Três trechos de romance de Rafael Fernandes
Rafael de Oliveira Fernandes nasceu em 1981, em São Paulo. É graduado em Direito pela USP. Autor dos livros de poesia Menino no Telhado, 2011, editora 7letras; Cadernos de Espiral, 2014, editora 7letras; e do romance Vista parcial do Tejo, 2018, editora Patuá. Participou da exposição Poesia Agora, no Museu da Língua Portuguesa, em 2015 com cerca de 500 poetas com produção relevante no cenário contemporâneo.
O autor escreveu uma breve contextualização do trecho escolhido de seu romance Vista parcial do Tejo, apresentação que reproduzimos abaixo.
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O romance Vista parcial do Tejo trata da relação de dois irmãos, Guido e Gabriela, da tentativa permanente de um aceitar no outro sua visão parcial e incompleta, muitas vezes oposta, mas complementar da realidade.
A passagem destacada remete ao conto a Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, em que o personagem do pai deixa para trás sua família e seus valores em busca do isolamento e de uma compreensão existencial o que, aos olhos do filho, narrador do conto, parece inexplicável a princípio.
Neste trecho, a personagem Gabriela ( que sabemos, já no início do romance, está morta, e sabemos mais tarde, se suicidou) ganha voz para explicar suas escolhas, as decisões que culminaram no ato derradeiro, no suicídio, que aos olhos do irmão pareciam atos de loucura (como pareciam loucura os atos do pai aos olhos do filho no conto de Guimarães Rosa) mas que para Gabriela possuíam caráter transcendental, de autoconhecimento.
A seguir, trecho do romance Vista parcial do Tejo (capítulos 4 a 6 da 2ª parte).
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“O nosso horário de acordar era às sete da manhã. Até sete e meia, eu tinha feito a higiene bucal e lavado o rosto. Até as oito horas, tinha tomado banho e colocado a mesma calça jeans e a mesma camiseta que guardava perto da cabeceira. Cerca de oito e meia, me dirigia ao refeitório, do outro lado do hall, para tomar o café. As refeições duravam cerca de meia hora. Depois disso, voltava para o quarto ou aguardava no pátio da clínica. Como o tratamento evoluía, depois de duas semanas, eu participava da maioria das atividades. Havia jogos de tabuleiro, exibições de filmes, visitas de parentes, às vezes saídas pelo bairro. Pela manhã, exatamente às 10 horas, quando aconteciam essas saídas, os internos se reuniam em frente à clínica para serem organizados. Os internos que estavam ali há mais tempo, como o André e a Joana, ficavam já na calçada e iam na frente, às vezes levavam alguma advertência por se dispersarem. Às vezes, apenas fumavam, ao lado do portão de ferro, esperando que alguém os conduzisse e logo formávamos uma espécie de fila ou grupo de viagens. A seguir, exatamente às onze horas, uma das enfermeiras, a responsável pelo passeio, dava o sinal para partirmos e observava tudo de perto, como um guia turístico. O grupo quase nunca se dispersava, apesar de conhecermos bem o caminho e sempre fazermos o mesmo percurso. Era mais ou menos assim que acontecia: seguíamos pelas ruas que estavam logo subjacentes à clínica, e apenas por elas, sem nos afastar muito, onde havia poucas pessoas e poucos carros. Andávamos por uns quinze minutos até encontrarmos uma padaria onde alguns internos compravam achocolatados e cigarros. Depois, seguíamos por uma rua muito calma, esburacada e com o nome de um político, onde havia um caixa eletrônico e podíamos trocar dinheiro. Em seguida, passávamos pela banca de jornal, no meio de uma praça com crianças distraídas, com cartazes de filmes bem antigos, e sequer parávamos, embora pudéssemos comprar revistas ali. O destino final era o pequeno supermercado do bairro, em que os próprios funcionários da clínica compravam suas coisas para armazenar na sua sala particular. Conversávamos um pouco. Ficávamos ali na frente, esperando que todos se reunissem. Quando voltávamos, a enfermeira estaria à nossa frente, apontando o caminho de novo. Tudo isso me lembrou aquele dia, quando voltei da escola, no final da tarde. Quando esperava meu irmão, em frente ao portão, para irmos embora e pegarmos o ônibus na praça. As horas que fiquei, já no escuro, sabendo que não apareceria, ou que havia ido embora. A noite em que voltei para casa e nem o bilhete do ônibus usei. Naquela noite, passei direto por todos os ônibus que se enfileiravam na avenida paralela à da escola. Continuei a caminhar por sob o viaduto, onde um mendigo tentava acender uma fogueira. Andei devagar pela passarela, quando carros passavam bem perto dos meus pés e de nossos olhares. E depois, quando em cerca de duas horas cheguei bem perto da minha casa, eu tomei um desvio. Não segui pela rua inclinada, perto da rotatória. Continuei andando e segui bairro adentro, até os subúrbios. Na verdade, depois de meia hora que passei pela minha casa, já não sabia para onde ia. Eu não me importava. Eu apenas não queria parar. Não queria voltar para lá. Eu sabia que meu irmão havia ido embora. Sabia, também, que ninguém me esperava ali.”
