Três poemas e um conto de Susan Cruz
Susan Cruz é uma escritora e jornalista paranaense. Curitibana, mas vive em Londrina. Atuou como correspondente do Portal Terra de notícias por mais de dez anos, além de trabalhos em outros veículos de comunicação. Autora do romance gótico de horror, Post mortem (2016), disponível em ebook na Amazon. Participa da antologia King, Poe, Lovecraft: do terror ao horror, organizada pela escritora Rô Mierling, com o conto “Tique-Taque” (Editora Illuminare, 2018). É contista, romancista e poetisa do horror. Blog https://susancruz.wordpress.com<https://susancruz.wordpress.com/>.
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Canção Póstuma
Tudo que eu sei é que eu ainda estou aqui.
Meus ossos enterrados junto às raízes profundas do patriarcado.
Uma tumba onde sussurro através da umidade que escorre pelas paredes.
Alimento do solo fértil, meu túmulo.
Tudo que eu sei é que meu corpo não é mais meu.
Não existo em mim mesma, sou preâmbulo da essência.
Alimento do solo fértil, meu túmulo.
Tudo que eu sei é que confinaram nossas almas.
Comeram nossas vidas, os corpos mutilados, a carne apodrecida.
Alimento do solo fértil, nosso túmulo.
Tudo que eu sei é que ao longe as escuto, milhares se levantaram.
Desprendo-me do meu túmulo, solo fértil, nutrida.
Minhas palavras sussurradas voam com o vento, enquanto encorpam os gritos externados que delas escuto: Ele não, ele nunca!
*
Meia-Noite
Nas profundezas do abismo negro,
Entre vapores oriundos do medo,
Onde o mal infecta os corações,
Adormecidas criaturas despertam.
Fundidas entre realidade e sonho,
Roubam os gritos sufocados sem ar.
O toque sutil na sua face paralisada,
Na sepultura silenciosa te observa,
Horrível e pálida criatura angustiada.
Farta, para o olho entreaberto revela-se,
Entidade maligna que na mente fecundaste.
*
Convite Sinérgico
Existe em mim uma coleção no campo eletromagnético incompatível com a minha natureza.
Alguma coisa em nível de memória que adquiri no ambiente, mas também uma presença extrafísica.
Impressa agora em mim, no campo áurico, fonte de meu desequilíbrio.
Somatizando no meu corpo e acidentando o percurso da minha mente.
Gradualmente eu não sou mais eu,
Harmonizando com essa interferência sensorial.
Não é que o mal tenha me subjugado, é que ele fez morada nesse novo padrão vibracional.
Mácula na crócea que carrego e deixo por onde passo.
Distorcida mental e espiritualmente pelos que habitaram esse espaço
E imprimem eras porque não se limitam no tempo
Ainda que me desvencilhe, quando saem, suas energias ficam registradas nas mobílias e paredes.
Não os sinto vagando, mas tenho os pensamentos impregnados.
E meu pior pesadelo sou eu.
*
누나
Noona
O menino Kwang-jo acorda com o barulho de passos apressados, pela luz que escapa debaixo da porta ele consegue ver a sombra dos pés cruzando o largo corredor. Assustado tenta acordar a irmã que dorme ao lado. Os dois estão em uma caminha improvisada no depósito de materiais de limpeza de Chung-il, uma escola onde a irmã mais velha está substituindo a mãe na limpeza.
— Sook-ja acorda. Tem alguém no corredor — Ele sussurrou.
— Não ouço nada — Respondeu esfregando os olhos sonolenta.
Agora os passos cessam, Kwang-jo consegue ver o reflexo deles pelo vão da porta. Ele aproxima o rosto da fresta para tentar enxergar mais alguma coisa. Quando duas mãozinhas pequenas parecem raspar a porta como se estivessem cavando o piso. O movimento produz um barulho incessante das unhas raspando o assoalho de madeira. As crianças se espremem no canto do cubículo. A menina assustada derruba uma pilha de baldes da prateleira e o barulho faz com que os dois soltem um grito estridente. A sombra recua e Kwang-jo observa o corredor pela fechadura e não vê mais nada.
Abraçados os dois voltam a dormir em silêncio. Até que o garoto acorda apertado com vontade de fazer xixi. Ele se desvencilha do corpinho da irmã que o entrelaça com cuidado, mas ela acorda.
— Kwang-jo aonde vai? Não me deixa aqui sozinha, por favor — a irmã diz com uma voz fininha e segura com força seu braço.
— Eu preciso ir ao banheiro, enrola a coberta na cabeça até eu voltar.
Com medo Sook-ja cobre dos pés à cabeça. Deixando apenas uma frestinha do cobertor para respirar.
O corredor largo com janelas grandes do lado esquerdo reflete a luz fraca que vem da rua. O terceiro andar do grande prédio tem dois banheiros no final do corredor. Ele escolhe entrar no que está com a porta aberta. Quando acende a luz a porta se fecha lentamente.
