenso
proas
naus
silêncios a banhar o mundo.
Sangue memoriado
de azul
secreta cor
a nos formar
espinhos.
Do livro Flor de Sal.
(Foto/ Home: Carlos Figueiredo)
Nivaldete (NIVA) Ferreira
como um vento de finas rajadas, limpando restolhos da gasta linguagem dos dias (pífios)