Três poemas e um conto – Por Joe Sales
Joe Sales [Rondonópolis/Mato Grosso, 1991]. Poeta, professor de Língua Portuguesa e mestre em Estudos de Linguagem. Publicou cinco livros de poemas pela Editora Penalux: Porta Estreita (2014), Ao passo das horas e outro descabimentos (2015), Criticepopular (2015), Largo do amanhecer (2017) e Pelas luas: a mesma encruza (2019). Possui participações em várias antologias nacionais. Atualmente, desenvolve o projeto “leituras clandestinas” em que vozes convidadas dão vida aos contos do livro Clandestinamente. Ele também é o novo colunista da Ruído Manifesto e esta é sua estreia. Muitíssimo bem vindo, Joe!
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1
Se te diz a falha
Muito de mim
Olha no espelho e
procura com desvelo o
mal que também te faz
sorrir
Não serei aquele que
recebe o empenho de teu
amor, mas também não
serei cúmplice de teu
desespero.
Olha no espelho e
perceba o vazio que te
seduz à ruína de tua
carne.
5
O silêncio atravessa
minha alma.
De maneira grave, ainda
pela manhã,
ergo minha palavra na
ânsia de dar a alguém
o roteiro de meu silêncio.
Desejo compor com
empenho um pedaço de
Sol.
Tento, mesmo em gravidade,
alcançar o agudo em tua boca,
a palavra dor
que me escapa
quando meu Anjo se
aparta de mim.
11
Se te diz o silêncio
a distância de meu passo
imagina no firmamento
outro espaço para tua dor.
Se o espanto tem sido
minha única prece
apetece tua tristeza com a luz
que promana de meu olhar.
Elabora em tuas palavras
outro canto, pois
o efêmero não termina
sua mensagem e a vida
tem sido uma dura paisagem.
Madalena
Madalena era uma mulher difícil. Difícil porque tinha quatro bocas para alimentar – sendo uma delas a do marido. Difícil porque se sentia infeliz e não era capaz de verbalizar sua agonia. Difícil por não ser capaz de aceitar a inveja que nutria pela melhor amiga, Carolina.
Carolina não precisava trabalhar. O marido dava-lhe de tudo. Sua maior infelicidade era não ter tempo para todos os hobbies que o dinheiro do esposo poderia lhe oferecer; além das viagens, do carro, das roupas e das joias.
Cresceram juntas. Separadas por uma esquina. Madalena, de família simples, desde cedo teve que trabalhar para ajudar a mãe a criar suas duas irmãs. Carolina, de família mais inclinada à boa sorte, manteve a sua infância em paz e depois teve uma adolescência feliz: a mais bonita e inteligente da escola. Fez curso superior, no entanto, conheceu Celso, empresário sucedido, que a pediu em casamento.
Madalena foi a última a ser beijada. Conheceu João Henrique num terreiro de umbanda. Ficou encantada por ele, fez simpatia, falou com a Pombogira e a bastante custo conseguiu juntar as poucas coisas que possuíam. O primeiro filho veio rápido. Seguido de outro e mais outro. E uma menina que não chegou a vencer.
Carolina matinha contato com a outra. Sentia-se tocada pelo sofrimento da amiga. Ofereceu-lhe um emprego como doméstica. Em sua cabeça, não poderia ofendê-la dando apenas dinheiro ou cestas básicas, era preciso manter a dignidade. E a amizade tinha este poder.
Madalena era muito grata. Se não fosse o serviço. Se não fosse a amizade verdadeira de Carolina. Não saberia o que fazer para cuidar dos filhos. O marido vivia desempregado e bebia todos os dias. Não era capaz de dizer palavras bonitas sóbrio. Apenas a pinga conseguia ungir seu peito e aí ele soltava a voz agradecendo aos santos pelo presente que se chamava Madalena.
A vida dessa mulher era um obstáculo. Era difícil também porque depois da perda de sua filha tentou suicídio. Preparou a corda. Escreveu uma carta em que pedia para que Carolina pudesse criar seus filhos, já que não conseguia ser mãe e João Henrique não teria condições para fazê-lo. Porém, o mais novo despertou inesperadamente e, chorando, pediu-lhe colo. Madalena desistiu do plano. E rezou. Rezou e reza até hoje arrependida de seu gesto egoísta.
Ninguém nunca soube disso.
Carolina fazia planos para a adoção. O marido não queria ser pai, mas fazia de tudo para agradá-la. Madalena faltou ao serviço justo no dia em que sua amiga iria. E não avisou. Ela saiu de casa no mesmo horário e decidiu seguir o trajeto do ônibus até o fim. Pela primeira vez conseguiu um assento. Sentiu-se aliviada. Como se fosse um sinal, um presságio de que algo poderia mudar. Quem sabe sua sorte?
No final da linha, restavam apenas ela, o motorista e duas senhoras e um rapaz de aparentemente dezessete anos. Ela olhou surpresa. Nunca tinha ido tão longe na vida. O bairro Ipiranga era mesmo um paraíso. Sorte tinha Carolina. Sorte não era para qualquer um – ela em silêncio repetia. Lembrou-se de sua mãe. Da última vez dela. Fora uma morte rápida, mas cruel. Este sentimento a tomou por instantes, como se a beleza nunca permitida estivesse a cortando de maneira lenta. Era difícil não ter inveja. Não sentir dor. Mesmo estando parada dentro do ônibus sujo e velho. Mesmo ali, ela podia sentir como a vida era cruel. Como a vida era difícil. Difícil porque aceitar o que dói por dentro é pior do que aceitar o que nos machuca na superfície.
E chorou. Pela primeira vez, Madalena permitiu-se o pranto.