Três prosas poéticas de Fabiana Caso
Fabiana Caso é escritora, jornalista, DJ, pesquisadora & curadora de música e fundadora da festa, festival e podcast Néonloop!
O texto Submersão é parte de seu trabalho de prosa poética inspirado em canções e diferentes cidades, que ela começou a apresentar em leituras com acompanhamento musical em São Paulo.
Instagram: @1casofab.
Após as prosas poéticas, confira uma playlist, organizada pela autora, que reúne as músicas que inspiraram cada um dos escritos.
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Submersão
* uma homenagem a Patti Smith, paralelo ao seu poema ‘Jet Flakes’, de 1974 *
se você fosse livre. e mergulhasse no momento apenas com a sabedoria de braços e olhos e vísceras e voz e membros. como um polvo pirata, sugando o éter aquático daquelas ondas que nos envolviam com sua luz elétrica e fluorescente. que nos ligava fatalmente àquela música e ao redemoinho de notas maneiristas onde nossa mente se conectava. através daquela fresta por onde deveríamos passar, decididamente, ou ela se fecharia tal qual portal efêmero. se você fosse livre. o feixe de plâncton o conduziria àquelas intensidades pelas quais ansiava, mas das quais fugia assustado. presa dos tubarões da celebridade, avesso à egrégora escura das sensações e das epifanias do fio prateado. de destino sempre incógnito. com suas palavras e ações do avesso. com sua força concentrada em sua própria Arte e no jogo de aproximação e recuo – relação-fobia de quem via dois como prisão e não como soma expandida, arte humana. onde eu sentia 3 você racionalizava -1. armadilhas do individualismo polígamo do 0 1 travestido de blablablabla, é mais importante impressionar ou viver. fragmentado.
enquanto o Tao tinha duas facetas, o lado escuro era mais fundo. a Aventura da fusão de qualquer duração talvez brilhasse demais para aqueles teus Olhos de lobo dos quais eu queria beber. esfinge do que olha pra dentro. medo. se você fosse livre. talvez percebesse o potencial criativo de nossa mútua estranhice, e a cadência de Liberdade que sussurrava um segredo em nossos ouvidos. para quem queria ouvir. teríamos feito o rock extático em dois acordes vivos, no improviso existencial do que se respira. se você fosse livre. todos aqueles meteoros pedindo para nascer do meu peito não precisariam ser abortados, com a cauda mutilada. aquelas estalactites agudas que apenas você conseguiu acessar em minhas cavernas remotas poderiam ressoar por toda imensidão dos reinos afrodisíacos & apolíneos. em poderoso tom. explosões de espuma macia & a seiva das estrelas. o abraço como o porto. a ternura do emaranhado de teus cabelos rodopiando em minhas mãos. eu desvendaria tua geografia íntima. devagar. sem bússola ou compasso. eu tatearia, cantando. seguramente, suspensa do tempo, solta de qualquer destino de chegada. no mar do entrelaçar de misteriosas simetrias sonoras. apesar de meu medo. apesar das minhas feridas que poderiam reabrir e sangrar. como uma Yang-cigana-de-lenços-esvoaçantes-como-escamas – o yin viria à tona – no desbravar do Momento-Já. sinestésica e senhora do navio selvagem que me levaria não sei onde ou por quanto tempo. mas o Diamante Faiscante e Uno de Vida seria Meu, seria Nosso. materializando a dualidade da música do sonho diurno, encarnada, até a última nota. na entrega. como meditação amorosa.
mas você insistia em voltar à superfície depois de rápido mergulho, como se pudesse masterizar as danças aquáticas através de sua Mente, de suas caixas de tipos, de seus traços, o Destino que deveria ser livre & indomável. você mostrava repetidamente que era capaz de neutralizar e congelar a conexão daquela onda alta, com suas correntes metálicas glaciais, em cansativo loop Coringa. alien-ação da ligação analógica de 1 pra 1, você queria a fragmentação das muitas. era Mente x Mar em inútil escudo-boia que insistia em submergir toda Cor em cinzas. domesticar o que era selvagem. silêncio.
assim eu abria os Olhos. vermelhos. dando-me conta de que o cenário na verdade era o de “Redondo Beach”. e de seu desfecho fatal, como cantava a soberana dos mares, Patti Smith. quem me afogava era eu ou era você, quem se afogava era o terceiro ente do que não era querer uníssono. eu sentia dor do épico Desejo rasgado, picado em pedaços, náufragos. perdia minhas guelras e minhas asas. sentia sede salgada. tentava então assassinar aquelas minhas quimeras duais submarinas, com minha Mente. mas às vezes elas voltavam a piscar na Superfície etérea de meia-noites urbanas. como ouro resistente. como mantra da Liberdade desperdiçada e de Atlântidas perdidas.
