Um capítulo do livro “Peixes de Aquário” de Rafaela Tavares
Rafaela Tavares Kawasaki é escritora e jornalista. Nasceu em Araçatuba, no noroeste paulista, em 1987, e atualmente mora em Curitiba. “Peixes de Aquário” é seu primeiro romance e sua segunda obra publicada. Em 2019, lançou a coletânea de contos “Enterrando Gatos”, pela Editora Patuá. É formada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Toledo de Araçatuba. Ainda na condição de estudante, foi finalista do “Prêmio Santander Jovem Jornalista”, realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 2014. Foi imigrante como os personagens de “Peixes de Aquário”, porém, fez a travessia inversa: cresceu no Japão, onde passou 12 anos e habitou diferentes regiões do arquipélago com a família.
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A porca
Abril de 1944.
Kaede, Kaeedeee! A voz de Chiyo é afiada, talha o ar. O som tem uma inclinação para o choro, cambiante entre o lamento e o rogo. Lançado no quintal, o nome pertence a alguém desconhecido. Mas é assim que a chamam. Ou nee-chan. Nos últimos tempos, ouvia aquelas invocações em profusão. Kaede, tenho fome, o almoço vai demorar? Nee-chan, caí, machuquei, me ajuda. Kaede, faça Yukiko parar de chorar! Nee-chan, Chiyo está estragando o futon outra vez.
Desta vez, ela não oferece a imediatez de sempre. Nem sequer encara de volta, embora o grito da irmã raspe a nuca. As palavras concebidas nas gargantas das crianças e dos homens são vazias. O som da porca, sim, pulsa. É o grito mais humano do pátio. Ecoa vibrações de um animal numa zona fronteiriça. Oscila entre ser e não ser mais.
O vestido de Kaede guarda em cada entrelaçamento de fios o afeto de uma predileção. A estampa florida desbota levemente de lavagem e dos sóis que conheceu ao quarar e nos varais. É usado com frequência por ser uma roupa querida, feita por si mesma. Agora está arruinado, encharcado de vermelho na borda da saia e na manga bufante que Kaede se esqueceu de arregaçar. Nunca havia feito partos de animais. Desconhecia os ritos preliminares. Mas havia ajudado no nascimento de Yukiko e tudo ocorreu bem. Haneda até a elogiou na sua prontidão.
A porca é uma marrã, quase recém-desmamada, revestida de carne rosada e tenra, cheia potencial para crescer mais. As orelhas alçadas se mantêm intactas das mordidas dos seus semelhantes, feito duas folhas frescas. Os olhinhos pretos brilhavam sadios. Pareciam até gracejar.
Kaede tem uma predileção por criar porcos entre todos os animais. As crianças gostam tanto da carne. Eles se deliciaram com o assado preparado uma vez na casa de Jacinta. Kaede tentava adivinhar os gostos dos irmãos. Às vezes até ganhava alimentos e, em vez de saborear sozinha, oferecia a eles.
Não havia vez que passasse na frente de Watanabe-san sem que ele oferecesse uma porção de ponkans. Kaede traz na saia dobrada as esferas alaranjadas. A casca crivada imprime um aroma cítrico duradouro no tecido e nas pontas dos dedos. Ao cruzar o sítio e ver o pomar, ela sempre comenta a beleza das frutas. Um acerto. Watanabe-san é um homem orgulhoso. O grande feito da sua vida nos últimos anos era ter introduzido o cultivo de ponkan naquela região — jura que se não fosse um senhor um tanto mais apressado da colônia de Bastos, teria sido ele a apresentar a fruta ao Brasil. É generoso ao receber subornos na forma de elogios. Kaede nem precisa pronunciar o desejo de levar ponkans para casa, seu pedido é atendido antes de brotar na boca.
