Um breve comentário sobre a poesia de bell hooks – Por Vinícius da Silva
No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.
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Um breve comentário sobre a poesia de bell hooks
A poesia sustenta a vida. É o que sugere bell hooks em uma de suas autobiografias. Wounds of Passion, publicada em 1997, reúne memórias de hooks sobre o ato da escrita e sobre sua vida como escritora. Tendo nascido e crescido no Sul dos EUA durante a segregação racial na segunda metade do século XX, hooks acredita que as palavras criam um lugar no qual nós, pessoas negras, podemos nos exilar. A palavra cria espaços seguros e cavernas que nos acolhem.
Seus primeiros poemas, de difícil acesso, foram publicados em 1978, como livro sob o título And There We Wept [E então choramos]. Desde então, considera-se notável o lugar da poesia e da lamentação em seu pensamento, como ela mesma assume no texto que se segue. Isso se justifica pelo fato de que, para hooks, a poesia é um movimento de resistência da memória contra o esquecimento. Tomemos cuidado, porém, para não entender essa premissa como uma leitura teleológica da poesia: de que a poesia tem uma função social específica. A poesia não serve para ninguém, a poesia se basta!
Nos poemas de hooks, cada palavra parece ser milimetricamente escolhida, o que faz com que traduzi-la seja especialmente difícil, até mesmo para pesquisadores de seu pensamento, como eu. Por conta disso, cada tradução de seu poema, acompanha a versão original, como se dois poemas fossem. Afinal, como bem escreve Ana Martins Marques: “Este poema/ em outra língua/ seria outro poema…”
Nesse sentido, podemos entender a poesia de hooks como um caminho de autodefinição. Isto é, hooks escreve para existir, porque ela pertence ao lugar de palavras (Cf. Bone Black). Por isso, não podemos ler (sempre) os seus poemas como poemas sobre negritude ou feminilidade. Como bem aponta Carolina Ferreira, parceira de pesquisa, a biografia não justifica a produção poética (não em todo caso) e a poesia de hooks desativa determinados lugares. Reduzir uma produção artística a uma hipótese formativa seria aniquilar os múltiplos sentidos que a poesia contemporânea pode nos oferecer. Em outras palavras, reivindico, aqui, que leiamos hooks em seus próprios termos, respeitando as vias de acesso que podemos encontrar em seus poemas e ensaios.
Como bem aponta hooks, em Appalachian Elegy: Poetry and Place, “poemas de lamentação permitem que à perda melancólica que nunca desaparece verdadeiramente seja dada voz. Como um refrão musical lento e solene tocado repetidamente, eles nos convocam a lembrar e a lamentar, a saber novamente que conforme nós trabalhamos para mudar, nossa luta é também uma luta pela memória contra o esquecimento.” Afinal, a poesia sustenta a vida.
Uma breve nota de tradução
Traduzir hooks implica em enfrentar diversas complexidades sintáticas e semânticas. Para a tradução do ensaio a seguir, adotei um sistema de diferenciação para as seguintes palavras: mourning aparece ora como “lamentação”, ora como “luto”, ao passo que lamentation aparece sempre como “lamentação”; grief como “dor” ou “luto”, a depender do contexto; suffering como sofrimento; e a palavra sorrow foi traduzida como “tristeza”.
Outra questão que surge ao longo dos poemas de hooks, além do encadeamento entre os versos, o que dificulta a nova versão e cria uma dependência das rimas, é o uso de certas expressões. Por exemplo, nos poemas “the body inside the soul” e “the woman’s mourning song”, a expressão “make (the) bread” aparece algumas vezes. Nesses casos, optei por traduzir “make bread” como uma expressão que significa “make money” (ganhar dinheiro) e “make the bread”, pela presença de um artigo definido (the), como “fazer o pão”.
Por se tratar de um ensaio e de poemas sobre lamentação (mourning/lamentation), a escolha das palavras, bem como as decisões que o tradutor toma, são importantes. Ainda assim, vocês observarão a palavra mourning, por exemplo, sendo traduzida de formas diferentes. Trata-se de uma escolha semântica e contextual.