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Comunicação alterada
Quando aquilo tinha acontecido exatamente ela não sabia precisar. Mas agora era realidade palpável: J.A. sentia a rigidez metálica nas juntas, o tronco como um aquário tenso, a dureza das maçãs do rosto transformadas em uma máscara – já não era possível fazer movimentos sutis como o esboçar de um sorriso, por mais que ela repuxasse os cantos da boca. Apesar de perplexa, ela sabia que havia uma razão mais do que lógica para o que ocorria, e que se deitasse um momento a pensar sobre aquilo, poderia compreender e reverter a estranha subversão orgânica.
Ela suspeitava que tinha algo a ver com o apocalipse das palavras, aquele lento oxidar de seus sentidos, que finalmente levou ao êxodo permanente do Significado. Aconteceu aos poucos, como processo de ferrugem – uma maresia lenta que foi quebrando sílabas e caracteres que, apesar de aparecerem juntos, já não se conectavam e não atingiam o alvo-destinatário, mas criavam incidentes recorrentes e, por fim, intransponíveis muros.
J.A. sempre fora tão apegada às palavrinhas, poemas, cartas de amor, castelos redigidos de forma autoral. Ela vivia na carne a implosão daquele mundo humanista que cultuara, quando suas comunicações escritas passaram a bater no vazio e naufragarem como barcas do limbo. Carregadas de mensagens que ninguém mais entendia ou nem mesmo queria compreender – seria a linguagem a sua propriedade privada agora? Perdera a sua assertividade em alguma esquina onde alguém tinha pressionado o botão errado em sua natureza? Ou eram os humanos que esvaziaram o fosso da recepção dos sentidos? Ou ela já não sabia interpretar os símbolos e também não se enquadrava no mundo das imagens por onde navegava a atualidade?
Ela era toda rigidez em seu novo estado metálico, a cama parecia estreita demais em um emaranhado de fios e circuitos; ouviu um rrec de ferragem quando tentou mover o braço. Mas se impressionava como os pensamentos continuavam ligeiros e voláteis. Ao menos eles. Quando havia sido a última vez em que tentara se comunicar de verdade, falando com os ossos e a alma toda? Em algum ponto em que ela ainda era feita de vivacidade e de esperança cálida, animada por respostas que pareciam boomerangs envolventes – o que trazia o frescor de sua voz aguda, dada a dinâmicas variáveis apesar do monotom. Quando passou a sentir o nó na garganta que a deixava claustrofóbica entre as duras paredes de seu quarto?
Sim. Já não restavam dúvidas de que era a perdida troca comunicativa o que corria em suas antigas veias como letras que se encadeavam e bombeavam o seu coração, que endurecera a ponto de se transformar em uma bolinha vermelha que acendia e apagava. Silenciosa, ela havia se dado conta há pouco.
Com muito custo, J.A. levantou-se de novo e olhou pela janela da casa prateada: visualizou ruínas de cedilhas, acentos circunflexos arrasados em pontas soltas, hastes de Hs empoeirados, os As mortos. Tudo havia sido retorcido e transformado em 0 e 1. Foi quando ela viu a luz bege que vinha de cima, como um enorme dedo. Sentiu um estranho êxtase quando a pele atingiu a bolinha: um botão, percebia agora. Desligaram-na.
(ou uma “Metamorfose” moderna. Trilha sonora: “Die Roboter/ The Robots”, Kraftwerk)
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Poema do amor urbano
Vem cá, por este deserto escuro das ruas repletas de orelhas com buracos de piercings, olhos arregalados, chapéus, mãos trêmulas, cigarros e tênis coloridos. Vamos procurar aquela estrela vermelha, no meio dessa multidão de faces múltiplas. No compasso do rock, improvisa comigo uma nota acima do tom monocórdio das tubas noturnas. Vem logo. Descobre ao meu lado aquele desenho escondido no prédio antigo desse Centro supra-revelado como um mapa por onde eu vago em círculos. Vê lá aquela árvore de raízes retorcidas por tentar vencer o concreto nesse lar hard onde fincamos nossos sonhos e vivemos os delírios. Bem aqui onde travamos duelos medievais com nossos fantasmas vestindo tapa-olhos de piratas urbanos.
