Uivos na Lopes Chaves – Por Carla Cunha
Na coluna mensal “Teia Labirinto” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Carla Cunha escreve sobre Literatura Erótica e Pornográfica. O nome da coluna nos remete à trama e aos caminhos enrodilhados que todos nós enfrentamos ao pensar na própria sexualidade. Nessa trajetória, pontos se conectam e produzem uma teia de informações sobre quem somos. Porém, às vezes, não encontramos o caminho e a sensação é como se estivéssemos num Labirinto.
Carla Cunha é paulista, escritora de Literatura Erótica e Pornográfica, mantém um blog com textos sobre o tema e em 2019 lançou Vermelho Infinito.
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Uivos na Lopes Chaves
Em tempos apocalípticos, aqui dentro do meu apartamento na Lopes Chaves, vejo as notícias numa TV que não ligava desde as últimas eleições presidenciais. A gata, presente dado por Marcelo faz duas semanas, tempo mesmo da reclusão, recebeu o nome de Pan. Luiza, João e Marcos, também em confinamento, enviam notícias apenas por WhatsApp. Todos se apresentam em ótimas condições de saúde, sem tosse, febre ou qualquer sintoma que remeta ao histérico COVID-19. É preciso dizer que não está nada fácil, minha vida sexual interrompida por um inimigo invisível, o qual se alastrou por essa sociedade delinquente. Estou lendo o livro O Caderno Rosa de Lori Lamby, um texto pornográfico para crianças, segundo a autora Hilda Hilst. Nem sempre consigo me concentrar nas leituras, pois tal qual a maioria dos amigos, a ansiedade e a indignação me tomam em sufocamento, o que me faz parar e prestar atenção no meu corpo para ver se apresento algum dos sinais da doença. Pânico! Repito para mim: “Estou bem, estou bem, vamos sair dessa, vamos sair dessa.” Tento relaxar, ler mais duas páginas, mas a verdade é que não entendo nada, primeiro pela falta de atenção no texto e também por causa dos gritos nas janelas dos prédios ao redor. Muita gente se manifesta, canta, dança, conversa, uma vida de confinamento em sacadas, ou seja, uma nova forma de relacionamento. Não me animo a deixar o conforto da minha sala para conhecer o desespero dos outros, já tenho que lidar com meu próprio desespero. O fato é que o nosso tempo vem nos provando que mudanças de planos ocorrem em segundos, saca? Mudei! No quinto andar do edifício do outro lado da rua me prende a atenção uma mulher apenas de calcinha e sutiã, o corpo em curvas me faz finalmente abandonar o livro de Hilst no sofá e sair para sacada, ela também me nota e vem do jeito que está, sem o mínimo pudor. Acende um cigarro e grita: “ O que você está lendo?” Respondo: Hilda Hilst. Hilda? Nossa, adoro a Hilda, ela diz. O assunto encerra, mas não os sorrisos. E assim nesse encontro de tão poucos metros, mas tão distante, ficamos até nossos vizinhos apagarem as luzes para descansar. Intriga-me a coragem dela em se espreguiçar esticando os braços sobre a cabeça e mostrando todos os músculos do corpo no devido lugar. Seria uma provocação para mim, ou para todos os vizinhos do meu edifício? Pan aparece na sacada em total indiferença aos meus instintos. Caminha entre as cadeiras e me recorda que é hora do jantar. Finjo não escutar seus miados e continuo atenta aos movimentos da mulher que agora senta levantando as pernas para amparar os calcanhares no pilar da sacada. Observo o movimento dos pés cruzados, um sobre o outro, a atiçar a minha imaginação, que inquieta percorre as pernas na penumbra da noite em busca do que nesse entremeio se encontra. Não enxergo a boceta da vizinha, mas o simples fato de saber que ali se encontra, quase ao alcance, mobiliza todos meus sentidos. Sento-me também numa poltrona a imitar a mulher, enquanto Pan some da minha frente. Ficamos as duas na mesma posição, com as pernas levantadas. Nosso jogo começa. A vizinha descruza as pernas, eu descruzo as pernas. A vizinha passa as mãos nas coxas, eu passo as mãos nas minhas coxas. Ainda, num gesto habilidoso retiro a roupa para também ficar de calcinha e sutiã. A vizinha traz seus dedos entre as pernas, eu trago meus dedos entre as pernas. Não perdemos o contato visual nem por um segundo e num impulso, com o outro braço, aperto os meus seios. A encaro por todo o tempo e ela agora me imita e aperta também os seios. Ali delineio as bordas de uma boceta que ainda não conheço, mas posso garantir os lábios carnudos. Não paro, agora ela me copia nos movimentos de vai e vem no clitóris. Na minha mente posso dizer do seu cheiro felino, uma tigresa a uivar em direção à lua pronta para soltar o grito derradeiro, enquanto a imagino a sugar meus seios e me lamber toda. Berramos ao mesmo tempo na rua Lopes Chaves. Sacadas voltam a se iluminar, me escondo e para que ninguém me veja, volto de quatro à sala. Lá, mais um encontro, agora com Pan, para me trazer de volta.
(Imagem de capa: As Senhoras de Avignon – Pablo Picasso)