Um conto de Adriano B. Espíndola Santos
Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor dos livros Flor no caos, 2018 (Desconcertos Editora), e Contículos de dores refratárias, 2020 (Editora Penalux). Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem crônicas e contos publicados nas Revistas Berro, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura & Fechadura, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Navalhada
traspassado o clamor retumbante ensurdecedor rebuliço interior o calor mais infernal do mundo parei para pegar um ar vê se pode pegar um ar ali meu patrão falou vai pegar um ar rapaz e claro entregue essas coisas já pedi uma água com gás e pedras de gelos muitas pedras adverti que não queria natural precisava de algo para me refrescar antes que falecesse mesmerizado um homem um velho na verdade caminhava do outro lado da rua com um pacote surrado na mão mão é bondade pacote é bondade eram restos que se complementavam um ser que andava a dois quilômetros por hora superando somente o vento que vento não tinha vento algum ficou parado colado a um posto talvez por medo de se desequilibrar esperou fechar o sinal o trânsito movimentadíssimo o velho queria atravessar virou o rosto seguidas vezes lentas vezes claro tentando se localizar intuir se realmente estava ali saber se estava mesmo vivo talvez o sinal fechou o homem hesitou porque um motoqueiro acelerava de propósito forçava o ronco como se estivesse pronto para arrancar num racha o velho se esgueirava tentava passar por duas motos mais atrás fugindo do motoqueiro opressor avançou com parcimônia sem pressa ou sem condições de ter pressa se espremeu por entre dois carros grandes tipo pickup dois para-choques imensos fortíssimos pensei o velho é mais corajoso que eu que nada o velho era necessitado precisava cruzar que jeito os carros potentes poderiam ter afastado um milímetro que fosse não o fizeram comeram pipocas assistindo a uma cena bizarra o da frente tinha um adesivo cidadão de bem fechado no ar condicionado não dava nem fé esperei angustiado o velho passar finalmente avançou para outra fileira mais carros dessa vez pequenos mas as motos ziguezagueavam cortavam o velho pôs as mãos no peito para evitar algum confronto fechou os olhos fechei os olhos o velho avançou mais uma ala tinha de conseguir não havia escapatória o sinal contava apitava para abrir o velho se aperreou uma velha bondosa num carro caindo aos pedaços se reconheceu na fragilidade recuou deixou o velho passar a velha não tinha controle dos mecanismos do carro estropiado o carro deu um solavanco não chegou a atropelar o velho mas o toque o derrubou a velha desceu para socorrer me levantei para olhar os motoqueiros se levantaram para olhar os homens e as mulheres dos outros carros se levantaram para o olhar empinaram os rostos o sinal abriu todos parados sem vestígio do velho a velha se acocorou a velha tentou levantar o velho corri abandonei o meu posto deixei cinco reais não esperei o troco peguei o velho a sua outra mão que rapaz generoso a velha disse com a voz arrastada perto de perecer botando os bofes para fora o velho emudeceu ou talvez fosse mudo assustado como eu sufocado como eu acabado como eu deixamos a vida passar até o próximo sinal a lâmina afiada ceifará a carne lânguida a morte chegará para o motoqueiro opressor pro motorista da pickup pro curioso pro perguntador pro cidadão de bem do adesivo cidadão de bem que não saiu do carro entupido de ar condicionado silêncio o pacote se rasgou caiu uma navalha grande lustrosa consumada a navalhada no pescoço do motoqueiro espezinhador ruborizou o tempo descontinuou
Jp santsil
cara confesso que fiquei acelerado na leitura depois no entendimento por conseguinte no pensamento que pensei que minha cabeça vai explodir, confesso tive que parar no meio Que lombra literária essa ler sem pontuação gratidão pela experiência