Tenho um olho aberto ou os dois fechados? Essa vertigem, que insiste em atingir minha visão… esse frenesi da existência passando como filme 360º veloz e acachapante… essas palavras que sou obrigada a ouvir, escrever aos milhares como numa fábrica de letreiros nonsense… esses diálogos turvos pelos quais me enveredo e procuro a saída…. essa eterna seara de outono e eu perdendo minhas folhas enquanto fujo do bocejo e da vida de papel. Só quero a Verdade – mas me atiro em mil labirintos para chegar ao Sumo. Complico-me toda em embaraços para conquistar o Simples.
Mas vem cá, me dá guarida à sombra da tua pele branca, um lugar especial dentro das pupilas azuis que brilham a palavra Lobo. Acaricia-me com teus cabelos compridos de três cores. Veste meu lenço vermelho e me empresta teu chapéu neste safári da troca de pele – veja o mundo pelos meus Olhos. Nessa nossa profunda aventura animal que re-conhece a Carne. Aliança da Conexão. Penetra nessa minha floresta composta de luz e sombra, sombra e luz, e do Sangue de todas as horas vividas. Nessa essência cheia de plâncton, estalactites, gritos felinos e da força fragmentada das minhas múltiplas… eu-caleidoscópio. Cheio dos tilintares do xilofone feito de céu e areia da praia…. passível de desafinar em dramaticidade aguda. E dos plic-placs do avesso, na tentativa de acompanhar a roda mundana que não pára de girar – nem um segundo – 4, 3, 2, 1 – Os anos 00. Mas o tempo fica suspenso quando a mente se concentra no Já. Será?
Vamos lá, pisar sobre umas folhas secas, andar descalços enquanto eu sussurro frases no teu ouvido em línguas estranhas. Eu canto com você, procurando um novo nome para cada coisa do mundo a fim de fugir da mediocridade dos substantivos prontos. Amor? Dança harmônica do bem querer?
Podia ser só um sonho ou pesadelo daqueles em que acordo gritando e em pé em frente à porta. Sempre procurando a saída, tentando escapar de adversários reais, imaginários, monstros. Fugindo da saudade eterna daquela que pariu minha vida, do Vazio Assustador das Noites de Domingo, da idiotia cadenciada pelos alto-falantes estéril(s) das TVs que me asfixiam até no metrô. Da massificação, da moda, da globalização, da política, de tudo que me soa falso. Tentando encontrar as brechas por onde a arte passa – explode — bem no meio do cotidiano. Vivendo elétrica em correntes amplificadas como em solo de Hendrix, com meu olhar penetrando nos transeuntes. Fico procurando uma flor na lapela da alma alheia – pode ser num choro, riso, trejeito, modo de erguer a sobrancelha, um instrumento que se carrega nos ombros, um jeito saltitante de andar, o cantarolar de uma canção. Eu sou a que procura, e continua procurando, procurando, procurando.
Mas vem cá e participa deste meu estudo antropológico enquanto a lua emana essa aura como sonar. Mergulha nesse universo terreno comigo, me dá a mão, me contém e me deixa livre. Me ajuda a encontrar a palavra que é a chave de tudo, talvez pendurada num anzol do prédio mais alto da cidade e só esperando ser resgatada por algum sábio pós-moderno. Vem, vamos parar todos os relógios da cidade e cortar os laços de fitas dessas deprimentes árvores de Natal.
Vamos conhecer esses Outros que passam pelas calçadas, músicos, garotos que pedem esmola, senhoras, transexuais, loucos etílicos, falsos poetas, todos. Vem cá viver a vida como uma emergência do momento. Uma febre sem mistificação, quase calma. Mergulha no abismo do desconhecido, vem. Vive esse Sol, vive essa Noite – na minha montanha urbana onde as luzinhas dos prédios piscam tornando abstrata a noção de que cada uma delas ilumina seres humanos. Um quebra-cabeça. Como eu e Você, enquanto fazemos o Amor como uma música. No nosso arco onde cabem os improvisos do jazz, vozes roucas, sede, gangorra, luta e o teu Nome que guarda os contrários e tudo o que eu procuro. Como um Segredo. Depois saímos às ruas e recomeçamos tudo…
(Trilha sonora: “Venus”, Television).
Repertório:
– Redondo Beach (Patti Smith);
– The Robots – 2009 Remastered Version (Kraftwerk);
– Venus (Television).
Ouça
Playlist – Sinestesia 3 x 3 – Trilha Sonora para Escritos de Fabiana Caso