O ensaio “the woman’s mourning song: a poetics of lamentation” foi publicado originalmente em 1997, quatro anos após seu livro homônimo de poesia, na coletânea Dwelling in Possibility: Women Poets and Critics on Poetry, organizada por Yopie Prins e Maeera Shreiber. Como bem apontado no texto, estes poemas se concentram na questão da morte e do morrer, tema recorrente em sua obra.
Importante ressaltar, ainda, que esta tradução servirá como material didático para o curso Crítica cultural, poética e escritas de si em bell hooks, a ser ministrado por mim e pela pesquisadora Carolina Ferreira, durante os dias 07, 09 e 11 de junho de 2021. Por fim, agradeço os comentários e sugestões de Angie Barbosa e Carolina Ferreira que me ajudaram a finalizar esta tradução.
O canto de luto da mulher: uma poética da lamentação
bell hooks
Tradução: vinícius da silva
Quando éramos pequenos, a cada vez que tínhamos que recitar uma escritura da Bíblia antes de comer, nós frequentemente repetíamos o versículo que diz simplesmente “Jesus chorou”. Desde cedo, aprendemos que a lamentação era essencial para qualquer experiência de êxtase espiritual. De acordo com o livro bíblico de João, Jesus chorou quando ele chegou e encontrou seu querido amigo Lázaro morto. Antes de trazê-lo de volta à vida, ele purifica o próprio espírito ao chorar.
Conhecer o luto e expressar a dor são experiências centrais para o processo de autoatualização. Durante a infância, eu era profundamente comovida pelo foco da Bíblia na primazia da lamentação. Na época, eu não pensava nisso de forma alguma como uma experiência particularmente feminina. Certamente, foi na igreja durante a juventude que eu vi, pela primeira vez, homens chorando com paixão e abandono intensos. E foi ali que eu aprendi que a experiência do luto era necessária para a cura do espírito ferido.
Da mesma forma que eu sou atraída pelos ensinamentos espirituais e experiências religiosas devido às dimensões místicas da fé, eu tenho sido profundamente tocada ao longo da minha vida pela poesia que fala sobre perda e luto. Eu encontrei, primeiramente, uma poética da lamentação nos escritos bíblicos e somente depois em escritos de poetas. Certamente, minha poesia tem sido influenciada, desde a infância até hoje, pela obra de Emily Dickinson, especialmente por seus trabalhos que falam diretamente sobre perda e luto. Ao redor do mundo, mulheres desempenham um papel central nas expressões públicas do luto. Ainda assim, muito da poesia de lamentação considerada “boa” e memorável foi escrita por homens. No interior das culturas patriarcais globais, a lamentação de mulheres, assim como nosso luto público, frequentemente, recebe pouca atenção. Apesar disso, certamente na poesia de mulheres, transculturalmente, vemos expressa a ideia de que a lamentação frequentemente traz alento e que ela é central para a cura pessoal e comunitária.
O budismo tibetano nos ensina que a única forma de superar o sofrimento é encarando-o. Experimentar a angústia, processá-la através da lamentação, é o modo como a alma alimenta seu crescimento. Visto que a morte é a experiência globalmente comum para a qual existe um tempo acordado para o luto, trata-se de um espaço no qual diversas tradições culturais se encontram. Enquanto pode haver diferentes formas de morrer, o luto tem seus signos comuns. Essas características do luto ficam claras ao espectador, mesmo que não compartilhemos a mesma língua, cultura ou destino.
Por viver dessa forma no Ocidente em culturas que ainda buscam conter e confinar o luto, não é surpreendente que tantos poetas, inclusive eu mesma, prestem atenção nas tradições da lamentação em experiências não-ocidentais para criar uma fusão cultural, para nomear nossa solidariedade. Compartilhar nosso sofrimento é, ainda, uma das paixões que nos mantém juntos. Consequentemente, a necessidade de uma poética da lamentação, de poemas que expressam nosso luto. No Ocidente, poetas mulheres continuam a aprofundar nosso processo criativo, trabalhando com luto e perda para falar de tristeza contra a cultura da repressão que nos faria confinar, silenciar e ocultar a dor.