Nesse mesmo instante, Sook-ja grita esganiçada — Noona!
A irmã mais velha corre junto com outra faxineira do mesmo turno. A menina está quase sufocada com a coberta envolta do pescoço. E chorando diz que ouviu um grunhido metálico vindo do banheiro onde o irmãozinho foi. Com a irmã no colo Noona corre até o banheiro e encontra Kwang-jo sem roupa, com uma poça de xixi ao redor e marcas de mãozinhas úmidas por todo o banheiro.
— Kwang-jo o que aconteceu? Onde está sua roupa? — ela pergunta chacoalhando a criança.
Ele não responde.
Noona tira o suéter e veste no menino. As mãozinhas dele estão escuras nas extremidades, com pequenas veias que começam a partir das unhas. A amiga traz os produtos para limparem o banheiro enquanto as crianças esperam enroladas no cobertor.
— Noona quero ir para casa — diz um deles.
Os três seguem para Guryong Village, onde foram relocados no início das construções para os jogos olímpicos, o ano é 1988. Guryong é um lugar de condições precárias, um contraste com a paisagem da Seoul que aparece na televisão. Um lugar improvisado com moradias minúsculas e ruelas espremidas com fios de luz puxados e espaços entrecortados ao lado de um dos distritos mais famosos e ricos do país, Gangnam.
Os três dividem a mesma cama, os gêmeos dormem no canto entrelaçados e Noona do outro lado de frente para a janela, de longe ela a vê o luminoso com o logotipo escolhido para os jogos, samtaeguk, um símbolo de três cores que remete à busca humana pela felicidade. Seus olhos fecham cansados enquanto lembra da cena horrível do irmão no meio do banheiro sozinho. A fitinha cassette toca Deulgukhwa, o hit, Dont Worry, My Dear no Samsumg Mymy verdinho que sua mãe achou esquecido em um vestiário. Como tantas outras coisas que ela tinha, que eles tinham. Uma montoeira de coisas que as pessoas esquecem. A mãe está trabalhando em Busan cidade que sedia os torneios de Vela.
Torcia para que a mãe encontrasse dois tigrinhos, mascotes dos jogos para os gêmeos. Desde que vivem a loucura dos jogos pelas ruas, eles pedem. Nunca pediram nada, mas o Hodori, tornou-se uma necessidade. Como se eles não pudessem ser como as outras crianças se não tivessem a pelúcia.
Na manhã seguinte não conseguia manter os olhos abertos na aula. Debruçada na carteira Noona dorme. Ela está no banheiro úmido da escola onde vê Kwang-jo sem roupa, o cheiro forte de urina arde o seu nariz. Ela olha ao redor tentando entender o que aconteceu ali. Quando uma porta do sanitário se abre lentamente, revelando uma figura pequena, da altura de uma criança. Com medo ela sai do prédio da escola. Agora ela vê a construção na perspectiva de uma pessoa gigante. E espia pela janela como se assistisse tudo acontecer em uma casa pequena de bonecas.
Ela sabe que está sonhando, mas sabe que é a sua chance de conseguir entender o que aconteceu com o irmãozinho. De repente tudo fica escuro e Noona deseja com toda força ver o que está acontecendo, mas quando a claridade atravessa a pequena janela tudo que ela vê é a pequena figura tétrica segurar as mãozinhas do irmão que começa a fazer xixi. Ele tenta se soltar, mas a figura revela traços fortes. Quando ele tenta escapar é puxado novamente e assim suas roupas são rasgadas. As marcas das mãozinhas ficam por todo o banheiro. Exausto, ele cede e a figura parece incorporar-se a ele através das mãos, como se criasse raízes que começam a se formar através das pontinhas dos dedos, entrando por debaixo das unhas. Horrorizada, Noona solta um grito externado que ecoa pelo banheiro.
A figura solta as mãos da criança e assume uma forma grande. Conforme ela cresce, seus traços ficam mais definidos e avermelhados, acentuando um tom lustroso a pele que não possui nenhum pelo. A cabeça ossuda revela olhos cor de âmbar e dentes amarelados e bem alinhados. Ela articula-se como um humano, mas em nada se parece com um homem, senão um monstro. Ele agora coloca a face na janela onde Noona o observa e com a respiração embargada e halitosa diz com uma voz metálica:
— Aí está você. Veio atrás de mim.
— Não! Eu vim pelo irmão — respondeu consternada.
Ele apenas solta uma risada abafada entre dentes, revelando duas covinhas bem marcadas no rosto rubro.
— Ele é apenas uma criança. Por favor não o machuque — ela pede já com lágrimas nos olhos.
— Você se sacrificaria por ele? — pergunta com escárnio.
— Eu daria a minha vida para salvá-lo se fosse preciso — disse suplicando.
