Um conto de Alex de França Aleluia
Alex de França Aleluia é professor de Literatura, escritor e Membro da Academia de Letras do Brasil, Membro do Núcleo Acadêmico de Letras de Buenos Aires, Membro do Núcleo Acadêmico de Letras de Portugal, membro do Núcleo Acadêmico de Valparaido no Chile e da Academia Sinopense de Letras.
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O ESPELHINHO QUEBRADO
“Não quero lhe falar meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos, quero lhe contar como eu vivi e tudo que aconteceu comigo”, cantava a jovem Marli que pegava todos os dias o mesmo trajeto para ir ao trabalho. Fazia tudo que pediam. Trabalhava em uma casa de família no Jardim Maringá, região nobre de Sinop. Seu trajeto era feito por um ônibus sujo e sem segurança nenhuma, mas isso não a incomodava. Levantava sempre às 04 da manhã e dava banho em sua mãe e a deixava pronta para também passar o dia.
De casa simples, construída em um dos bairros mais afastado do centro da cidade, ruas ainda sem asfalto e iluminação precária davam o arremate do esquecimento do poder público. Era assim todos os dias na vida de Marli. Acordava cedo, dava banho em sua mãe paraplégica e organizava a casa. Às 6h da manhã, pegava o primeiro ônibus com destino a rodoviária municipal e de lá fazia a transição para outro lado da cidade.
A música de Elis Regina era seu passatempo. Escutá-la trazia paz e uma angústia profunda em sua real situação. Mas tinha em mente de que quem canta, espanta os pensamentos ruins. Ao entrar no ônibus, sempre se dirige ao mesmo banco, o do lado do motorista à frente da porta de descida. A música vai abrindo caminho para um olhar distante de uma paisagem comum. O chacoalho do ônibus ajudava em sua dança discreta no banco. Ela acompanhava atentamente os carros que passavam por ela. A cada carro, pessoas diferentes e uma nova história surgia em sua mente, sempre mostrando uma família feliz e sem problemas. Era realmente um conto de fadas.
Mas Marli gostava particularmente de um carro que sempre ultrapassava o ônibus no mesmo horário e no mesmo lugar. Era um carro grande, não sabia decifrar qual marca, mas preto e sempre muito impecável. Em suas observações e histórias criadas, era ela mesma dirigindo o carro com sua filha, levando-a para a escola. Pelo uniforme na criança, apresentava um logo de uma das escolas particulares mais admiradas pelos pais. A cada dia, a cada ultrapassagem, Marli contava uma história. Conversava com a filha sobre o que fariam juntas após o dia do trabalho.
– Mãe, o que vamos fazer hoje? – Perguntava a menina.
– Vamos para a feira, comer um belo churros. O que acha? – O sorriso era sempre dado após a programação.
– Adorei mamãe. Amo você! – A menina se esticava para dar um beijo no rosto da mãe.
Todos os dias era um programa diferente. Mas a alegria de acordar e ir enfrentar o dia, era a que contagiava.
A paisagem também ia mostrando histórias na mente de Marli. No bairro vizinho, já havia asfalto e em alguns quarteirões casas sendo construídas e outras já finalizadas. O mato ainda era a companhia de muitos bairros. O trajeto durava em torno de 50 minutos, mas era o essencial para uma injeção de ânimo na alma de Marli.
Quando a música acabava, era como finalizar o efeito de uma anestesia. Marli caía em si e se endireitava no banco. Ficando mais ereta. Fixando e tentando reconhecer onde estava. Percebeu que já tinha cumprido metade do trajeto. O ônibus já estava lotado. O calor era sempre um passageiro. Marli olhava para todos com muita desconfiança e ao mesmo tempo com ternura. Sempre via uma senhorinha que segurava com muita força uma bolsinha. Sempre em uma parada, a senhorinha se encolhia para dar espaço a outras pessoas passarem.
