Três poemas de Tomaz Amorim Izabel
Tomaz Amorim Izabel, 30, é poeta, tradutor e crítico literário. Nascido e criado em Poá, na periferia da grande São Paulo, estudou literatura na Unicamp e na USP. Traduziu para o português obras de Franz Kafka e Walt Whitman. Lançou seu primeiro livro de poesia, Plástico pluma, publicado pela Editora Urutau em agosto de 2018.
***
à rosa
um brilho forte, uma luz clara
uma manhã branca de inverno
me equilibro desajeitado sobre minhas pernas gordas
inclino o peito para frente e elas seguem
direita e esquerda, uma depois da outra, rápidas para que eu não caia
se quero parar, estico de súbito as costas com cuidado para não virar para trás
nessas curtas corridas, sinto meu peito frio
a baba empapando a blusa de lã se resfria com o vento
incontrolável
sob cuidado permanente
a confiança de que tudo vai ficar bem
sempre tempestuoso, ágil
mas esperto
o espaço destinado ao jardim
que ainda não se concretizou
um cercadinho de blocos vermelhos não rebocados
uma terra marrom talvez autóctone
talvez resto da construção recente da nossa casa
provavelmente mistura dos dois
não cresce ainda a roseira que nos presentearia todo ano, minha mãe
não cresce o pé de café (que nunca colhemos, torramos e bebemos), meu pai
não cresce a palmeira de três corpos siameses, cada uma um herdeiro, minhas irmãs e eu
não sei se a tartaruga já estava lá
vivendo autônoma do próprio jardim
nunca tivemos tempo de dar um nome a ela
(embora tartaruga mesmo seja um nome, e bastante legítimo)
neste pré-jardim, eu, desatento das dores do mundo
tomando você como seu suporte
toda poderosa, benevolente, justa – imortal
que criança pensa em mortalidade?
nenhuma, nem eu, pelo menos até a morte do simba
um pão com manteiga onipresente
um café com leite que hoje já não tomo
um silêncio, uma melancolia transmitida geneticamente
e pelo tipo de sorriso, de olhar
uma cor: cor de rosa
e azul
uma vivência em si, sem função, para ninguém
na verdade, para nós
meu corpo explodindo de energia, gana, curiosidade
em oposição àquela calma
incompreendida então mas aceita
hoje procurada, rara
há algo nesta cena que não é movimento
não é filme, nem mesmo fragmento
nem mesmo um curta-metragem
mas não é também fotografia, mesmo que em longa exposição
não é pintura, mesmo que expressionista
é algo que talvez se move um pouco, sim
para quase em seguida reiniciar
um balanço vagaroso de vagas numa lagoa
um pequeno movimento repetido à exaustão
algo que depois que eu também for
em algum lugar, algum bolsão-ternura do universo
se manterá, em repetição, sem envelhecer
ao contrário da rosa
como a até agora eterna tartaruga
esse tai-chi em gif
ficará e fica em um lugar
em um recife denso
logo após os limites
da ilha-tempo
*
riacho
rodamoinho de vento
arquitetado por borboletas
hálito de césio dos infantes divinos
plataformas móveis, desmontáveis
as rugas no rosto, os hexágonos nos cascos da tartaruga
ondas desligadas, fotografadas em preto e branco
nas digitais dos dedos que se estralam
e coçam um palito de fósforos se
incendeia quando nós não éramos ainda esta
ou nem seremos mais embora eu tenha sido
embora dentro do cartucho haja poeira
e personagens cicatrizados em circuito verde
a infância nunca foi
a infância não está no futuro
basta de evaporação e chuva
basta de secura
uma pata de dinossauro na argila
uma mão de menina na massinha
um bambolê de vapor de gelo
um um que seja inteiro mas indeterminado
rascunhos em folhas velhas, rascunhos sempre refeitos
rascunhos aliás que não se repetem
tentativa de esboçar algo em fuga viva
a fisionomia das pequenas quedas num riacho
um rosto mais amplo que o humano está lá
e não sorri ou abraça
mas diz algo
algo que se escuta.
*
joana
suspiro.
vapor de leite antes da nata,
cacau torrado, licor de alcaçuz.
pode um homem
amar uma mulher
sem machucá-la?
isso é história de girino.
mas sérião, reverenda, reveja:
nossa joana tem cachos no ombro direito
e cabelo raspado do lado esquerdo.
arregaça os joelhos nos muros,
tem sangue seco lá, veja,
mas ela tira de letra
e gospe nas carecas dos velhos.
desde que ela pintou o céu de verde
pela primeira vez
eu fui entendendo a monotonia
das categorias, do monóculo, do monastério
(fui relembrando dos mistérios).
montanha, montaria, monstro
moinho, moedor, moleira,
mas
há muito mais, joana mostra,
que seis ou sete cores
infiltradas na garoa.
pode um homem
amar uma mulher
sem machucá-la?
mas josué,
suspenda o sol por um momento,
mc, um beatbox, na gentileza.
pode alguém amar alguém?
está permitido amar a si mesmo,
com cuidado, sem medo?
homem amar mulher?
pode, sim senhor, mas por quanto tempo?
vixe, joana acha esses papos brega,
ela gargalha excitada com a cigarra
que zune com a força inteira da alma
e depois se rasga.
joana tem uns carinhos e uns dentes quebrados.
uns lacinhos de cetim, uns sapatinhos desbotados
e calça jeans rasgada.
joana sabe dos perigos,
mas para surpresa geral confa.
joana é jovem e sabe que envelhecerá
(ela ansia secretamente pelos grisalhos,
companheiros mais duradouros).
mas como eu te apresento lá em casa,
gato? noivo? crush?
pode ser assim:
esse aqui é minha joana.