O estudo acadêmico da poesia ainda tem que se dedicar à ênfase das mulheres em nossos escritos sobre lamentação. Seria impossível fazer isso sem prestar atenção no impacto da dominação, particularmente do patriarcado, na psique das mulheres. A poesia tem sido um lugar fora do domínio espiritual onde a dor e a perda podem falar por si. Nesse sentido, a poesia tem sido o gênero de escrita criativa que permite a subversão ao criar um espaço cultural para falar contra o tabu. A poesia como um gênero literário sempre abraçou a realidade da morte e do morrer, do lugar do lamento. Ainda que eu trabalhe com muitos outros gêneros literários, a poesia permanece sendo o lugar onde a lamentação pode ser evocada sem vergonha. Minha poesia se desenvolve a partir da tristeza e do luto que surgem quando enfrentamos a morte e o morrer.
Compreender como equilibrar o conhecimento de nossa morte e como usar esse conhecimento para viver plenamente e ao mesmo tempo cultivar a paciência representa, para mim, o apogeu da iluminação espiritual. Frequentemente, eu tenho meditado sobre aquela passagem bíblica que nos lembra: “Mas os que esperam no Senhor renovarão as forças, subirão com asas como águias; correrão, e não se cansarão; caminharão, e não se fatigarão” (Isaías 40:31). Quando o coral da Igreja Batista da Virgínia cantou esse versículo como uma canção no culto de domingo [Sunday service], havia um refrão que dizia: “nos ensine, Senhor, nos ensine a esperar.” E foi esse refrão que me ensinou que a paciência pode ser aprendida. Minha vida tem sido sobre aprender como esperar. Eu estou esperando até mesmo agora, esperando por respostas – por direções.
Os poemas a seguir falam sobre a morte. Quando jovem, eu era fascinada pela morte. No mundo racialmente segregado de nossa infância, havia somente um pequeno hospital onde pessoas negras podiam entrar. Quando as pessoas sabiam que estavam prestes a morrer, elas ficavam em casa. Então, era difícil não conhecer a morte. Era algo presente e familiar. Às vezes, era terrível, e em outras era gentil (como quando Sister Ray fez a passagem durante uma tarde de sono, simples assim, sem sons ou palavras, apenas o silêncio). Eu queria, mesmo assim, encarar a morte, contemplá-la sem medo, conhecer a morte intimamente, e até mesmo amá-la. Quando eu saí de casa, não demorou muito para que eu percebesse que pessoas negras têm nossa própria forma especial de lidar com a morte, que aqueles escravizados que cantavam ternamente “come down, death, right easy” tinham estabelecido as bases para que pudéssemos refletir e conhecer a morte de uma maneira única. Foi este conforto com a morte que levou o poeta James Weldon Johnson em seu sermão fúnebre a chamar a morte de “uma amiga agradável”.
Estes poemas inspirados pela meditação sobre a morte e o morrer partem de diversas tradições, da experiência do povo afro-estadunidense, da cultura nativa indígena, e de ensinamentos místicos sufistas que falam sobre a morte como um morrer longe do mundo que nos permite viver no mundo de forma mais plena. Falo também da morte na guerra, da matança política, da morte de entes queridos, sobre a dor e o êxtase da morte. Juntos, eles são poemas de lamentação. Eles têm o objetivo de aliviar a tristeza. Eles são um convite, uma preparação, uma chamada.
