Três poemas e uma crônica de Naia Veneranda
Naia Veneranda é paulistana da década de 70. “Tenho formação na área de Humanas e atualmente curso mestrado em Estudos da Tradução e trabalho com Comunicação Digital. Minha produção literária é bem modesta e começa a colocar a carinha pra fora agora. Sou mais da prosa, mas, às vezes, uns poemas querem ver a rua e eu deixo a porta aberta.”
O poema “Colagem sob o luar” é uma colagem de versos de música que falam sobre o tema, feito como exercício do curso “Escrita Não Original” da Casa das Rosas.
*
Hera de fogo
E quando eu acordei
A boca amargava
A barriga grunhia
O estômago queimava
Minhas entranhas chamavam-se dragão
E cuspiam fogo
E soltavam labaredas e faziam barulhos leste-europeus
A noite tinha sido vazia
Fria,
Deixei ir pela fresta,
O que eu seria luz ao receber.
Mas não fui.
Fui fogo, fui cobra, lagarto e dragão.
Queria queimar os espelhos,
Ignorar o que não sabia
Por fora queimava
Por dentro, doía
Pensei que fosse luz
Mas era só fogo entranhado
Hera de fogo
Bicho de sete cabeças, faminto, desperto
De perto era eu
De mais perto ainda era seu
Desibernado
Pensava que era luz, mas se houve luz
Num átimo, o fogo comeu.
*
Gérbera
“Li um poema teu
Intrusa
Desejei que fosses meu
E eu, teu texto.
Inspirei viço
Degustei palavras-gêmeas
Pulsou-me uma sintaxe desconhecida
E suspirei;
Adormeci semântica, no intervalo
Entre o desejo de amor
E a manhã
Muda
De quem, profusa,
Acordou e brotou flor.”
*
Colagem sob o luar
Olha pro céu, meu amor!
As luzes da cidade acesas
Olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando
– Ó luar tão cândido… Aonde está você? Me telefona! Me chama!
– Você passa e não me olha, mas eu olho pra você!
Nós que passamos apressados pelas ruas da cidade
As luzes da cidade acesas
Do luar? Do luar não tem mais nada o dizer
A não ser, que a gente precisa ver o luar.
*
Os desvios
É raro se sentir sozinha andando pelas ruas dessa cidade tão grande. A rua acolhe. Há lugar para todos, para todos os movimentos.
Não sei dizer se é a cada dia mais fácil ou mais difícil se desviar dos quase-corpos que se espalham pelas calçadas. Aqui tem um casal dormindo abraçado. A gente desvia. Atravessa a rua, alguém com seu cachorro querendo alimento para sabe-se lá qual dos dois. A gente desvia também.
Outro dia, caído à minha esquerda estava um homem, com aquelas ostomias à mostra. Não soube com o que me preocupar. O que ele fazia ali? Será que estava com dor? Será que pedia ajuda ou estava apenas desalentado? O desalento é cruel, nos faz cair, derruba nosso olhar. Mas, eu estava no carro… desviar era a única saída.
Certa vez, um catador, levando sua companheira na parte mais nobre da carroça, anunciava a plenos pulmões algo como: “Ela é a princesa e eu sou o cachorrinho dela”. E a princesa sorria, ruborizada e orgulhosa. Desviaram-se de mim.