Três poemas de Pilar Bu
Pilar Bu (1983) é leoa, sereia e mãe felina de 4 gatos, fundadora e ex-mediadora do clube Leia Mulheres Goiânia. Doutoranda em Teoria Literária pela Unicamp, é poeta publicada em diversas revistas eletrônicas, como Gueto, Mulheres que escrevem, Parênteses, Escritoras suicidas, entre outras. Participou das antologias literárias Maus escritores (Demônio Negro, 2009), Olhos do bilheteiro (2016), e seu primeiro livro de poemas, Ultraviolenta (2017) foi publicado pela Kotter Editorial. Fez parte também do coletivo Minaescriba e do grupo de escrita D’versos.
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gaia enfraquecida
divorciada do mundo
minha mãe demora
os olhos perdidos
repousam em 1983
quando desaguava rios vermelhos
por três meses
ao tentar me segurar
em seu útero
cheio de desejo e pesar
ela mora angustiada
no borrão da fotografia
nos óculos feitos sob medida
para desfocar
nas flores que se debatem
na jarra quase vazia
no bolor da caixa de charutos 50 índios
a cada passo a cada toque
seu corpo diminui
como se a alma pedisse um novo lugar
que coubesse ela
e aquela que a invadiu
estrangeira num mosaico de vozes
inaudíveis
é como o ponteiro que bate bate
mas já não sabe marcar
a máquina de escrever que engasga
e conta a mesma ladainha
inúmeras vezes
e eu também estrangeira
percorro com os dedos
seu rosto cheio de marcas
compartilho da melancolia
que lhe arremessa na escuridão
rumino sozinha o prazer
de suas manias
orbitando na permanência
de estar ao seu lado
minha mãe mora na demora
de habitar um mundo inabitável
em que a casca brilha
mas por dentro
a carne mole requer cuidados
*
poção
a avó de minha avó
amassava nas mãos
a erva antes
de jogar na panela
minha mãe compra
tudo pronto
e conserva em si
como guardiã
da memória
eu filha
leio a avó de minha avó
abraço minha mãe
e misturo as duas
no fundo da caneca
o cheiro de mato molhado
adocicado com mel
desce aos mortos
e inunda a cozinha
revelando uma sabedoria
outra
que se renova
existem funduras
que só curam
em altas temperaturas
útero quente
infusões de chá
a lua no fundo
da caneca é lança
revolução que atravessa
a filha a mãe a avó
estado de graça
graça profana
pérsefone arando corpos
transplantando sonhos
aguando sementes
resistentes e inquebráveis
*
tarântula
debaixo do véu se esconde
uma boca peluda
insaciável silenciosa
que aguarda ansiosa
o momento certo
para devorar
tortura interminável
pequenas porções de prazer
embaladas em teia viscosa
região inóspita
esse corpo abjeto
de fêmea
na caverna úmida
o homem se esgota
o mistério se levanta
mentiras são forjadas
a ferro
marcadas na pele
que convalesce
feito bicho
e nem bicho merece
tanto ódio
a caranguejeira sabe
que não é letal
o mundo a fez assim
arma e objeto
de repulsa
boca silenciosa
de devorar homens
de uma ponta a outra
da cabeça
ela desata intrigas
desfaz a trama
desanuvia a cegueira
é preciso tecer
tecer incansável
uma rede de afeto
e seguir sem medo
para construir
a caverna úmida
liberta e voraz
do próprio prazer