A mãe era quem sabia desvendar vontades ocultadas nas curvas do rosto das crianças, acentuadas nas bochechas elevadas, nas dobras das sobrancelhas e na espessura dos bicos. Sentada na soleira de casa, numa época em que existia o tempo para respirar em paz sem ter de se ocupar com mais uma tarefa, Kaede sentia as trepidações no estômago esvaziado. A fome a iludia, criava cheiros e gostos de alimentos, iscas lançadas pela lembrança. Sonhava com conservas de gengibre, rabanete e ume servidas pela obaasan em Okayama. A mãe, então, a surpreendia com a confissão de ser presa de uma fome por picles irmã da vontade que a mordia. Elas colhiam juntas mamões ou chuchus para preparar em um vidro com vinagre. Não era o mesmo sabor do Japão, mas era o mais próximo possível.
A marrã, quando trazida pelo senhor Dionísio e o filho, também atendia a uma intenção de Kaede. Faria companhia aos porcos e porcas que a família já tinha. A população do mangueirão tinha de aumentar, mas os animais estavam envelhecendo. Precisavam de espécimes jovens como aquela. Talvez logo procriasse. Daria tempo de ter pelo menos um leitão para o aniversário de Aiko. Um filhote da marrã poderia ser assado na reunião de família. Jacinta lhe ensinaria como preparar. Kaede também queria desvendar as formas de fritar o couro e de confeccionar linguiça como aquelas que via penduradas no armazém. Na imaginação, não parecia ser tão difícil. Ela poderia ainda extrair banha da gordura e toucinho, como já viu a mãe fazer.
Kaede esfregava as fraldas de Yukiko quando os homens chegaram com a porca encomendada. Ela os cumprimentou sem jeito e foi chamar o pai, prostrado no quarto. Ficou sozinha com os dois até que o pai resolvesse se levantar para os entreter com o dinheiro e as conversas sobre colheitas, terras, preços. O rapaz tentava desvendar o rosto dela, semiescondido pelos cabelos soltos. O olhar queimou a intimidade de coxas às quais se agarrava o tecido da saia molhada e percorreu o contorno dos seus seios sob o vestido. Kaede ansiava pela chegada do pai. Temia também, pois ela é quem podia ser repreendida. Com o pai nunca se sabe.
Quando ele chegou, Kaede correu a levar a porca recém-adquirida ao mangueirão para se alimentar com movimentos de agradecimento às visitas. Dava pena apresentá-la aos porcos. Era tão nova ainda. E machos tinham tanta inconveniência em seus impulsos, despertados pelo cheiro de fertilidade impregnado entre as coxas das fêmeas. Kaede mesmo fez essa descoberta desde que o corpo começou a se arredondar. Os olhos dos homens passaram a fazê-la ruborizar numa ira emudecida. Ela já não gostava mais tanto de andar sozinha até a cidade para as compras de alimentos, rendas, linhas e tecidos. Seus passos vacilavam sob a visão dos adultos.
Em questão de dias, um porco estaria acavalado no lombo da marrã, em um exaspero, como se precisar encontrar algo nas entranhas da fêmea para sobreviver. Kaede sabia que seria assim. Ela via o mesmo à noite, quando o pai acreditava que todos estavam dormindo, e se deitava sobre a mãe.
Kaede sentia as bochechas queimarem ao se perceber ainda seguida pelo olhar de um rapaz. A mente dele, de certo, era povoada por cenas parecidas. Buscava palavras para ofendê-lo em uma luta muda e interna. Queria correr, mas manteve a postura e ancorou a própria mira na porca. Era um animal de porte médio, porém robusto. Tinha um focinho bonito. Formava uma simulação de alegria com os olhos pequenos.
Formava, antes dos gritos.
O que a porca quer agora, ela se pergunta. Talvez o fim, talvez voltar para um tempo em que a dor não fosse uma realidade tangível. Berra pelo que pareciam ser horas. O filhote está atravessado. Dá para tatear contornos diminutos por baixo da barriga rosada. O relevo está sensível entre as tetas dilatadas, prontas para servir. Kaede tenta manuseá-lo por dentro, mas só arranca mais gritos.
