Três poemas de Renato Mazzini
Renato Mazzini (1981) nasceu, vive e escreve em Santa Fé do Sul, interior de SP. Trabalhou com rádio, escreveu crítica musical, foi professor de inglês. Publicou os livros de poemas Paisagem com dentes (Oficina Raquel, RJ. 2009), Aqui começa a Antártida (Patuá, SP. 2015) e História inconclusa de la velocidad (Zindo y Gafuri, Buenos Aires. 2016). Seu quarto livro, O último verão de nossos inimigos, será publicado em breve. Os poemas aqui apresentados fazem parte de outro livro, ainda sem título, em preparo.
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Prismas
Verto
com minha mão esquerda
café fresco na xícara
coado com minha mão esquerda,
a xícara tem pequenas sulcagens artesanais
feitas com muito esmero
pela mão esquerda de um artista de xícaras
levo a xícara à boca com a mão esquerda
o café está quente e o sorvo em três demorados goles;
repouso, com a mão esquerda
a xícara na pilha de louças sobre a pia
abro a torneira usando minha mão esquerda
e preencho a xícara com água pela metade
para dissuadir o plano das formigas.
Apanho o agasalho da cadeira com a mão esquerda
visto primeiro o braço esquerdo
depois o outro, então apanho o boné e os óculos
ambos na mesma mão, a esquerda,
filtro na mente algumas possibilidades de ocupação,
caminho até a porta algumas passadas
que são mais pesadas do que deveriam, minha mão esquerda
gira a maçaneta da porta com força moderada,
abre para dentro, piso (começar com o pé esquerdo)
o capacho do lado de fora, está um dia frio e emburrado
bom para caminhar, sigo o calçamento até a esquina
com três possibilidades de caminho,
ajeito os óculos, com uma das mãos
que você já deve supor
e tomo a rota da esquerda
a tentativa de preencher algumas lacunas do dia
com a melhor sorte possível de ocorrências.
O Demônio Destemido das Maratonas
Num instante, você é um detetive
particular comum, paletó marrom e
gravata desatada, barba de sete dias
e sapatos de pés diferentes, mas
parecidos, investigando o paradeiro
d’A Verdade pelas alamedas de uma
cidade bicromática, sem sono que
reponha suas forças, comendo
sanduíches que aludem ao vazio,
perguntando a estranhos sobre A
Verdade. “Da última vez que a viu,
o que ela vestia?”
Em seu instante preferido, você é O
Demônio Destemido das Maratonas,
um relâmpago vivo, músculos e
nervos retesados, correndo rápido
como notícias ruins, obstinado e
incansável, para alcançar A Verdade
e ultrapassá-la; o percurso é sinuoso,
mas suas pernas são máquinas
sobre-humanas e seus tênis
nunca desapontam.
No instante seguinte você é uma
fera grande, muscular, de pelugem
afiada e presas, garras, dentes
imensos, uma coisa só com a
noite, perseguindo A Verdade
pelos arbustos de uma floresta
escura, exalando vapor de hálito
ruidosamente, deixando uma trilha
de galhos quebrados, plantas
arruinadas; não foi possível fincar
seus olhos amarelos vitralizados n’A
Verdade nenhuma única vez: você a
persegue pelo cheiro.
Como ligeira visita
Meu avô retornou
momentaneamente da morte usando
uma capa de chuva e trazendo
consigo uma lanterna. Disse que
precisava dar um tempo do outro
lado e que queria me ensinar uma
lição. Puxei os cobertores da cintura
aos ombros, não por medo ou
fascínio, mas porque fazia frio. Meu
avô então discorreu rapidamente
sobre a alegria de mascar um
bom tabaco, falou de uma velha
vila submersa onde hoje funciona
uma banca de revistas e disse que
nunca há tempo suficiente em vida
para pagar o amor de uma mulher.
Uma tríplice lição, portanto. Após
se despedir, e antes de sumir numa
bolha de gás esverdeado, virou o
pescoço e me disse “só mais uma
coisa”. Retirou um lenço do bolso,
limpou a lanterna e os óculos e falou:
“se há algo que eu teria feito diferente
na vida, com toda certeza, seria ter
perguntado à pedra, e não ao menino,
se ela sabia quanto custava uma
vidraça”.