Um conjunto de contos de Edo Valmobida
Edo Valmobida nascido em Jundiaí, no interior de São Paulo, atualmente reside na capital. É graduando em Letras com habilitação em língua Inglesa pela Universidade de São Paulo. Teve alguns de seus contos publicados na Revista Subversa e na Enfermaria 6.
Os contos abaixo foram reunidos sob o título A Íris do Silêncio.
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Com a vista mais poderosa, podemos dissolver o mundo. Diante dos olhos fracos solidifica-se, diante dos olhos mais fracos mostra o punho, diante dos olhos mais fracos ainda tem vergonha, espanca aquele que ousa contemplá-lo.
– Franz Kafka,
Meditações sobre o Pecado, o Sofrimento, a Esperança e o Verdadeiro Caminho
Tu suis sur le plafond la ligne sinueuse d’une mince fissure, l’itinéraire inutile
d’une mouche, la progression presque repérable des ombres.
– Georges Perec,
Un homme qui dort
A intransição
Você começa amarrando os sapatos. É assim que você se vê no espelho pela primeira vez no dia, quando o primeiro nó é dado e você levanta a cabeça, olha para o reflexo e se vê, meio com o canto do olho, quase indiretamente. Essa é uma primeira pausa. Seus olhos percorrem todo o reflexo, o lençol caindo em um dos lados da cama, quase tocando o chão, as meias, sujas sob a cama, o metal da estrutura da cama, depois o tapete de um lado ao outro, a moldura do espelho, o vidro um pouco sujo, sem olhar o reflexo quando olha para o espelho, o espelho como forma física e não um captador, até que a luz que entra pela janela te atrai para o reflexo, e você vê a janela, algumas árvores lá fora, e o vento que chacoalha as folhas. Lentamente você começa a perceber seus próprios movimentos no espelho, vagaroso, quase calmo, é assim que você se vê no espelho. E então seus olhos caminham lentamente da estrutura da janela, do metal, do vidro, da cortina, até os teus cabelos ainda não penteados, amassados pelo travesseiro, os fios arrepiados captando a luz que entra e brilhando de uma forma curiosa. Você já tinha percebido isso antes. Algum dia a luz entrou e bateu nos teus cabelos no momento exato em que você se olhava no espelho e percebeu que, de alguma forma, os fios brilhavam de forma intensa, como se fossem translúcidos, não opacos como são. Você já percebeu que algumas coisas brilham com as cores do arco-íris quando a luz incide diretamente sobre elas. Com os teus cabelos não é diferente, nem agora, nesse dia frio que te tirou toda a vontade de tomar banho e você pensou que não tem problema não tomar banho antes de sair de casa, as vezes, quando está tão frio como hoje. Dos fios de arco-íris que despontam da tua cabeça, seus olhos escorrem pelo teu rosto, a leve penugem sobre as orelhas, que também reluz, o maxilar não muito marcado, os lábios que não verão cor alguma de batom, mas existirão nus pelo resto do dia. Essa pinta que te incomoda logo na curva do nariz, que poderia ser uma verruga e por sorte é uma pinta, mas que você promete que tirará algum dia. Não há marcas de bigode ou barba, você as retirou cuidadosamente, cera quente e pinça, para não marcarem o rosto, porque para você nada pode marcar o rosto de forma tão agressiva, já basta a pinta que você promete retirar. Teu nariz te incomoda também, e, se fosse um pouco maior, seria adunco, marcaria uma sexualidade que você evita, você foge de todas as projeções que seu corpo quer incutir na tua capacidade de ser, seu desejo de fluir, desejo determinado de indeterminação. A ponte do teu nariz acaba e seus olhos encontram seus olhos. Essa é a segunda pausa. Como se quisesse fugir, tua visão sai de foco por alguns milésimos de segundo. Mas é sua obrigação constatar teu olhar, as marcas da insônia copiadas dos movimentos do teu corpo noite passada, girando de um lado para o outro, por horas a procurar uma posição confortável no colchão já um tanto velho, outro tanto afundado, marcado pelo teu corpo constantemente em mudança, ora magro, ora ganhando curvas, até perdê-las todas, como agora, que a comida te é intragável, que é impossível aceitar qualquer incursão física e pastosa do mundo mastigado através da tua garganta áspera. A comida é colocada na boca apenas como um paliativo para a fome, mas, tão logo mastigada, tornada massa gosmenta que beira ao sabor amargo, você a cospe. É impossível engolir. E a fome causando terremotos no teu corpo. As dores do ácido, quase um parto. Um parto para dentro. Você ainda não comeu nada, e nem vai, sabe muito bem. Vai sentir teus ossos por mais alguns dias antes de conseguir engolir primeiro um pedaço de pão com margarina molhado no leite com café, como sua avó fazia quando você era criança e parecia a coisa mais nojenta do mundo, mas que agora é a única primeira coisa depois desses cada vez mais constantes períodos, que você consegue engolir. Depois desse primeiro pedaço de pão virão as grandes fomes, o corpo e a vontade agindo em conjunto pra estocar comida para o próximo período. Esse será o trabalho mais intenso daqui há alguns dias, comer, para só parar alguns dias depois, quando o nojo do mundo voltar. Cada vez mais curto o período de estocagem. Os teus olhos cada vez mais fundos são a régua para esse período. Sua saúde se dissipando entre os cigarros, tantos que não faz mais conta, e não tem problema, porque o dinheiro que você não gasta com comida durante esse tempo é cuidadosamente recalculado na direção dos cigarros que um dia vão fazer efeito, talvez um câncer, mas provavelmente nem dará tempo, se os períodos de secura, de intragabilidade, prolongarem-se. Esses teus olhos, meio opacos também, já depois da operação de miopia que te serviu para que os óculos não pesassem mais sobre o teu nariz, e pesavam tanto, marcavam tanto que você tinha medo que isso tornasse teu nariz mais adunco, mas você gostava de usar óculos, ainda tem o primeiro que comprou, quatorze anos, de aros dourados. Esses teus olhos que agora olham na direção dos teus olhos e tentam, em vão, captar uma chama, uma chance de levantar-se com vontade, porque será preciso vontade para começar o hoje, a ação te cobra uma força que, no verde esmaecido, tendendo ao marrom, dos teus olhos não há. Esse movimento, essa ablução do tempo que é o piscar dos olhos, com intensidade, como se o esforço de pressionar uma pálpebra contra a outra com um pouco menos de naturalidade pudesse invocar algum resquício de vontade dentro de você, vontade para colocar o outro pé na frente, e abaixar a cabeça novamente, e começar a amarrar o outro sapato.