[…]
“É claro que nem mesmo eu sabia o que procurava. Devo ter andado por horas sem rumo. Meu estômago doía quando pensava nas horas sem comer. Minha cabeça latejava quando eu via as luzes. Meus dentes rangiam, ainda que não estivesse tanto frio. Eu tinha a impressão de que todos os olhos estavam em mim. E eu sabia que aquela dor não era fome. Que aquele tremor não era frio. E que aquela desconfiança não vinha das pessoas, ela vinha de mim. Passei na frente de um restaurante, onde poderia me abrigar. Tinha uns trocados no bolso, para me salvar, mas descartei. Pensei muitas vezes em pegar um ônibus, qualquer ônibus de volta para casa, e desistir de tudo, é claro. Eu simplesmente continuei. Ao passar pela casa da Emília, já longe de tudo, deixei pra trás os tênis. Havia passado também pela casa da Mariana. Por dois ou três Mc Donald’s e pela casa do Rico. Andei por uma longa avenida, que percorria quase todo o bairro, e fugi de todas as pessoas que conhecia. Devia ser alta madrugada. Estava totalmente isolada. Senti medo de ser assaltada, ou interpelada por um maníaco, em algum momento. O sereno molhava minhas roupas. Começava a me sentir adoentada. De repente, já não havia mais semáforos. Não havia moradores de rua, mesmo debaixo das caixas de papelão. Não havia bichos se escondendo ou, pelo menos, eu não os ouvia. Eu não conseguia enxergar sequer os meus passos. Se me machucasse gravemente, ou caísse, não haveria ninguém, um carro, talvez, para me socorrer. Eu havia caminhado durante horas. Deixado o bairro para trás e a cidade também. Quando deixei o asfalto, também não havia mais casas, edifícios ou andarilhos. Já não havia mais barulho e sequer o cinza no céu e a poluição à minha volta. Eu estava totalmente perdida, depois de algumas horas, e com os pensamentos confusos.”
[…]
“Estava em algum lugar perto da serra da Cantareira. Longe da estrada. Parei um momento, para descansar, perto da mata fechada, quando senti os ossos tremerem. Já não podia seguir nem parar. Mas naquele ponto, meus pensamentos é que corriam. Tentei me concentrar, ao menos, para entendê-los. Esvaziei a cabeça, assim como fizera com as roupas e os meus sonhos. Como havia deixado a cidade, os amigos e as ruas. Fechei os olhos, a mente e o corpo, por alguns segundos. Tentei, apenas por alguns instantes, ouvir tudo à minha volta. E me misturar, aos poucos, à escuridão e ao silêncio. Estava tudo ainda mais quieto do que eu pensava. Perto das árvores, estava tudo ainda mais escuro do que achei que seria possível. Eu não enxergava sequer minhas mãos. Não podia enxergar sequer as estrelas, embora o céu estivesse bastante limpo. Era a maior escuridão que presenciara em minha vida, até ali. O maior silêncio que eu poderia imaginar. E foi quando aconteceu. Coloquei, subitamente, as mãos nos ouvidos, como se fosse preciso mais uma barreira para que ele ficasse evidente. E fechei ainda mais os olhos, para que o som fluísse melhor, e eu o compreendesse em sua plenitude. Procurei, perto de um arbusto, onde havia me encostado, ficar mais quieta que os cadáveres no cemitério. E deixei que aquela música indefinida, estranha, longínqua, me embalasse por alguns instantes enquanto me espremia na mata como um bicho. Aquela música, eu percebi, ou aquele ruído, era parecida com o rumor de um córrego ou a passagem de um rio. Talvez fosse como o córrego que estava bem longe, passando pela mata, onde fui encontrada algumas horas depois, ainda mais confusa, por alguns moradores da região. O córrego que era igual ao que passava pelo meu bairro. Ou quem sabe fosse uma música da cidade, um barulho urbano, ou uma conversa, como as músicas que ouvia quase sempre, em casa ou em algum sonho, junto com meu irmão. A verdade, entretanto, é que sendo uma coisa ou outra, e mesmo sem entender sua procedência ou seu significado, eu queria, a qualquer custo, continuar a ouvi-la. Tentava interpretar aquele barulho que, naquele instante de loucura, ou de lucidez, era algo que parecia vir de dentro de mim. Ele parecia um eco, à medida que se repetia em toda parte. E de repente, eu era como alguém que está em uma guerra. Que está fugindo desesperadamente e encontrou um meio de se comunicar. Que só tem um rádio. E precisa passar essa mensagem, sem saber, no entanto, se a pessoa do outro lado, será capaz de decodificá-la ou sequer ouvi-la.”