Um capítulo do romance inédito de Natasha Centenaro
Natasha Centenaro descobriu o teatro aos quatro anos em Passo Fundo (RS), onde nasceu. Jornalista, mestra em Letras – Escrita criativa, e doutoranda em Teoria da Literatura pela PUCRS (CNPq), com estágio na Sorbonne Université – Faculté des Lettres. Como dramaturga escreveu O retrato de Laura; Até que a morte nos separe ou o curso de casamento; Se chover abra a janela; e colaborou na dramaturgia de Sonhos [Im]possíveis. Participou da adaptação de Como gostais, de William Shakespeare (Prêmio Açorianos de Teatro – Júri Popular). Integrou a coletânea do Prêmio Lila Ripoll de Poesia 2010. Vencedora do Prêmio Literacidade 2014 Jovem autor com o livro de contos Aquela e outras mulheres, também selecionado no Prêmio Sesc de Literatura 2013-2014. Tem textos publicados em antologias, revistas e periódicos. Ministrou oficinas de escrita criativa em escolas, universidades e centros culturais. Integra o coletivo As dramaturgA.
O capítulo abaixo é uma cena e fragmento do romance inédito Histórias de silêncio para encenar. Romance-peça escrito como dissertação de mestrado em Escrita Criativa na PUCRS. O romance e a peça compõem as multifaces refletidas (invertidas) em espelho de um grupo de atrizes e atores na criação de uma peça de teatro. Romance selecionado no Prêmio Sesc de Literatura ano 2015.
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XI. Composição para flauta: adagio ma non tropo
ELA
E, se, ao invés de estar presa no elevador, eu estivesse caminhando na rua. Apressada. Olhando para os lados. Tentando me cuidar. Observando as outras pessoas que cruzam por mim. Se eu estivesse sozinha. Sozinha. Sozinha nas ruas escuras do bairro sem energia elétrica.
E se um desconhecido estivesse caminhando atrás de mim.
Ele poderia estar me seguindo.
À espera do meu movimento seguinte, dobrar uma esquina. Sair da rua principal e movimentada.
Sozinha.
Ele poderia estar me perseguindo.
O desconhecido se aproxima.
Me aborda.
Segura-me o pescoço e os braços.
Tento me desprender das suas mãos.
Ele é mais forte do que eu.
Ele me levanta.
Meus pés deixam de encostar o chão.
Nem ao menos as pontas dos dedos se mantêm.
Não consigo gritar.
Ele não deixa.
Tem horas que tenho vontade de parar de pensar. Silenciar os pensamentos todos. De qualquer ruído. E que se compusesse uma sinfonia de notas de silêncio. Como seria bom.
Todas as pessoas, normais, devem pensar isso. Quem não gostaria de se silenciar, um pouco que fosse?
Uma pausa?
Pensamos demais. Falamos demais.
Engraçado.
Quando deveríamos falar, às vezes, justamente, quando deveríamos falar, às vezes nos calamos.
Porque tem assuntos em que é preferível se calar.
E outros em que você é obrigada a manter silêncio.
Mas esse silêncio, esse não é o bom silêncio.
Não é o silêncio que eu quero.
A casa dos tios de minha mãe era laranja. Por fora, por dentro e pelas janelas. No quintal, tinha um enorme pé de laranja-do-céu e outro, ao lado deste, de laranja-pera. O sol fazia as paredes brilharem. E quando as nuvens reinavam absolutas, ainda assim, continuavam paredes, portas e janelas laranja. E quando anoitecia, as luzes, dentro da casa, acendiam-se cor de laranja.
Existia uma única coisa que não era laranja. A cadeira de balanço da tia Joana.
A cadeira deveria ser de palha, mas eu enxergava azul. Azul-escuro.
Quem mais tempo ficava sentado na cadeira de balanço não era a tia Joana, mas o tio Lúcio.
Eu não gostava da cadeira de balanço da tia Joana.
Nós sempre moramos em apartamentos.
Então, a mãe levava eu e minha irmã, alguns finais de semana, pra correr e brincar no quintal da tia Joana e do tio Lúcio, junto com as outras crianças, nosso primos, e os vizinhos da rua.
Eu via o que o tio Lúcio fazia.
Mas eu não podia contar.
Nem pra minha mãe.
Por isso, eu ficava longe da cadeira de balanço da tia Joana.
O Eduardo era um cara legal. Parece clichê, mas é verdade. Eu gostava do Eduardo. O Eduardo tinha uma morenice de braços cor de café. Eu gostava de enrolar meus dedos nos anéis de cabelo do Eduardo até minha mão ficar coberta de espirais de fios pretos.
Nós quase namoramos.
Não sei bem como definir a nossa relação. Se é que existiu uma relação, assim, como se diz de uma relação normal.
A gente ficava. De vez em quando.
Tinham meses que era toda a semana.
Mas havia mês que o Eduardo não me ligava.
Ficava irada com isso.
Falta de consideração.
Mas teve um sábado.
Um sábado.
Nesse sábado, o Eduardo me ligou.
E depois da festa, o Eduardo me deixou em casa.
Ele insistiu em subir até o meu apartamento.
O Eduardo tinha bebido. Muito.
Eu também. Mas sabia o que não queria fazer.
E eu não queria.
Eu disse.
Várias vezes.
Ele não me escutava.
Eu não quero.
Você está me machucando.
Talvez fosse culpa da bebida. Ou quem sabe do pó.
Ele cheirava, às vezes.
Até que ele me deu um tapa no rosto e segurou minhas mãos.