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A mariposa
são três da manhã, você não consegue dormir. Seus olhos já vagaram pelo quarto todo, as paredes brancas são brancas apenas no espectro que resta na sua mente porque o escuro mastigou tudo, mas seus olhos estão abertos, a tela do celular projeta imagens e mais imagens que são como um paliativo para os sonhos que você não está tendo. Você nem lembra quanto tempo faz desde a última vez que acordou com as imagens refletidas no fundo do olhos ou quando alguma criança chorando a tarde, no apartamento ao lado, te lembrou de repente a estátua da Pietá translúcida que percorreu tua noite anterior. O som dos teus cílios roçando o travesseiro quando você pisca é a única coisa que interrompe o silêncio imediato. Ao longe ressoam carros, mas a sensação é de que o mundo termina logo atrás das paredes, o resto são irrealidades inúteis. Seu corpo dói, como se estivesse atado ao colchão ou como se tivesse praticado esportes durante a tarde, o que jamais seria um fato porque às vezes você sente que seu corpo é feito de vidro, ou do mesmo material que as asas de uma mariposa. Hoje você viu uma mariposa negra no banheiro e ao pensar na sua fragilidade a imagem se levanta, te cobre os olhos. Que seria de você se fosse realmente tão frágil como as asas? Os teus dias cansativos seriam algozes, Caronte te levando na barca, você percebe que Caronte é a figura mais intensa do Tempo. São três e quinze da manhã, você vai levantar cedo, provavelmente o despertador começará as sete, quando os olhos se abrirão para perceber que mais uma vez não há memória de um sonho qualquer, nenhuma imagem, nenhuma cor.
Talvez então você pense em mentir, porque te é tão estranho não ter uma fantasia se manifestando quando é isso que a psicanálise diz que acontece, e você não quer duvidar, são poucas as tuas chances e, se eliminar cada uma delas, só vai restar acordar todos os dias para perceber tuas qualidades de mariposa, de coisa tola, ignorada, você vai se encarar como é comum encarar uma mariposa, uma cópia mal feita de uma borboleta. Mas é que a mariposa tem sua qualidade naquilo que falta à borboleta, sutileza, silêncio, não o berro da cor da borboleta. Mas o bater de asas da mariposa é o frenético debater-se do afogado, a mariposa e você se afogam na realidade da noite, e você não tem nem o alívio do voar, o alívio do sonho para que sua realidade se torne menos intragável. Amanhã acordará apenas para receber a vida em ondas, se movimentando através dos vazios da rotina opaca, desnutrida de fantasias, que você tem levado pelos últimos meses e que é como se esfregasse o pó das asas da mariposa nos olhos, cada vez mais cego, incapaz de ver a luz no fim do túnel.
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A gravitação
Há essa simplicidade com que você coloca um pé em frente ao outro. Há essa leveza que te permite movimento em meio à multidão. Não é esse teu corpo magro, você sabe, a falta de alimento ou metabolismo rápido, seja lá o que for, não determina essa tua capacidade de atravessar a massa de corpos sem sequer um esbarrão. Esse teu movimento de travessia, contudo, não chama a atenção para você. Quando você passa ninguém te olha, ao menos não diretamente. Sua existência se dá no canto do olho, ou é algo mais sensitivo. As pessoas sentem teu eu se aproximando, se afastam, abrem caminho, não com desprezo, mas em respeito natural, sangue-azul, um força contra-gravitacional que teu corpo projeta. Queria saber como o efeito pode se dar de maneira oposta em mim. Que me sobra como reação que não seguir-te? Você olha as figuras, todas repetições. Os olhares que desviam-se. As mais frias mãos. Vê- se um movimento iniciar progresso. São teus músculos que iniciam? Iniciam o que? Ensaiam um toque. Que toque? Observo. Aguardo.
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O beijo
Não é a primeira vez que isso acontece. Não é a primeira vez que o impulso entra em conflito com sua vontade, que seu corpo pede um movimento e sua mente se defronta com a impossibilidade de prosseguir o movimento; seus pés se direcionam instintivamente, seu tórax começa a girar na direção daquilo que anseia, suas mãos são as únicas sobre as quais você ainda tem controle e elas se fecham, esmagando o ar, segurando-o como se fosse a corda que vai devolver cada centímetro ínfimo do seu corpo, esse corpo que agora se prepara para cruzar a rua. Seus olhos dardejam como libélulas, verdes também, procurando algo em que se agarrar, algo que ressignifique o impulso primário de descer da calçada e caminhar, atravessar a rua. Suas libélulas atingem hora a banca de jornais do outro lado, hora a faixa de pedestres um pouco distante, hora os rostos borrados pelo movimento, as aquarelas móveis que um pouco mais de empatia lhe diria serem pessoas, serem automóveis, ou placares de luz anunciando peças de teatro ou um creme de cabelo masculino que não difere em nada dos femininos, as cores pintam tudo com tons de preparação, de preconceito, as cores colocam as coisas em seus lugares socialmente determinados, e não é menos tola essa sua tentativa de agarrar-se a elas para criar um solo, para tornar as coisas menos esfumaçadas. Sua realidade é miserável como a tentativa de negar ao corpo o movimento instintivo. Dentro: a besta pateando. Mas não não deve haver hesitação, o momento se aproxima, o clímax do seu dia, talvez de toda a sua vida, e essa noção desenrola-se sibilante aos seus pés, é aceitar e tudo estará terminado, essa tensão, sua cultura do eu. As pessoas que esperavam na faixa de pedestres agora atravessam a rua, sem sequer olhar para os lados, apenas as crianças o fazem, porque ainda não aprenderam uma ordem que não a da cautela, da auto-proteção, e viram as cabeças de um lado ao outro o tempo todo enquanto cruzam as linhas brancas no chão, panteras, animais selvagens, o medo de que suas breves vidas sejam consumidas pelo momento antes de alcançarem o auge ou a fossa que as espera. Você só lembra de ter feito o mesmo, de olhar para os lados, porque as crianças o fazem, essa inocência toca o teu inocente pedido de tempo, um berrar preso na garganta, um soluço de medo. Agora pararam de atravessar, sua mente se redireciona para o corpo, a forma vil que te pede, e implora, e não sendo atendida se rebela, quer agir por si só, quer movimento, tem sede do choque como a água que se lança em cachoeira apenas para sentir a dor da pedra ou a liberdade que antecede o beijo preparado para estilhaçar. Seu primeiro beijo e, por consequência, outro choque de realidade. A realidade de que não significou nada. Que o movimento precipitado só te levou ao asco de si pelos momentos seguintes. Como o asco foi destruído? Não, foi decorado com documentos, vestimentas sociais, é lixo. Hamlet lança a caveira contra a parede. A questão possui resposta intrínseca. É agora. Você sabe que é. Na balança a razão e a intuição. O corpo venceria, não parassem os carros. O corpo beijaria o momento, não desacelerassem os carros, seus movimentos ínfimos inutilizados, incapazes de pacificar o conflito. A consciência respira. Seu pé continua pela calçada.