poem for the first life
in the first life
i was uncertain
i was a snake with eyes closed
with no hands
i was only one body
slow moving in the dark
alone in my heart
digging a house of dirt and stone
a temple to all unknowing
there to worship
there to sing
there to pray
there to wait the end
all things fall into
poema para a primeira vida
na primeira vida
eu era incerta
eu era uma cobra de olhos fechados
sem mãos
eu era apenas um corpo
lento, a se mover na escuridão
sozinha em meu coração
cavando uma casa de terra e pedra
um templo a todo o desconhecido
lá para adorar
lá para cantar
lá para rezar
lá para esperar o fim
para o qual todas as coisas pendem
turning your face away
sweet daughters of jerusalem
remember your sisters
dark and comely
braiding their hair
into thick tapestries
mapping world history
in each movement
traces of the love
you did not share
threaded red and weary
piercing memory
wets our flesh
with abandonment
the shaved heads of bondage
the shared secret of captivity
and the death they take us to
public and unmourned betrayal
virando seu rosto para longe
queridas filhas de jerusalém
lembrem-se de suas irmãs
escuras e agradáveis
trançando seus cabelos
em tapeçarias grossas
mapeando a história do mundo
em cada movimento
traços do amor
que vocês não compartilharam
tecidos a fios, vermelhos e cansados
memória penetrante
molha nossa carne
com abandono
as cabeças raspadas da servidão
o segredo compartilhado do cativeiro
e a morte que nos leva à
traição pública e não lamentada
alcheringa
dream time
time without time
never never land
in the face of our mother
a great black bear
closing in winter
the crops under the snow weep
i go about the house
sad all the time
for at the grave of our dead brother
whose face we never saw
a voice spoke to us
embraced us with knowledge
of who we were
before we became ourselves in this life
we heard of an endless land
world without boundaries
a space open enough for peace
we returned to our habits lonely
unsure of how to go about
the daily meditations
alcheringa
o tempo do sonho
tempo sem tempo
terra do nunca
diante de nossa mãe
um grande urso negro
se aproxima no inverno
as colheitas sob a neve choram
eu vou para casa
sempre triste
à sepultura de nosso falecido irmão
cujo rosto nunca vimos
uma voz nos disse
nos abraçou com o conhecimento
de quem éramos
antes de nos tornarmos nós mesmos nesta [vida
ouvimos falar de uma terra sem fim
de um mundo sem fronteiras
um espaço aberto o suficiente para a paz
voltamos aos nossos hábitos solitários
sem saber como proceder
com as meditações diárias
the body inside the soul
i am listening for your footsteps death
i am waiting here
with my young hammer
here with my little knife
i shall pound your fingers
as you open the door
i shall grind them like corn
i shall make bread
i shall sing a praise song
a song my mother taught me
the earth it is round
there is no edge
there is no way to fall off
o corpo dentro da alma
estou escutando seus passos, morte
estou esperando aqui
com o meu martelo novo
aqui com minha faca pequena
eu devo esmagar seus dedos
enquanto você abre a porta
eu devo moê-los como milho
eu devo ganhar dinheiro
eu devo cantar um louvor
uma canção que minha mãe me ensinou
a terra é redonda
não há beira
não há como cair
the woman’s mourning song
i cry
i cry high
this mourning song
my heart rises
sun in hand
to make the bread
i rise
my heavy work hand
needs
the voice of many singers
alone
the warmth of many ovens comfort
the warrior in me returns
to slay sorrow
to make the bread
to sing the mourning song
i cry high
i cry high
i cry
the mourning song
go away death
go from love’s house
go make your empty bed
o canto de luto da mulher
eu choro
eu choro alto
este canto de luto
meu coração faz nascer
o sol na mão
para fazer o pão
eu levanto
minha mão de trabalho
precisa
da voz de muitos cantores
sozinha
o calor de muitos fornos conforta
o guerreiro em mim que retorna
para matar a tristeza
para fazer o pão
para cantar este canto de luto
eu choro alto
eu choro alto
eu choro
o canto de luto
vá embora morte
saia da casa do amor
vá arrumar sua cama vazia
Pingback: bell hooks e suas ideias sobre amor e antirracismo — Gama Revista
ADRIANA VICENTE
Obrigada pelo trabalho! Me auxiliou no meu mestrado na disciplina de desigualdades.