Três poemas de Renan Nuernberger
Renan Nuernberger nasceu em São Paulo, em 1986. Como poeta, publicou Mesmo poemas (Sebastião Grifo, 2010) e Luto (Patuá, 2017), ambos com apoio do ProAC. Como crítico, organizou antologias de Armando Freitas Filho (EdUERJ, 2011), para a coleção Ciranda da Poesia, e de Paulo Leminski (Prometeu Edicions, 2019), primeira publicação do poeta curitibano em catalão, traduzida por Josep Domènech Ponsatí. Em parceria com Viviana Bosi, organizou o volume de ensaios Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970 (Humanitas / Fapesp, 2018).
O poema “Sem título nº 2” integra o livro Luto; os demais poemas são inéditos.
***
Três arapucas
primeiro, um boulevard
arborizado, luz natural
do mês de maio no hemisfério
sul. o bronze envaidecido
da tarde, lembrança plena
de flores, bicicletas.
repousa a calma alegre,
mornamente, em
toda a substância
aqui sentida: ninguém
adivinha o apocalipse.
§
depois, a casa é carapaça.
o corpo adormecido
se imiscui, plasmado,
em seu próprio pão
vicário, mais bolor do que
fermento: cresce com seu
vulto, cresce neste ventre,
cresce flor na estufa,
cresce sem notícia, cresce
cosmococa: lá fora
nunca existe.
§
por fim, o espaço deserto,
sem fronteiras. tudo é
mineral novamente. do
quark à galáxia, a indiferença
cega das coisas em si
perfeitas – mas,
sob os blocos maciços do
planeta, que um dia
revolverão em magma, jaz,
por ora plácido, um fóssil:
não há sobreviventes.
*
Sem título nº 2
cessado o tempo, não haverá
mais tinta nos papéis.
os corpos
– mutilados
– , após os rituais,
nunca mais serão expostos
em inquéritos,
em programas de tevê.
os corpos
– para sempre
mutilados
– ,
no acúmulo dos séculos,
repousarão com
a secura de um caroço
que, sendo oco,
perdura
em sua latência de fruta
(açúcar, ácido, cárie);
não a imagem vida / fruta
– mutilada
(no poema) –
cujo sumo se esgota
num só gole, tosca,
mas o sinistro fruta / outra
senda na palavra
que, num só golpe, revele
o travo ardil de nossos
dias
ao negá-lo.
*
O mais cruel dos meses
de um azul quase físico, o céu
não desaba.
sem nuvens,
a pura cor sem pantone, mas também
sem matisse,
no fundo da paisagem
de edifícios
desalinhados.
piscina invertida, impossível
tocá-la,
na platitude (sem carência)
da manhã,
figura inodora,
ruído distante
de máquinas.
há flores nos parapeitos, há o vento frio
de outono, há tantas janelas
e o silêncio das gentes.
sorvendo a luz, sem mar sereno,
sorvendo a luz, sem sophia de mello,
apenas contemplo:
anteparo do infinito, o céu
só se dá aos olhos.