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O suspiro
Você chega cansado. Você chega cansado e tira seus sapatos à porta, primeiro o pé direito, depois o esquerdo do sapato já surrado, as ponteiras dos cadarços já se desfazendo, e a ponta do cadarço já não presa se abrindo em flor e fiapo. Você larga a bolsa sobre o sofá, como fez todos os dias antes deste, a bolsa de couro marrom e falso que alguém te deu de presente, já usada, talvez lembrança do teu pai, do teu avô que já morreu. Você suspira, os pés nas meias e as meias no chão, e a bolsa no sofá, e suas mãos no espaldar de uma cadeira, tentando se decidir pelo próximo passo. Você, olhando pela janela, colhe um cigarro meio amassado no bolso do peito da camisa, bota o cigarro na boca, meio torto, e fica procurando o isqueiro nos bolsos sem, contudo, encontrá-lo, e indo então em recurso até a mesa da sala de jantar onde estão um outro isqueiro e um cinzeiro, o mesmo que você toma em mãos enquanto segue até a janela, e se apóia na parede, e fuma seu cigarro vendo os carros passarem na avenida lá em baixo, vendo o sol se escondendo por trás dos prédios. Numa árvore aos pés do prédio passa um pássaro, pousa por um instante, canta uma nota breve, aguda, atrai teu olhar que, quando chega na árvore, já não capta o pássaro que levantou vôo, mas os galhos balançando suaves ao vento sendo que um deles aparentemente move-se numa frequência pouco maior, talvez onde o pássaro havia pousado, talvez não, mas agora é o brilho do sol nas folhas da árvore que preenchem tua visão. As folhas rebrilhando, metálicas, a ponta do teu cigarro alumiando com mais força quando você traga e a fumaça que sai pela janela por onde entra um ventinho frio de início de inverno e que te arrepia os pelos dos braços por alguns segundos. Teus olhos vão agora em direção a esses pelos que também rebrilham à luz do poente, agulhas douradas que de tão retesadas pelo frio nem se curvam ao vento. Você assopra. Nada. Você apaga o cigarro, passa pela mesa, deixa o cinzeiro, o chão gelado sob as meias nos teus pés vai ficando para trás, e o corredor é adentrado, do outro lado está a figura torta e frágil que se reflete, e teus olhos fundos, cansados e indagadores, quase não se reconhecendo por um segundo, quase com espanto reconhecendo. A buzina de um carro. Teus passos continuam e teus olhos vagam pelas rachaduras nas paredes brancas do apartamento, e as rachaduras te lembram duma musiquinha cantada em voz grave por algum desses moços que se sentam com o violão nas rodas, saraus, e tentam projetar cacos de suas almas melancólicas e tensas de fome, vivendo de cafés amargos e pães de queijo secos, sem saber se querem manter-se magros ou se é só o almoço parco que não vence a fome mesmo, e que se questionam sobre suas prioridades, mesmo sabendo que jamais deixarão de comprar cigarros para comprar comida, mesmo que o cigarro esteja caro, como você bem sabe, como você também não deixa de comprá-los para comprar comida. Pão torrado e margarina. Uma vida a pão torrado e margarina só para se ter os cigarros sempre à mão. Adentras o quarto então, teu quarto, de cama bagunçada pelo desperdício de tempo que te é tentar dormir até que finalmente, sem querer nem ver caias no sono como acontece todas as noites, ficar rolando e rolando pela cama até que de repente piscas e há luz entrando por entre as cortinas da janela que tu sempre deixas aberta. Mas por enquanto apenas sentas na cama. No teu quarto não há mais que a cama e o armário fechado. Não há relógios e o barulho da avenida mal te chega aos ouvidos, e nenhum pássaro passa cantando, nem mesmo morcegos, só o vento que assovia suave sobre suas cortinas sem que tu dês atenção. Teus olhos se fecham e tua cabeça se abaixa, num movimento tão repetido e decidido que alguém que te visse assim pensaria em destino, no nascimento de uma estátua. Suspiras. Quebras o mármore. Você se sente bem, finalmente está em casa, e nem há nada para fazer, nada que te desespere pela obrigação, não esperas por nada. Constata. Move os dedos até a boca, e rói as unhas, calmamente lapidando os pedacinhos mal cortados, roendo, como um rato. E essa mania é tão antiga quanto fumar, e fumas há tanto tempo que nem se lembra quando foi teu primeiro cigarro escondido, só sabes que foi escondido, sozinho, como todo o resto. Levas uma mão até o rosto, numa tentativa de apalpar o teu cansaço, de segurar as olheiras que despencam como cachoeiras sob os teus olhos e te dão essa aparência de garoto que envelheceu rápido demais por excesso de amarguras. Sorri por um segundo. Mas esse sorriso é tão gasto e desconcertante que teu rosto, no segundo que se segue ao segundo em que tu sorri, se desfaz com dor e rangido em uma careta de gastrite e suspiro.
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O vidro
Você está tentando olhar-se no espelho. Não apenas olhar as formas que tem o teu corpo, as marcas do teu rosto, as cicatrizes. A moldura não está mais lá; quando o espelho caiu no chão algum tempo atrás e rachou-se a moldura foi usada para uma escultura que agora pende na parede oposta à sua cama; A moldura agora enquadra um objeto da tua infância galopante. As pontas do vidro estão ou quebradas ou são vidro batido, macerado pelo choque, mas o espelho ainda serve para o seu propósito, ainda reflete, te reflete. Teus olhos caminham pelo vidro, vidro sujo da poeira que vem se acumulando desde não sabe quando, talvez desde o dia em que o espelho foi ao chão e a moldura soltou-se e as quinas foram rachadas. A luz que incide diagonalmente sobre o espelho destaca as partículas depositadas na superfície do vidro. Te disseram que vidro não é matéria sólida, mas líquido que com o passar do tempo se avoluma na parte inferior, escorrendo, sempre escorrendo, imperceptível, como se desafiasse o tempo. Na imagem refletida teu corpo é uma mancha, os teus contornos borrados porque você ainda não consegue olhar para si, fitando hora a tua cama, o lençol azul amarrotado, hora a janela entreaberta pela qual entram os raios de luz, e então o cinzeiro cheio ao teu lado no chão e então o cigarro ainda aceso apoiado no cinzeiro contando, ao consumir-se, os segundos que passam, como a tua pele também o faz. O copo ao lado do cinzeiro está meio vazio, a água se confunde com o vidro transparente do copo e seu relevo, líquido dentro de líquido. Assim também te parece teu corpo. Tua inconstância desafiando os limites dos sentidos, teu envelhecimento apenas percebido pela barba que de um dia para o outro cresce, pelas manchas que surgem na tua face, como a poeira no espelho.