O Eduardo nunca tinha agido assim comigo.
BHIA
De uma forma ou outra, Otávio se aproximou, primeiro como amigo, depois tentando fazê-la gostar dele. É capaz de ele ter assumido essa missão para si mesmo e para o mundo todo. O mundo de jovens como eles. O pessoal, a turma. Todos queriam ter certeza do fato conhecido por todos. O atestado, todavia, era bem-vindo. É ou não é? Otávio insistiu no não é. Bhia, nas sessões de análise, questiona-se como deixou essa aproximação se tornar um relacionamento, e de um relacionamento juvenil, um vínculo de uma vida. Carência. Medo de ser rejeitada ao tentar abordar a menina. Pressão da família por conhecer o primeiro namoradinho do colégio. Otávio ser um cara legal e gentil. Ela não sabe.
Depois, tornou-se cômodo. Ninguém mais perguntava. E seus sentimentos continuavam ali, intactos, pela mesma garota. O relacionamento com Otávio era de abraços, idas ao cinema, carinhos, jantares, uns beijos, festinhas, uma língua na orelha, bebidas proibidas para menores, mordidas no pescoço, uma mão na coxa. Até o dia em que Otávio preparou a noite do casal. Noite especial.
Não pra mim. É verdade, eu nunca fui clara com relação à homossexualidade, também porque achava que poderia magoá-lo ou fazê-lo se sentir usado pra manter as aparências. Mas indícios, indícios eu dei e muitos. E no fundo, bem no fundo dos seus sentimentos, ele sabia que meu amor não era dele e nem por ele. Enquanto ele se queixava de mais atenção eu fingia sequer saber do que estava falando. Tentei desviar o assunto ao máximo. Não sei o que o Otávio fez ou como ele interiorizou esse sentimento, mais do que isso, essa missão, essa vontade incontestável, pra ele, de me fazer apaixonar-me por ele. E não era por eu amar uma mulher. Não sei. Parecia uma atitude dele, algo só dele, e necessitava do meu amor, não tinha recusa, rejeição, nada, eu tinha o dever, pra ele, de amá-lo. Quem sabe, se fosse outra mulher o objeto, o tal objeto de seu amor, independente de ser gay, ele teria feito igual. Não foi por maldade. Acho que essa é a principal diferença. Não foi com a ideia de me fazer mal. Mas e aí, não querendo me fazer mal, o tanto que ele me causou depois? Tudo o que mudou na minha vida por causa daquela maldita noite especial? Na minha cabeça, pra mim, não consigo elaborar o que se passou. E faz tempo. Um tempo. Das outras vezes em que ele tentou, eu barrei, a desculpa da menstruação, não estava me sentindo bem. Se for pensar, agora, fazendo as contas, ele acabou esperando um ano, mais de um ano, pra transar comigo. E acho que ele respeitou, à maneira dele, porque eu era virgem. Naquela época, isso devia fazer algum sentido. Então, te respondendo, não sei. Não sei se eu consigo assimilar. Primeiro a palavra, estupro. Depois, o ato em si. Como disse antes, ele não queria me fazer mal. Ele planejou uma noite, a noite. Mas eu não queria. Nunca quis. Não imaginava o pau dele entrando em mim. E quando imaginava, sentia nojo, medo, náusea, asco, o vômito chegava à minha garganta, era a pior ideia que podia se passar na minha cabeça. Uma penetração. Sexo. Por isso, sabe? Não sei se foi um estupro. Estupro? Não. Na realidade, foi. Racionalmente falando, eu sei que fui forçada a fazer o que eu não queria. E isso é estupro. Ponto. O problema é pensar na intenção. Pra mim, essa não era a intenção dele. Sim, é óbvio, ele devia ter parado. Quando eu disse não, que não queria, ele foi tentando, me abraçou, me acariciou muito, dizia que ia ser bom, que eu ia gostar, que era só um medo inicial, aí, lembro que a cada vez ele me deitava na cama, eu me levantava. E foi nessa hora, acho, ou antes, que ele me xingou, começou a me destratar, que era sua namorada, pertencia a ele, era natural que a relação evoluísse, e ele queria. E eu também. Me lembro, ele insistia dizendo que eu queria, eu também queria, mas tinha medo. Sim, eu devia estar chorando. Pedi. Pedi várias vezes pra ele parar. Não sei. Dor? É uma mistura de dor física, enfim, eu era virgem, meus braços doíam, minhas pernas. Mas dor de alma, sabe? Dor da impotência, o não poder fazer nada pra parar, da humilhação, da tristeza. Era alguém em quem eu confiava. Alguém em quem eu confiava. Que jamais ia me fazer mal. Me repeti essas frases nem sei quantos anos. Alguém em quem eu confiava. Me deixou muito triste. Triste mesmo. Acabada. Se eu o perdoei? Perdão? O problema não é perdoar. Pelo estupro? Não sei. O problema foi ter deixado o Otávio me convencer a levar adiante a gravidez do Arthur. Meu maior problema. E aí, minha culpa. Se eu tivesse pensado. Sim, é verdade. Claro. Seria arriscado um aborto. Eu descobri que estava grávida com quase quatro meses. Fiquei com medo. É isso que eu falo. Muito medo. Comigo foi diferente. Nunca quis ser mãe. Claro. Mas, assim, entende, nenhuma mulher tem essa obrigação que parece vir junto com a palavra-condição-mulher de ser mãe. Eu não. Mãe? Isso não existe. Essa condição da maternidade. Entende?
Estupro é crime. Abuso sexual é crime.
#EleNão