— Mas você já dá sua vida a eles todos os dias, isso eu não quero. Enquanto vê com desgosto o mundo passar a sua volta sem saber vivê-lo. Sem tempo para descobrir quem seria você dentro dele. Todas as coisas com que você sonha enquanto observa da janela o círculo de cores projetadas ao longe que alimentam a sua mente. A sua melancólica existência é fragilizada demais para a morte, eu quero você viva.
— Deixe-nos em paz — ela diz.
— A paz é algo muito pessoal, não cabe a mim — ele rebate rindo com a respiração ofegante.
— Não pode tomar a vida de um ser inocente — disse chorando.
— Se você me fizer um convite à vida, eu o deixarei, do contrário porque a vida dele vale mais que à sua — disse olhando-a nos olhos.
— Não! — gritou, enquanto os colegas tentavam acordá-la, a classe toda em volta da sua carteira.
A diretora a dispensa e recomenda que vá para casa com os gêmeos. Para descansar antes do turno da noite na escola. Não conseguiram contatar a mãe em Busan. E isso é motivo para falatório na escola. Noona sabe que a mãe estaria ali se pudesse. É nisso que ela pensa durante o caminho para casa. Coloca as crianças no banho e prepara algo para comerem. O irmãozinho já está com a palma da mão cheia de veios salientes e escuros. Ela os arruma e coloca luvas em suas mãos.
Enquanto comem, ela assiste pela televisão a euforia dos jogos. Seu país revelava pela primeira vez um viés democrático, um estádio com capacidade para abrigar cem mil torcedores, um lugar onde tudo parecia ser possível. Um lugar que parece se desprender de conflitos. Onde se buscava acima de tudo viver intensamente, ainda que através de quadras, piscinas e pistas de Seoul. A trégua olímpica das grandes potencias fomentava em Noona um desejo de sobrepujar as mazelas de sua vida. Queria participar daquilo, queria ver de perto americanos e soviéticos se enfrentarem por medalhas. Desde de 1976 isso não acontecia e seu país sediava esse confronto.
Sook-ja chacoalha o seu braço avisando que o irmão está ensopado. Todas as colheradas que ele deu foram para fora da boca e seu corpinho está cheio de manchas vermelhas do caldo quente.
— Noona você não gosta mais de mim? Ele pergunta.
— Nunca diga isso, nunca pense isso. Eu apenas estou com a cabeça longe.
Quando chega a hora de irem para a escola Noona diz para não saírem do quartinho. Temia pisar em Chung-il, mas estava disposta a enfrentar seu pesadelo. Acomoda os pequenos na caminha feita no chão. E começa a limpeza de sala por sala cruzando o imenso corredor. Ela e a amiga dividiram-se para que a limpeza fosse mais rápida e pudessem ir embora mais cedo. Prestes a terminar o terceiro andar Noona escuta a voz metálica dizer “Chegou a hora”.
Temendo o pior corre até o quartinho, mas os irmãos não estão na caminha. E a porta que dá acesso a cobertura está aberta. Sobe as escadas quase sem fôlego e se depara com as crianças de mãos dadas e com as pernas entrelaças como costumam dormir perto da beirada. Ela os chama, eles não respondem.
Se aproxima dos dois, Kwang-jo parece inerte, as veias escuras agora já subiram pelo braço. Sook-ja está enrolada na cobertinha, mas acordada ela diz:
— Eu vou junto porque ele tem medo de ir sozinho.
Noona chora abraçando os pequenos.
— Não! Eu o convido! Tome a minha vida, mas deixe-o — ela disse soluçando.
Kwang-jo segura os braços firmes de Noona, a dor começa na pontinha da unha e vai irradiando por todo o corpo. Tão forte que a bexiga de Noona arde e ela não consegue controlar a dor que abraça as suas costas. Ela não consegue mover um músculo, mas sente a urina quente escorrer pelas pernas. Não consegue dizer uma palavra, enquanto observa desprender-se do irmão a figura avermelhada de olhos âmbar que a fita como se pudesse ler a sua mente. Assim que ela a preenche solta as mãos do pequeno e antes que pudesse dizer qualquer coisa age rapidamente. Salta o prédio de três andares. E escuta o grito externado dos gêmeos.
Quando os olhos abrem novamente, sente o corpo pesado como pedra, a tentativa de mover um mísero músculo causa lhe uma dor aguda. Não consegue articular nenhum som. Com o canto do olho enxerga Kwang-jo ao lado da cama segurando o tigrinho. A irmã está no colo da mãe em uma poltrona no canto do quarto dormindo. Sua mente esboça um sorriso ao ver o pequeno segurando Hodori.
— Noona — ele diz.
Ela tenta balbuciar uma palavra, mas o colete cervical a deixa incapacitada, as cordas vocais parecem soltas dentro do seu pescoço.
— Noona, é você Noona? — ele pergunta agoniado
Ela levanta um dedo devagar, já com as veias escuras saltadas descendo pelas mãos, e faz um sinal negativo. Ele se aproxima da irmã e pergunta novamente:
— Noona?
— Não — ela diz com a voz embargada e metalizada.