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O momento
as marcas na sua pele contam as rejeições. Uma pela sua mãe, a primeira. Logo em seguida o seu pai, a mulher que cuidava de você quando criança, seu avô logo em seguida, já te disseram que ele não reconhecia nenhum dos seus pais no seu rosto, e isso quando você tinha acabado de nascer, o que não significaria nada se ele não justificasse isso com um profundo enraizamento no senso comum de que uma criança ao nascer deveria se parecer ou com o pai ou com a mãe. Mais tarde a marca da sua irmã mais nova viria com hesitação, até que você dividisse um pedaço de bolo com ela quando tinha seis anos e ela quatro. Você já está cansado de questionar as rejeições, agora apenas as conta, assim como os presos contam os dias nas paredes da prisão. Sua pele. No início o espanto, a dor assoviando como se um pássaro tivesse sido libertado da gaiola, mas agora apenas a contagem. Os números que não se apagam da sua mente transcritos na epiderme. Ninguém vê. Não é para chamar a atenção, como diriam alguns, mas como uma tatuagem, as imagens e frases que te guiam pelo labirinto. Em algum lugar da sua juventude você se deu conta dessa certeza, teria sido uma epifania não fosse a sensação de que há tempos isso já vinha lhe perseguindo, uma sombra nos cantos percebida apenas de esguelha; desde então você conta: a professora da terceira série dizendo aos seus pais que sua letra é linda mas que precisava de um caderno de caligrafia para aumentá-la, para que você se tornasse mais compreensível, ao que você ouviria anos mais tarde, arpoada da boca paterna que letra pequena significa baixa autoestima, talvez você precisasse de um psicólogo aos treze anos e o olhar da mãe que se questionava. Seu primeiro amor nunca chegou a ler sua primeira carta, porque não se escreviam mais cartas mas e- mails que de tão práticos não carregam nenhuma personalidade, talvez parte de um desenvolvimento pós- moderno em que o texto toma a potência afetiva do leitor muito mais do que a intensidade com que você dizia aquelas três palavras definitivas, que te arrancaram um suspiro primitivo, quase uma constatação de sua descendência das bactérias oceânicas três trilhões de anos atrás: viveria por ti. Hoje você pensa naquilo tudo, e ri, e lembra do olhar dele, e ri, e suspira primitivamente. Essa é uma marca que você hesitou em fazer e por final foram duas; uma por ele, que nunca leu a carta, uma por si mesmo porque se negava nessa tentativa de entrega e que hoje você talvez entenda como amor, essa negação, mas que significaria que todas estas suas marcas, acariciadas nesse momento pelos seus dedos frios, ardendo a mais nova, são símbolos do amor que você nunca chegou a sentir mas que inegavelmente existiu, e existe com mais intensidade no momento em que sua pele se rompe num misto de agonia e prazer, prazer de poder, de ousar contra uma voz tão presente e irritante que diz “não faça isso – se alguém descobrir – isso não é certo – você está louco”, de ignorar essa voz como se faz com as vozes de desconhecidos, e a agonia dessa certeza que no momento mostra seu rosto, belo e pavoroso, antitético até a fibra do pensamento, e que pesa como uma borboleta negra no estômago. Mas você com o passar do tempo, sua idade avançando tão lentamente e essa sua tendência de comparar-se, tanto que mesmo independente ainda não se reconhece como adulto, adquiriu capacidade para definir o que é válido e o que não lhe cabe, pelo menos quanto à maioria dos assuntos mesmo que não chegue a conclusão alguma, e decide que não, amor precisa ser outra coisa. Precisa porque essa falta de toque, a incompletude, os espaços frios da sua cama são quase gritos quando, no meio da noite, você acorda. Seus olhos ainda param, aqui e ali, atravessando o teto no escuro, tentando determinar pontos de referência que te digam “estou”, acordado ou em meio a um sonho você precisa desses pontos, seus hábitos, coisas que definam seu corpo em meio à escuridão. A escuridão é a única coisa que você considera realidade, mesmo que seja algo tão fácil de transigir, de atravessar, é a única coisa que não se altera por completo, mesmo que a luz a atinja, no momento em que a energia acabar, ou um dedo for lançado ao interruptor, ela retorna em velocidade correspondente. O que, então? Sua necessidade de enquadrar-se. Necessidade de existir. De ser. É sua responsabilidade colocar-se frente ao mundo e dizer “sou”. É sua responsabilidade ser. É sua responsabilidade respirar. É sua responsabilidade comer e vomitar. Ver e ser visto. Ver e negar. Mas e essa sensação de eternas mãos vazias? Que é que você faz com ela?
Talvez por isso é que ande sempre com as mãos nos bolsos; não porque as esconde mas porque em algum momento você percebeu que de nada serviria segurar-se em algo, segurar-se em alguém, fazer algum gesto. O gesto te será sempre incompleto sempre insignificante, ou incapaz de indicar o que você deseja. Assim também é com as palavras. Se você tentasse falar, algo que raramente faz hoje em dia, os sons que sairiam da sua boca te pareceriam extremamente inúteis, sem sabor, ou ainda ácidos, porque para comunicar um pensamento suas palavras teriam de tomar uma forma, você não se tornou capaz de despir a ideia até encontrar seu elemento básico, seu núcleo, então falar é como mirar em um alvo no escuro, é quase impossível acertar, cada palavra que sai da sua boca tem, muito mais do que a capacidade de transmitir, a qualidade de mentira. Então para que o esforço de dizer algo se você nunca será capaz de transmitir a verdade? A verdade pura do pensamento se perde dentro da sua cabeça e se liquefaz em meio a todas as outras verdades, o mar avoluma, começa a inundar suas praias. Você nunca soube o que fazer com tanta água. As marcas talvez lhe sirvam como uma maneira de escorrer algumas gotas, mas nunca serão suficientes, nunca haverá uma abertura suficientemente grande para que fluam suas verdades liquefeitas, sua existência insalubre, porque sua boca foi deturpada desde o nascimento, sua boca é mais uma ferida e dela, as palavras proferidas saem como pus. Então o seu silêncio que se perpetuará até o momento em que alguém ousar tocar a sua boca, engolir sua podridão, a coagulação da sua verdade, a mentira primordial da sua existência sendo engolida e mesclada a outro líquido pútrido. Quando tocarem sua boca, não será o momento de perdão, as marcas são eternas tatuagens da sua realidade, e propagam-se; não uma aceitação, mas uma anti-rejeição. Quando a sua existência inócua será reconhecida como tal por outra existência inócua. Quando suas palavras inúteis se tornarem fato. Algum dia lerão sua carta. Algum dia os dias não serão mais contados na sua pele.