Os fones de ouvidos, que ainda estão presos nas orelhas, já não tocavam mais nada. Seus pensamentos já cobriam o espaço total da imaginação. Fixada agora em seu dia. Marli, prestes a descer, retirava sempre de sua bolsa que a acompanha sempre, um espelhinho trincado e se olhava, arrumando o cabelo e verificando o batom claro que passava sempre ao sair. Retocava e sempre com o olhar atento girava por dentro do ônibus como se estivesse procurando alguma coisa.
A parada final chegou, enfim. Ao descer, a luz do sol já pressionava um caminhar mais rápido até o outro lado da plataforma. A rodoviária municipal ficava na avenida principal bem próximo a rua do centro. A movimentação era intensa. Rapidamente o ônibus para o Maringá se aproximava e poucas pessoas adentravam. A viagem não chegava a 15 minutos, mas era o ideal para organizar seus afazeres do dia. Sabia que hoje, assim que chegasse, deveria começar pelas camas, retiradas de lençóis e iniciar a lavagem de roupa. Enquanto a roupa ia sendo lavada, organizava os quartos e lavava a louça do café da manhã. Já colocando feijão e arroz para lavar e cozinhar.
A pressa em realizar tudo antes do almoço só era para não atrasar o dia, pois ela ainda precisava passar e guardar as roupas. Além de esfregar banheiros, área da frente e de trás. O dia era puxado. Mas assim ela completava.
Além disso, após o almoço sempre precisava limpar novamente a cozinha. O cansaço chegava, mas quando isso acontecia, os fones de ouvidos serviam como uma máquina que agilizava o tempo e a levava para outra dimensão.
Não tinha filhos? Não. Marli já tem uma pessoa para se preocupar. Sua mãe, paraplégica. Como ela ficou assim? São perguntas que vão e voltam na mente de Marli. Ela já trabalhava nesta casa há mais de um ano e sempre cuidava das crianças da patroa como se fossem dela. Tem apenas 26 anos, mas anos bem vividos. Ela se lembra que quando criança, sua mãe a levava para vários lugares. Não comprava muitas coisas. A diversão se dava apenas pelo fato de estar em lugares diferentes com a mãe.
À medida que foi crescendo, foi se afastando da mãe. As brigas ficaram mais intensas. Na adolescência, Marli já nem falava muito com sua mãe. Tentou até sair de casa para buscar o futuro sozinha, mas algo a prendia ali. Não queria estudar. Não queria ir à escola. Terminou o Ensino Médio no ferro. Hoje, ela entendia a preocupação da mãe. Ela não tem mais uma perspectiva de melhora. Prefere até muitas vezes em trabalhar até tarde.
Finge, quase sempre, que perdeu o ônibus, só para ficar sozinha. Curtindo a brisa, o vento e até mesmo a luz do luar. Sua paz de espírito era no trajeto, ora sonhando com uma vida diferente, ora curtindo o nada.
Na volta para casa, quase sempre desce em um ponto à frente ou atrás do que realmente precisa descer. A caminhada dava a ela o fôlego preciso para enfrentar o que estava por vir em sua terceira etapa do dia.
Sabia que ao chegar, tinha que dar um novo banho em sua mãe, trocá-la. Limpar a casa que pode ter fezes ou urina pela casa. A mãe sabia usar a cadeira de rodas, mas a casa não ajuda muito a sua locomoção e tudo poderia acontecer.
Um certo dia, dia em que a alma preferiu se afastar do mundo, mas o corpo insistiu em ficar na terra. Marli demorou ainda mais para chegar. Sempre seus atrasos duravam uns 30 minutos. Mas nesse dia, dia em que ela pediu perdão a Deus o tempo inteiro, atrasou mais de 1 hora. E ao chegar, suspirando fundo para abrir a porta, e sempre quando chegava já falava com mãe, ela levou um terrível susto.
– Mãe? – Seus olhos automaticamente a procurou pelo chão. E lá estava dona Maria caída ao chão do banheiro. Sua cabeça torta entre uma parede e outra. A cadeira de banho derrubada e a água do chuveiro caindo em cima da história dela.