Chiyo também chora. Quando os vendedores trouxeram a marrã, brincaram juntos a criança e o animal. Chiyo, já no fim da primeira tarde de amizade, carregava nas pernas e nas roupas os traços de lama do mangueirão. No banho, até confessou a Kaede sobre estar espantada com como a própria pele e a da porca eram parecidas. Mas ela tem pelos bem mais grossos, Chiyo não tem? Veja só! A pequena também reparou que os olhos da marrã pareciam sorrir. Agora a irmã pergunta entrecortando o pranto por que tudo precisava sofrer. Jura que não comeria hoje, amanhã e se pudesse cuspiria todos os bichos que já engoliu.
A porca estremece. E o filhote, quando as mãos de Kaede conseguem torná-lo visível, parece ora arroxeado, ora branco. Cores da morte. De certo, é um obstáculo para os irmãos em sua ânsia de seguir o caminho até o nascimento. Os outros devem estar em agonia feito a mãe.
A porca tem um coração palpitante. Kenji estende uma faca. Acerta logo, nee-chan! A porca só irá sofrer mais se nee-chan prolongar a vida. Kaede chacoalhava a cabeça. Aquele era um dia de vida, não de morte. Já havia morte demais naquela casa, naquela cidade. A mãe, os Tomizawa. Não, Kaede não sabia matar. Não é o que quer agora. Nem toda morte é igual. Não havia problema em matar dependendo da necessidade, Kenji dizia. A mãe era boa gente, né? O pai é boa gente, né? Os dois eram certeiros. Quase não se ouvia os porcos e bois quando eles os golpeavam, Kaede mesmo estrangulava galinhas quando os irmãos tinham fome. Não era pra produzir animais para o abate que ela arranjou aquela porca?
Aiko olha de longe. De certo, não quer transparecer desespero, mas as mãos apertam o ouvido há tempo demais, com força demais. A cabeça parece pronta para estourar.
Kaede tateia a umidade vermelha na superfície cutânea de um cor-de-rosa pálido. O sangue escorre sobre a carne da porca. Ou era a pele dela própria? Eram mesmo parecidas. Kaede tenta puxar o filhote outra vez. Falta força. Ela apalpa, apalpa, aperta fantasmas da carne do filhote. A porca berra. Lágrimas se formam no canto dos olhos sorridentes. Por que ela não morre logo? E se não estava disposta a morrer, por que não foge? Por que não morde Kaede?
A porca se tornou uma existência plena ao pisar na soleira da morte. O ser se expande quando vai morrer, quando luta contra o destino. Kaede se lembra bem disso, já viu antes. A porca parecia não querer morrer.
Kaede suja o rosto ao esfregar as mãos na pele. O suor dela se dilui com o sangue da porca. Os soluços de Kaede se fundem aos gritos do animal. São uma só.
O pai não existe mais. Por isso, é estranho que ele a empurre, que tome a faca da mão estendida de Kenji. Kaede não responde. A porca solta um grito mais forte, agudo. O quintal gira. Kaede é um pião. Então, a porca se cala.
O corpo do pai obstrui vista. Kaede enxerga apenas partes do corpo imobilizado. A porca virou um cadáver. A mudança de estado se faz num instante. Agora você é. Agora você não é mais. Foi assim com a porca. Foi assim com mamãe.
O sangue se prende na pele de Kaede. Ela o esfrega com as digitais, mancha o rosto com coágulos. Macula as pontas dos cabelos, o vestido, as pernas. Seu choro vaza. Escapam com o vento as lágrimas e os gemidos guardados por meses. Ela não ouve ninguém. Nem os irmãos, nem o próprio grito.
Não ouve sequer o tapa. Sente só o ardido no rosto. O pai a olha severo. Sem remorso. Ninguém mais fala. Aiko e Chiyo param de respirar. Os olhos de Kenji se arredondam, círculos perfeitos de susto. Ele ruboriza como se tivesse visto a irmã nua.
Kaede baixa a cabeça ensanguentada e caminha em direção ao escuro da casa. Os pés começam lentos, depois ganham impulso, açoitam o solo, correm. A família se distancia a cada passo. Ficam para trás também as paredes de madeira, o jardim finalmente florido outra vez, o jatobá com o balanço, a porteira. Todos fazem silêncio, menos os pés de Kaede.