*
O torpor
Cansado. Você está cansado. De novo: você está cansado. Assim é que se desenrola o momento, ou ainda, não se desenrola porque a partir dessa constatação a sensação é intensificada, paralisa qualquer possibilidade, qualquer movimento que seu corpo planejaria e deixa-se ficar, por um segundo ou dois ou três e assim cria-se um outro momento não mais fácil de atravessar apenas pela sua aparente imobilidade e aparente porque o corpo ainda se move em pequenos tremores que convém chamar de pulsação mesmo que as pontas dos teus dedos, agora suas mãos inteiras, estejam frias, que uma de suas pernas tenha adormecido sem sequer formigar. Noite passada você esteve deitado na cama como se fosse maca ouvindo um rock vagabundo de alguma banda de garagem estadunidense sem sequer prestar atenção enquanto olhava o teto e discernia formar aleatórias a partir das sombras que as luzes da rua projetavam através da janela aberta porque você não consegue dormir com o ar parado de um quarto fechado. Noite passada a sensação foi parecida mas ainda guardava resquícios de algum tipo de contentamento por ter caminhado pelo centro de uma cidade desconhecida onde comprou sorvete e fazia calor, ainda carregando o capote da noite anterior nos braços e sentindo as meias longas incomodando as canelas prometendo início de um suor e isso tudo porque o tempo não tem estado estável, não nos últimos meses, não. Agora você olha para o teto enquanto o cansaço vai delineando mais marcas no teu rosto, bom escultor do tempo e do desânimo. Você não se pergunta nada, não espera nada de si, sabe que não sonhará quando dormir e isso se dormir porque a cada dia isso parece mais difícil e na sua cabeça começa uma lista de possíveis doenças que você tem muito além das cáries e com certeza algo que um psiquiatra te daria pílulas para mas que não faria sentido. Você se recusa as ajudas.
Talvez porque por tanto tempo você tenha tido vergonha de tomar, de pegar, por não saber pedir ou por tentar provar, sub-reptício, algum tipo de independência que você não tem, que você só quer entregar e tua mão é tão aberta que ela cresce o suficiente, como as raízes duma erva daninha que se torna capaz de cobrir seu rosto, quase como uma máscara por cima dessas linhas que se formam segundo a segundo. A sua vontade de cobrir o rosto não é fraca nem passageira. Ver fotos suas te dá algum tipo de agonia que talvez não seja uma agonia individual mas porque te possibilitaria, num momento de maior agudeza instintiva, perceber que tua individualidade é uma cópia: cópia, cópia. E além de você mais mil outras estão na cama olhando o teto enquanto o tempo cirurgicamente, com os detalhes de um minimalista, torna teu rosto em um momento. Como se mascara o momento com as mãos?
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O berro
vou deixar de me preocupar contigo. Teus afetos, defeitos todos vagos, porque não me falas dos teus amantes, mas do teu amor que suspeito ser apenas uma paixão por apaixonar-te por desconhecidos no metrô, esses que tu jamais encontrará novamente, ou, se encontrar, não reconhecerá a face, o olhar perdido. Me fala deste teu amor pelas coisas, os objetos que brilham quando a luz do sol incide sobre sua superfície e faz rebrilhar aqui um azul, lá um verde, mas sei que da luz tu mira apenas a sombra criada, onde proliferam todas as coisas que o objeto não é, que poderia ser de olhos fechados. Fala dos sons e das vozes roucas que rasgam a madrugada, quando já estás com a cabeça enterrada no travesseiro e espera. É pela espera, pela insônia, que teu corpo palpita, a tensão: “é agora, adormeço”; mas não. É exatamente no instante anterior ao abismo do sono que teu sangue flui, teus músculos são retesados, cavalo correndo sobre o pasto largo, teus olhos arregalados perdem-se no horizonte branco do teto, não há limites para tua fome. Sussurra que é este o segredo da tua vida, quando acordas todos os dias e percebes que o relógio caminha largo, teu espreguiçar tornando-se um espraiar pelas ondas de lençóis que cobrem teu corpo nu, teu corpo amarrado ao colchão por mais do que uma preguiça, mas por uma melancolia com sabor de inutilidade eterna; tua voracidade de animal em crescimento. Te falo sobre coisas ínfimas: amor, corpo, eternidade; pois sei que teu raciocínio não suporta o grandioso, o momento em que a solidão entra em cena, o peso do abandono, e assim negas todas as vezes em que olho no branco dos teus olhos, que varo tua retina com minhas palavras aguilhosas, metal conta carne, ânsia contra medo, todas as vezes que minha voz pressiona teu corpo contra a parede, meus lábios em brasa contra as veias saltadas do teu pescoço, a marca que ficará será por muito tempo ignorada, tu não terás vontade de mirar-se no espelho. Marco-te e sibilo todos os teus segredos, como se acreditasse em tuas palavras, como se meu primeiro berro de recém-nascido não tivesse sido uma mentira.
