Três poemas de Silvana Guimarães
Silvana Guimarães, escritora, nasceu em Beagá/MG. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi socióloga, especialista em transporte público. Participou de algumas coletâneas, entre elas, duas que organizou: 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), Dedo de Moça — Uma Antologia das Escritoras Suicidas (Terracota, 2009), Hiperconexões — Realidade Expandida Vol. 2 (Org. Luiz Bras, Patuá, 2014) e 1917-2017 — O Século sem Fim (Org. Marco Aqueiva, Patuá, 2017). Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do site Escritoras Suicidas. Publica seu primeiro livro de poesia em 2019. Se fizer sol.
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3 POEMAS COM SOLIDÃO DENTRO
bala de mel
… e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito.
eclesiastes 1:14
2476
112 quilos de botox, dezessete litros e meio de silicone,
16 dentes na vagina — ácidos hialurônico e retinoico,
hidroxiapatita de cálcio, polimetilmetacrilato, próteses,
transplantes, implantes: perdi a conta —, 439 anos depois
2458
seis títulos de miss universo(s)
linda jovem gostosa desejada
aos 444 anos ninguém me dá
mais do que delirantes 220
2425
dou mais do que mudo de roupa
2363
minhas tetas musicais fazem sucesso
no faceback: a qualquer apalpadela alheia
espalham seu som estereofônico por aí
enrubescem e fazem prostrar todas as galáxias
a preferência comum entre os machos:
la cumparsita em ritmo acelerado
2365
cortaram a última árvore da terra
mataram o último voo do pássaro
amordaçaram a última lira
e não há nada de novo sob o sol
o sol o sol: acabou-se a mágica
2366
os vínculos telepáticos
destruíram por fim a linguagem
ninguém precisa mais da palavra
menos eu, que invento uma
e sofro dela: so-li-du-me
2040
nostalgia de auroras bem-te-vis arco-íris
as montanhas da minha cidade
pão de queijo arroz com pequi
aquele vestido de veludo grená
sentir a alegria de minha avó canhota quando
tocava bandolim ou recebia uma carta
2038
meu sangue pela beleza eterna
dois faróis amarelos esverdinhando-se
a febre nos olhos de açude
— é assim que ele goza —
em troca, fui condenada à vida
2037
não reparei nos dentes caninos
nem nas faíscas que seus olhares
jorravam sobre a minha jugular
só nos sussurros roucos [quando
gemer ainda era permitido]
2477
nunca
nunca mesmo
aceite doces de uma
pessoa estranha
*
kozmic blues
quem é você agora? onde vive?
distante daqui? quantos anos tem?
livrou-se da sina da palavra?
qual é o seu signo?
oh but keep movin’ on, chérie
the show must go on
já tem outro amor? é cedo
eu sei: eu sei?
tomara que seja divertido
foi injusto você ir embora e
me deixar enlouquecer sozinha
e me deixar entardiar
já experimentou gritar em silêncio?
já tentou rasgar a pele com as mãos?
aprendeu a flexionar o verbo desalento?
trancar os dentes e não vomitar o coração?
ainda durmo com as janelas abertas
dobrada sobre o meu lado esquerdo
um pé sempre descoberto apesar dos
fantasmas e aranhas
os motoristas uber ainda me perguntam:
tem balinha, água gelada, aceita?
o ar condicionado está bom?
eu sempre escolho o vento
nossa música toca ainda no youtube
os dias têm sido acesos & azuis
mas prefiro quando chove e me encolho:
um atalho para a dor
sempre pago boletos com atraso ainda
sofro com os juros as juras, monamu
e continuo a ler dicionários bulas:
correndo atrás do sentido
ainda trabalho por hobby, vivo de robe
quando o tempo sobra escrevo
poemas longos e confessionais:
lamuriosos como este
ontem encontrei no google maps
aquela janela de onde você disse
que via a esperança e me sorria:
estava fechada
*
esta tarde vi llover
sonhar a portas fechadas
perambular por um corpo imaginário
sem deixar vestígios
assustar-se com a própria sombra
no escuro
chorar no escuro
morrer de medo do único rosto
no espelho
polir o espelho
acordar os pássaros
antecipar a aurora
sofrer da mesma vida
as gramáticas explicam
[mas não convencem]
por que a solidão é
um substantivo abstrato