Um ciclo de poemas de Sílvia Barros
Sílvia Barros: sou professora de português e literatura do Colégio Pedro II, onde coordeno o projeto Oficina mulheres negras e literatura. Sou doutora em literatura brasileira e escritora com poemas, contos e crônicas publicados em algumas coletâneas como Cadernos Negros, volumes 41 e 42, e Negras Crônicas. Publiquei também O belo trágico na literatura brasileira contemporânea, livro fruto da minha tese de doutorado. No momento, me considero uma compartilhadora de poesia, porque é nessa linguagem que consigo me comunicar em um período tão intenso e duro.
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Enquanto crescem as unhas e os cabelos
Há trinta dias
Passei a ter a mesma cara
S.B.
Ficar em casa
Percorrer os sentidos do verbo ficar
Chegar, parar e se estabelecer
Não ter definido ainda o quando ir.
Na preposição em -in- dentro
O guardado do tempo e espaço
O nosso dentro remexido de medo
O nosso dentro da própria casa
Em que esperamos nesse tempo
Aprender a ficar.
*
Dias e dias esperando respostas
E só uma confirmação
acende a lâmpada amarela:
Somos sós.
*
Não sei o que sobrará de mim além de escombros
Ruinas de alguém que andava falava sorria
Aquelas ideias abstratas sobre a pessoa que está
distante
Um corpo que habita outra órbita.
Tantas existem agora
Em torno de algum sol
Chamado futuro.
*
A motivação das plantas
para crescer e se espalhar
até mesmo por apartamentos
quase estéreis
nos centros das grandes cidades
é a proposta da natureza de
nunca jamais esquecer
que o colonizador é só um obstáculo
num tempo histórico
muito maior de quando fomos deuses e deusas.
*
Sem novas notícias
Além da perplexidade
Com a pilha de memórias
Que se esgueiram pelos muros
Nas filas pro benefício
Nos contêineres
E nos cemitérios.
*
Talvez amanhã tudo reabra
Para voltar ao que antes de denominava normalidade
As ruas cheias de trabalhadores
Os shoppings cheios de consumidores
E eu me arrumando de novo chegando ao colégio
Com fones de ouvidos
Reencontrando do lado de fora
Tudo conforme o combinado
Inclusive a grave instabilidade política.
*
Resolvi deixar crescer
E me cobrir toda com ele
Sentir muito calor nos dias quentes
Com a transpiração abafada do seu emaranhado
Fazer um manto de rainha
Manta no inverno
Fazer ter fios de ouro
Quando um raio de sol refletir.
Aboli o corte
A tesoura
O modelo
Vou deixar meu cabelo crescer.
*
Escrever sobre a cidade
Sobre o medo
Sobre a guerra
É nosso lugar-comum de mulher.
Quero ver quem vai aguentar
A gente escrevendo sobre amor.
*
Faz muitos dias que
Não saio na rua
Nem no quintal
É que moro em apartamento
E meu quintal é uma réstia de sol
Entrando pela janela do escritório.
Não fez sol. Por isso não fui lá.
Parece que estou há muitos dias
Sem sair do lugar
E estou.
Parece que nunca estive melhor
Perdida no à toa.
Parece que cada dia piora também.
Parece que já estive infectada e melhorei.
*
O grande mistério
Da palavra corpo
É que ela designa
Tanto o vivo
Quanto o morto.
*
Já faz muito tempo
Que me sinto assim
Agora é só a continuação
*
Bem feliz e bem tatuada
Um grande coração desenhado no peito
Com tinta de sangue
Palavras escritas e riscadas
Ao longo dos braços
O país inteiro pelas pernas
O mapa mundi.
*
Quantas bandeiras a empunhar
– todas ao mesmo tempo –
Como se fosse uma pequena
Equilibrista de pratos.
*
Com vinte anos de distância
O elogio na mensagem privada
É sinônimo
Do não conte a ninguém que a gente ficou.
*
Todos os dias
À meia-noite
Alguém descobre
Que já é
Amanhã.
*
Um homem branco mostra seu poema
Eu penso:
ok
*
De um momento a outro me dou conta
Da minha total irrelevância
E me recolho
À insignificância
Que os outros chamam de poesia.
*
Palavras que perderam completamente o sentido:
Domingo
*
Espremer até a última gota o suco deste poema.
A cabeça já entrou em quarentena
Há tempos.
*
Depois que botei tudo pra fora,
Uma palavra em cima da outra,
Como se fosse poesia
O que sobrou?