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A vida
você também já escreveu suas coisas, já navegou nas ondulações da linha e sentiu os respingos das palavras na tua face; quando pega a caneta leva alguns momentos para encontrar a posição exata do corpo entre seus dedos; o primeiro movimento a segura da mesma forma que a um cigarro, mas o reconhecimento do erro é quase instantâneo, apesar de que, para você, ambos tem a mesma função; logo seus dedos se fecham como uma garra, mas seria impossível traçar as letras com uma forma tão animalesca, escrever te toma esse distanciamento da natureza bruta, mesmo que tudo o que escreva sejam coisas primitivas, mesmo que invoque sua existência vegetal através das palavras, que sua caligrafia seja uma recriação das pinturas rupestres; mas quando, entre a ponta do polegar e as dos dedos indicador e médio, a caneta finalmente encontra a posição segura para mover-se com liberdade pela página você vê o plano branco da página desertificar-se; todas as suas palavras somem, as dunas são intransponíveis porque subitamente você toma consciência de que nada do que há para ser dito tem alguma validez, o que antes te enchia a mente, figuras e frases, embotam-se, fogem para longe de qualquer tentativa de alcance; essa sensação de impotência é a sua primeira provação; serão necessários mais alguns momentos marcados pelo compasso da sua expiração, alguns momentos para que o espanto da mudez súbita seja apaziguado; o tiquetaquear ao fundo te acusando, te levando a pensar que é isso, você é incapaz de retirar da mente e traduzir a matéria prima do pensamento para o papel, o que te passa pela cabeça é algo puramente instintivo e reside na instância animalesca de si e forçar essa sua natureza a se encaixar em uma linha seria um pecado absurdo e portanto você não é capaz de agir, você não é capaz de transgredir a si próprio, seus limites são objetivados no momento em que sua intenção é escrever, eles te obrigam a esse instante de medo, essa brancura que evola do papel e te penetra a mente, agora dentro de ti há apenas uma nuvem branca e maciça; mas você já conhece a sensação, já passou por isso antes, na verdade nem se lembra de alguma vez ter escrito sob pura inspiração, não há facilidade nesse teu ato, apesar do impulso te ser natural, e sabe que assim que a nuvem começar a se dissipar será possível apertar a ponta da caneta sobre a primeira linha ou outra qualquer no papel e começar a derramar a tinta sangrenta do pensamento; por enquanto isso não acontece, por enquanto você olha para o papel, prestando atenção na densidade da nuvem, nos contornos que toma, e se sua criatividade fosse pouco mais infantil hora diria ter visto um pássaro, hora um dragão, apenas para então perceber que a nuvem assume um corpo, um corpo nu, de gente; a pessoa nua agora principia a mover-se, como se dançasse ou estivesse movendo os braços indicando algum ponto indistinguível da tua mente; é então que as palavras começam a ressurgir; é então que você começa a falar sobre mim, falar sobre alguém que pensa em você constantemente, a sua sensação de estar sendo sempre observado e que te impede de agir despreocupadamente, a sua imagem não pode ser ferida, você não pode aparentar falhas ou brutalidades, um mero ato anti-higiênico te colocaria, sob os olhos da tua observadora, naquela classe de pessoas que se aproxima mais dos cães, que não aprenderam a interpretar os códigos da convivência social e por isso existem à margem da linha, pessoas que ninguém para para olhar, que não merecem um instante da atenção de outrem, e disso você tem medo, de se tornar ignorável, apenas uma sombra, porque desde que você percebeu essa sensação de que te olham, que te seguem mesmo nos teus momentos mais íntimos, sua vulnerabilidade infantil do sono é sempre desvendada, e talvez seja por isso que sua insônia te leva a passar horas olhando para o teto, imóvel, e diriam que você morreu não fossem os movimentos sutis do teu peito, suas mãos e pés sempre frios; é assim que indiretamente seu dedo toca o meu, na página que agora se enche de mais e mais expressões que recriam seus pensamentos, as linhas manchadas com seu sangue derramam o meu sangue, meu corpo cai por terra e é completamente desvendado assim como eu te desvendei como vi e refleti sobre cada movimento das suas mãos quando tentavam segurar a caneta; é agora que sua ousadia tem fluidez, agora que você foi capaz de transgredir a brancura do papel, é agora que morro.
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A fome
Estou tentando dizer algo, algo que não pode ser dito, mas apenas compreendido pelo silêncio de um olhar, um olhar não, um fitar, que é bem diferente, na verdade. Estou tentando compreender essa diferença também.
Talvez porque olhar tenha apenas o objetivo de ver, de abarcar com os olhos e engolir as coisas cruas, digerindo-as depois apenas se elas retornarem à mente. Não quero mais enfiar goela a baixo o mundo sem compreendê-lo. Esse fitar talvez seja como cozinhar a vida, a preparação do mundo pouco a pouco, passo a passo, para que tenha o sabor completo da coisa compreendida. Mas qual a receita para isso? Qual o mecanismo humano que permite essa compreensão? Não pode ser apenas através das coisas poucas que aprendemos, o intelecto nunca é suficiente para uma compreensão, mas para um entendimento, e aí reside outra diferença. Não quero mais entender as coisas, mas compreendê-las em sua totalidade. Ou é impossível alcançar essa totalidade? O que faço com os poucos pedaços, cacos, que o intelecto me permite? Se fosse como ler um livro, seria fácil. Mas as coisas não têm cadência. Há pouco ritmo no mundo, e aquele ditado pelo tempo não é suficiente, mas sim limitador. Ter que organizar as coisas numa linha temporal, utilizar-me da metodologia do tempo, é apenas o fingimento de que as coisas acontecem em certa ordem, determinadas por algum padrão. O que eu desejo rejeitar. O caos é presente. Em cada fissura da rotina se instauram dúvidas, uma falta de nexo, o absurdo. Tudo isso a que chamo de “vida” tem tomado a forma de um quarto, com paredes brancas, o que não é nada novo, contudo as paredes parecem estar rachando, a irregularidade das rachaduras me perturba e parece desmotivada. Estou tentando dizer algo que não sei o que é, e talvez não tenha nada realmente a dizer, isso me assusta. Quando não se tem nada a dizer começa-se a dizer coisas inúteis, porque o impulso é natural. Não quero ser possuidor de uma boca falante e muda. A mudez é um instrumento que capacita qualquer significado. Mas sem significado a mudez se torna muda. Eu quero uma mudez eloquente. E mesmo agora que penso e digo penso não dizer nada. É um movimento de repetição. Repito “é”, “é”, “é”. O movimento mecânico da língua e dos lábios e das cordas vocais e do vento passando para produzir algum som que já não possui significado. “É”. Como fertilizar essa terra? Como fazer brotar algo em mim sem possuir sementes, nem adubo, nesse meu solo seco e esturricado? Estamos progredindo, estamos seguindo em frente, mas parece que esse “em frente” é um túnel infindável, talvez um poço horizontal. Que se faz no fim? No fim do poço a água, a lama, fremindo de capacidade de vida, mas que tipo de vida? Vida podre, vida sub-reptícia, fungos e limo.
Talvez seja disso que devo me alimentar, dessas podridões e dissonâncias obscuras. Viver daquilo que nasce na sombra e na umidade. Mas de que vale isso? Quem deseja o escondido? E talvez seja isso, cavoucar.
