Três poemas de Zé Mariano
Zé Mariano é pesquisador e professor. Nasceu em São Paulo e cresceu em Embu das Artes. Formado em Letras, pela Universidade de São Paulo, é mestrando na área de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa, pela mesma faculdade, lidando com temas como literatura afro-brasileira, literatura e identidades e construção social da masculinidade. Atua como educador no cursinho popular Florestan Fernandes, além de realizar formações presenciais para professores em torno de temas como literatura, educação e relações étnico-raciais.
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Processo de criação e nascimento
Do papel claro
vem o molhar,
o sumo do respirar,
vem o último caldo
que matará minha sede.
Vem a vigília retraída,
escondida pela sombra
lembrando que do seu dia
de glória (chegarás?)
surgirá o punhal de seu
aniquilamento.
As palavras se engavetam,
deslizam em pilhas úmidas
de ideias e corpos empilhados.
O tremor me invade o peito
Quantos tentaram antes de mim?
Não se esqueça de sua avó
mutilada em um canto escuro
prenha do anticristo que traria
a desgraça pelo mundo.
[As rimas não rimam como
rimavam suas naus
como rimavam os veleiros
como rimam esses cativeiros]
Estou na mesa do meu quarto,
sonâmbulo,
em busca de um exemplo qualquer
que me explique.
Que explique tudo isto.
A avó (minha?) abortou
e de seu ventre úmido surge
uma mistura gosmenta.
Não sabiam se era leite.
Não sabiam se era barro.
*
Poema do nascimento
Conheci ventos que levavam a
a sede de mar, vermelho,
como vinho, negro como sangue.
E dos mesmos ventos foram levados
a brisa do oceano, do azul mais
claro como água, do branco mais fino
como areia.
E dos ventos, perdidos pelos ares,
não reconheço nenhum cheiro.
E da areia fina, o vento
faz-se sentir branco novamente.
E do vinho amargo sangra
um suor escuro como sangue.
No trajar dos ventos,
rezei a Deus que soltasse os braços,
deixasse cair,
para que eu nascesse novamente.
*
Uma vez me perguntei
Uma vez me perguntei:
Quem habita este corpo?
A terra foi revolvida,
colocada para plantar.
Terra batida, soltinha que
escapa pelas frestas dos dedos.
Olhe o sorriso daquele moço,
As linhas tortas de seu rosto.
Os flagelos que carrega.
E pergunte a si:
quem habita este corpo?
Atente-se ao menino ao lançar a pedra.
O tempo que se encerra na jogada
e na chegada.
E pergunte a um, a dois, a quantos desejar
quem habita este corpo?
Das garrafas vazias e latas amassadas
Do pão comido pelo rato
Do capim ingerido pelos bois
Do chocalho arrancado da tua criança.
Do choro da lágrima de tua mãe.
Da bala alojada em seu busto
Da corrente presa em tuas pernas.
Da tua cegueira.
Imposta e voluntária.
Pergunto uma última vez:
Quem habita este corpo.