Três poemas de Roberta Gasparotto
Roberta Gasparotto é gaúcha de Passo Fundo, mas reside em Brasília desde os seus quatro anos de idade. Formou-se em Psicologia e trabalha com crianças e adolescentes vítimas de violência. É pós-graduada em Língua Portuguesa, com ênfase em produção textual, já intuindo, talvez, que seguiria no mundo da escrita. Em 2019 publicou mil mulheres cabem em mim, um romance autobibliográfico. Atualmente divide seu tempo entre trabalho, filhos e os escritos que publica nas redes sociais, como uma forma de partilhar seus anseios, angústias e questionamentos. Além de crônicas, poemas e contos sobre assuntos diversos, possui mais de duzentos e cinquenta poemas com nomes de mulheres e está sempre aberta para novas parcerias poéticas.
***
Surto
Ser inteira. Ou tentar
permanecer inteira
O mais que posso.
Acho que nunca tive
outra opção.
Nunca consegui me
fragmentar para deglutir melhor os meus pedaços. Para o bem e para o mal, minha natureza intensa não me permite tal desvio.
Não mesmo. Eles sempre
me vieram inteiros e passaram pela minha garganta rasgando-a, e por vezes, sufocando-a a ponto de eu achar que não iria agüentar. Mas eu agüento. Sempre agüento. Mais que aguento, eu aprendi a usufruir desse processo difícil. Tive que aprender a usufruir
para isso não me destruir.
Quase como uma criança
que aprende a gostar daquele remédio amargo, pois sabe que ao final do processo, o alívio se dará.
Pedaços grandes de
humanidade.
Pedaços grandes de
esperança.
Esperança de que
a cada vez que esse doloroso processo se dê em mim, eu expanda ainda mais a minha humanidade. Avance mais nesse esquisito e complicado negócio de vir a ser um ser humano.
Viajo achando que,
se no final de nossas vidas, fracassarmos nesse processo, voltaremos aqui nesse planetinha pra tentarmos aprender de novo. E de novo, e de novo, e tantas vezes quantas forem necessárias até que se dê o parto de nossa singular humanidade.
Gosto de pensar que
se eu chegar ao máximo de minha humanidade, daquela que me é singularmente possível, talvez e com sorte eu
passe de nível
e possa ter outras experiências quando meu corpo já estiver cansado e repousar. Ou, sem eufemismos, quando eu morrer.
Sim, tenho esse desejo.
Desejo de conhecer outras experiências, quiçá menos áridas e mais doces.
Como habitantes do
planeta Terra só digo uma coisa: somos todos uns fodidos.
Peço desculpas pelo
meu surto de amargura e sinceridade.
Têm dias e épocas
que são por demais difíceis de serem suportadas e recorrer à fantasia proporciona um escape momentâneo.
*
Pronome
Ela escrevia sobre as coisas que lhe doíam.
Ele registrava coisas sobre os acontecimentos que lhe aconteciam.
Ele não sabia distinguir o seu eu, do eu do outro.
Ela se perguntava se alguém, de fato, conseguia isso.
Ele respondia que, com certeza, ele não.
Ela.
Ele.
Nós.
Eles.
Eram muitos pronomes habitando em um só corpo.
Ela queria se apropriar de um nome – só ainda não sabia se masculino, feminino ou uma doce mistura entre os dois.
Ele queria ser livre, leve e solto.
Ela sabia que precisava de uma forma que lhe fosse própria.
Ele?
Bem, ele só queria viver de reforma em reforma, na intenção de nunca ter uma forma.
Ela queria o confronto com a realidade.
Ele queria o conforto da ilusão.
Da doce ilusão de ser completo.
Tudo nele, ela respeitava.
E não era por convicção.
Era simplesmente para não aniquilar a si própria.
*
Carne viva
Sinto-me em carne viva.
Dor.
Desamparo.
Desilusão.
Final de ciclo.
Conclusões.
Apenas conclusões.
Sem recomeços.
Por ora, sem recomeços.
Como é difícil e custoso ficar assim.
Ficar com isso.
E não há outro jeito, pois meus velhos e usados truques para fugir e me distrair já não me servem mais.
Já nem me distraem mais.
Tampouco posso devolver isso que estou sentindo a alguém.
Essa perdição é minha, somente minha.
E de mais ninguém.
Perder para achar-me.
Perder para encontrar-me.
E sabe lá quem, ou o quê, encontrarei do outro lado.
Viver sem garantias.
Viver.
Vi-ver.
Devolvendo somente a mim mesma o que vi.
Devolvendo a mim o que me pertence.
Sem ter a mínima ideia do que é.