Talvez no mais profundo é que residam as coisas táteis. As ilimitações. Quem pode dizer o que há no sub-subsolo? Por baixo de toda a camada já tocada de conhecimento, auto-conhecimento, ou matéria de pensamento.
Talvez seja nisso que reside o que deve ser encontrado, exatamente porque ainda não o foi. Mas como chegar lá? Qual é o órgão capaz de realizar esse movimento? Qual instrumento devo usar para encontrar e compreender o que é desconhecido? Se é com os olhos, fitando e compreendendo antes de engolir, o medo não há de me impedir? Tenho medo daquilo que desconheço? Ou desconheço porque não fui ousado o suficiente para enfrentar o desconhecido? Como chego a tal ponto? O ponto de encontro entre o tocado e o intocado é o muro a ser atravessado, mas como se chega até esse muro? Como reconhecê-lo uma vez em que o alcanço? Novamente estou no ponto em que reconheço que já disse, tantas outras vezes, o que digo agora. Esse meu questionar não é novo mas apenas uma repetição de um mesmo caminho. Acho que nunca chegarei a ultrapassar-me. Isso invalida o movimento? É essa a questão que devo resolver agora. Retraçar um caminho não seria uma nova possibilidade de ultrapassar-me? Ultrapassar o ponto em que cheguei anteriormente? Mas se compreendo que tudo se altera então nunca chegarei ao mesmo ponto, nem darei os mesmos passos, porque uma vez atravessado um ponto ele deixa de ser o mesmo ponto, ou ainda, deixa de ser um ponto, mas agora faz parte de uma linha sinuosa e inescrutável, que jamais serei capaz de encontrar novamente. Meus olhos se alteram tanto quanto essa linha. Então talvez fitar não seja uma preparação, mas uma digestão contínua de um mesmo objeto. Fitar talvez seja a observação da mudança operada na, e a partir da, coisa. De que vale isso então? Se nada permanece. Será preciso olhar a pedra ininterruptamente para compreendê-la como pedra. E mesmo despida de vida a pedra se altera. Mas se essa alteração não depende da vida, então o que é vida? Ou talvez a vida não seja algo interno e inerente de cada ser, mas externo, a vida nos vem de fora, a vida é essa coisa que respiramos o tempo todo que nos altera, como uma pulsação, então dependemos dessa pulsação que nos é forçada para alcançar algo que em algum ponto tenha um significado.
Talvez não se cave, mas somos cavados e ressignificados por cada instante de vida. Então o tempo seria uma ferramenta. Mas qual a utilidade de tudo isso? Realmente…
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Cruzeiro do Sul
Talvez aquela cidade fosse uma cidade fantasma. As casas que compunham as ruas eram todas feitas de madeira sólida ou cimento e cal e o vento que soprava nas árvores que surgiam pontualmente nas calçadas as vezes fazia com que as folhas fossem varridas da suspensão dos galhos ao chão e que ali, quando não se amontoavam, rangiam como os degraus de uma escada antiga quando uma menina subia correndo ao seu quarto depois de ser pega em flagrante escutando a briga entre seus pais que a olhavam com olhos beirando entre lágrimas de raiva e susto eminente. Ali, perto do que teria sido um grande jardim, mas mal cultivado como são todas as tentativas de tornar uma cidade ecológica, e que era apenas um terreno de médio porte recoberto de grama sem nenhuma árvore ou banco ou flor, uma falha de praça, os meninos brincavam mesmo sem bola correndo um atrás do outro, um de cada vez, como se um fosse um tigre o outro um antílope, mas isso quando tinham entre cinco e sete anos, exatamente cinco e exatamente sete anos, porque eram apenas dois, eram raras as crianças naquela cidade que podiam brincar, que queriam, com um prazer secreto, ralar os joelhos no asfalto ou chegarem em casa com a barra das calças sujas de lama, na verdade eram apenas eles dois, que não conheciam mais ninguém e que talvez pudessem ter sido fantasmas naquela cidade, mas que iam à escola todos os dias, inclusive aos sábados pela manhã, mas que tinham as tardes todas meio infestadas daquela calma selvagem das criaturas largadas à própria sorte, que comiam quando tinham fome, dormiam quando tinham sono, atiravam pedras ao rio por puro prazer sonoro e esfregavam as mãos nos cabelos com uma delicadeza ainda não descoberta, ou tentavam. Passavam correndo os carros pelas ruas com seus roncos e, se alguém pudesse relacionar uma coisa tão simples sem pensarem que é tolice, diriam que os homens nunca param de roncar, entre o sono, o trajeto até o trabalho, o ruminar de ideias ou a mecanicidade de seus gestos, sempre uma aparente dormência sonora reverberando desde as narinas até a ponta dos dedos do pé, ou quando o vento bagunçava os restos dos fios de cabelo que possuíam ou o farfalhar das roupas.
Talvez não fosse justo pensar que tudo era um movimento controlado, mas quando se tem objetivos além de constituir o momento com o pouco que se tem em mãos, talvez o nada, cada movimento é apenas a construção de um momento futuro o que possivelmente empobreça o presente, torne-o simples vulgaridade, sempre uma via para se chegar à. Quando se é criança não se tem essa expectativa. Quando se é criança e ainda não foi adquirida a habilidade de contar os segundos nos relógios analógicos não há causalidade o segundo futuro não existe até que ele seja presente e é engraçado que apenas nas mãos da infância que se consiga segurar o segundo como se fosse uma pedra enquanto a idade a erode em areia. O máximo que se consegue tirar do tempo é torná-lo vidro.
Talvez passe-se uma vida inteira tentando torná-lo vidro. Marcadamente às três, às seis e às doze horas o pequeno sino de metal enferrujado, nada trabalhado como o eram os sinos da antiguidade em que a igreja representava um tesouro, mas mais rudimentar, como os sinos que se tem nas fazendas e que reverberam à hora das refeições, como os sinos que se pendura nos pescoços das vacas, tocava. Não que alguém prestasse atenção. Mas os meninos que, vez ou outra, estavam largados, estirados na grama, olhando o vento abrir e fechar espaços entre as folhas numa árvore, deixando raios de luz trespassarem a sombra, ainda ouviam o badalar. Aos domingos, depois da missa, despontavam grandes narizes das portas da igreja, buscando frangos assados e batatas cozidas, a grande maioria os encontrava, talvez não uma velha que cozinhava só para si e que esperava chegar em casa para descongelar sua ultima refeição da semana antes de cozinhar o que seriam todas as refeições da próxima para economizar tempo. As vezes as crianças comiam amoras direto do pé. As vezes roubavam goiabas dos galhos que pendiam por sobre os muros da igreja, mas ninguém as comia para não arriscar comer bichos. O rugido dos motores após a missa. As vezes o trinado de um pássaro continuava, ferindo o silêncio da rua por trás da igreja que a noite era o abrigo dos desiludidos. Naquela mesma rua, depois que os meninos aprendessem o compasso dos ponteiros apenas para saberem quanto durava uma reza, eles sairiam quando todos mantivessem os olhos fechados, para encontrar o Cruzeiro do Sul em segredo, assim como seria um segredo o beijo primeiro e ultimo. Depois do toque dos lábios eles dois nunca mais se veriam a não ser quando olhassem, um para aquele terreno gramado, o outro para a única árvore da rua infestada de prédios de uma outra cidade que também poderia ser uma cidade fantasma.
Talvez naquela cidade os ponteiros corressem demais, ele pouco tempo teria para observar o vento abrir caminho para a passagem de luz, jamais ouviria o sino tocando. Ali os papéis existiriam em montes sobre sua mesa e ele os passaria de um monte ao outro, diminuindo um, aumentando o outro, enchendo as folhas de grafite, enchendo a mesa de ciscos de borracha, ali ele passaria as tardes e as vezes adentraria as noites e madrugadas para poder ser considerado um iniciado, alguém capaz de participar também daquele movimento de carros, criar o ronco dos motores e roncar na cama a noite.
Talvez algum dia roncasse, mas por enquanto dormia pouco, quando conseguia dormir, porque lhe custava todo o seu silêncio possuir a capacidade de integrar-se, fazer o mundo girar lhe custava toda a força, tal qual Sísifo. Pelas ruas da antiga cidade o outro aprenderia como se formam as rachaduras nos muros, como os muros podem ser recobertos de algo que não tinta e cores mas do preto das palavras que saiam de canos que não roncavam mas sussurravam sua cor passiva nas reentrâncias do cimento, ele aprenderia o que é a falta da maneira mais dolorosa porque antes nunca tivera fome e agora, quando saltava a janela de seu quarto e ia nas pontas dos pés para fora dos portões da casa até ganhar a rua, depois as ruas, e sentir o vento frio da madrugada lavrar e calejar a pele que antes tinha cor das tardes no gramado e que agora se tornava cada vez mais amarelada, tanto que alguém poderia pensar, quando o vissem de esguelha passar, que estava adoentado, que emagrecia demais, que não comia, que deveria estar preocupado demais com os estudos quando, secretamente, era todo cama ou todo rua, numa intensidade ainda animalesca, lentamente esquecendo-se do tique do ponteiro, medindo-se apenas pela intensidade da luz que adentrava pelas frestas da janela do quarto. Os papéis rolando pelas ruas na madrugada o ensinariam como é que se dá o movimento em fluxo, e já não queria saber caminho algum mas deixava-se levar por um mero impulso de virar naquela esquina, de sentar-se naquele banco, de sentir queimar por dentro algum líquido viscoso até que o céu começasse a mudar de cor, quando, então, seria necessário buscar um caminho para poder esconder novamente sua existência calma e meio inútil a não ser para ele mesmo. Não, para ele mesmo também. Enquanto o outro, que cultivava o roxo sob o olhar e que empalidecia de cansaço, mas que nos finais de semana, vez ou outra se deixava levar a um parque para ver árvores quase iguais àquelas da infância. Sem saber porque ele derrubaria, no futuro, algumas árvores também, para perpetuar a visão primeira de quando chegou àquela cidade talvez fantasma e tão atulhada de gente, o que não fazia muito sentido, perpetuar o espanto, o medo, a má localização de seu sangue pelo corpo, mas ele viria a construir coisas que saiam do papel mas não deixavam de ser frágeis como papel. O cimento com que ele revestiria seus muros talvez tivesse a mesma origem daquele que o outro cobria de não-palavras e não-frases, os dois tentando entender alguma coisa além de si que ondulava como quando as pedras atiradas atingiam o rio.
Talvez o avanço tecnológico da cidade não tenha sido rápido o suficiente para acompanhar o avanço selvagem da mente que fica para trás e que nisso tem fome, que quer digerir o mundo e o vomita, com todo o corpo, em palavras as vezes desconexas, as vezes belas, mas sempre vômito, sempre repudiadas. Se algum deles chegaria a amar? Não.
Talvez porque amor exigisse um corpo, e o dos dois definhava, talvez exigisse alma, e enquanto um empregava toda a sua em criar muros o outro a desgastava em ruí-los. Se amor exigisse instinto, teria existido só uma vez, numa rua atrás da igreja, sob o Cruzeiro do Sul. O mais próximo que chegariam de uma intensidade capaz de ser nomeada “amor” seria sua dedicação a exprimir a sensação de sufoco que as cidades fantasma causavam. Um não aguentava mais, sem sequer perceber, o farfalhar das folhas das árvores e por isso tentava encapsulá-las, restringir inutilmente o movimento do vento entre as ruas, abrandá-lo, para que as ondas e oscilações não fossem tão ruidosas, para que os roncos dos motores e das máquinas todas humanas se propagasse em tal intensidade e com tal funcionalidade que não seria necessário o trinado do pássaro para que o silêncio fosse uma mera abstração, utopia daqueles que precisavam de concentração para retirar as pedras lançadas ao rio, como o outro, que se entregava todo a essa tarefa e enchia muros, depois folhas de caderno, depois páginas impressas de uma impressão indescritível de que havia pedras demais no fundo do rio, e que era o que o levava, ainda na força daquele instinto indomado, a encontrar pérolas em formatos de palavras, era isso o que ele queria, que as pedras lançadas fossem transformadas pérolas. Mas o outro se havia esquecido do rio, essa infância plena de nadas fora esquecida e as árvores que ele cercava agora só o lembravam de um dia ter deitado num campo gramado e olhado como a luz entrava, provavelmente estivesse sozinho quando isso tudo aconteceu, mas era tão distante, tão tão distante do seu sofá de luxo no décimo quinto andar do prédio que sequer seria possível para ele considerar a lembrança como algo a mais do que ficção.
Talvez fosse assim que ele narraria seu passado, se não estivesse tão ocupado tentando construir um futuro concreto.
Talvez o outro narraria seu passado, se não estivesse tão ocupado em retirar as pedras através de palavras; talvez seja assim que ele narra seu passado.