O filme de terror, de desespero, de vontade de voltar ao tempo, repassava na mente de Marli, com todas as suas lágrimas que se uniam com as gotas do chuveiro. Aos gritos de mãe, com braços firmes, Marli tentava trazer de volta a sua vida, a sua história, o seu fardo, o seu passado e o seu presente.
Não conseguia levantá-la. Fechou o chuveiro e com o celular tentou chamar a emergência que atendeu de primeira, mas que não havia um veículo para enviar naquele segundo. A atendente tentava acalmar Marli, mas os gritos, o choro invadia a linha telefônica como invadia o coração de Marli.
Em desespero, saiu para a rua na tentativa de chamar alguém para ajudar. O primeiro carro que passou, com a luz alta, Marli se jogou na frente com os braços abertos pedindo ajuda. Ele não parou, e ela teve que sair da frente rapidamente.
Marli engoliu o choro, mas continuou firme na rua, na tentativa de parar alguém. Dentro de segundos, um novo carro foi visto no início da rua e prontamente ela, desesperada, se jogou na frente. A luz não deixava enxergar quem vinha. Mas o carro parou e a porta se abriu. Desceu uma mulher, que foi ao seu encontro.
Juntas, levantaram a senhora Maria, colocaram no carro e foram com destino ao Hospital Regional da cidade. A mulher que dirigia buzinava para avisar que estava com uma emergência. Marli com a cabeça de sua mãe em seu colo chorava e tentava enxergar algo do lado de fora. Mas nada. Não conseguia reconhecer nada. Não sabia nem onde estavam. Seu olhar lacrimejante, ajudava em uma longa e triste história. As palavras babadas de “aguenta mãe”, trazia consigo o reencontro de uma vida inseparável.
Quando Marli tinha seus 20 anos, estava morando em um quartinho alugado em uma república de garotas que faziam faculdade. Ela não fazia. Apenas trabalhava. Até que recebeu a notícia de que sua mãe estava em um hospital em coma. Já fazia 1 ano em que as duas não conversavam. Marli entendeu que queria seguir seu próprio caminho, Maria queria que isso realmente acontecesse, mas que o estudo precisava prevalecer. Tentou até matricular a filha em um curso de graduação, o mais barato, mas Marli não queria e isso foi a gota d’agua para a separação das duas.
Maria tinha trabalhado todo aquele ano sem ela, de dia e de noite. De uma casa a outra. De um serviço de empregada doméstica, à frentista, vendedora e tudo que aparecia. Juntou algum dinheiro e deixou guardada. Mas a filha não voltou.
Após alguns dias no hospital, Marli resolveu aparecer. Seus olhos estavam grandes como pitombas. Seu rosto tinha envelhecido mais que a própria Maria. Ao ver ali, sua mãe na cama sem perspectiva de vida, ajoelhou no chão e clamou a Deus. Não foi choro de lágrimas, foi choro de alma. Um choro que começa de uma vontade das lembranças serem ressuscitadas até a realidade em que estava vivendo. Os braços queriam poder levantar e abraçar, a mente queria reviver as histórias e as aventuras de vida. E lá estava Marli com a mesma sensação dentro de um carro desconhecido. As cenas quase se aglutinaram em um só momento. Em uma só sensação.
A porta do carro se abriu, trazendo de volta Marli que viajava pelo tempo como se tivesse esse poder, mas a dor era a única prova de que a viagem era real. Enfermeiros chegaram com a maca. Colocaram-na e a levaram para dentro. Um dos atendentes barrou o acompanhamento.
Marli viu sua vida girar mais uma vez. As paredes pareciam andar, girar, até agarrar a si mesma, quando tudo escureceu. Seu nome era ouvido longe, muito longe dali.
– Sua mãe caiu do telhado. Ela está em coma. Como? Não estou entendendo? – As falas se misturavam. Tudo estava tão confuso e tão claro ao mesmo tempo. Ficou viva? Sequelas? Não tem ninguém. Somente eu. Falas e falas. Memórias e memórias.
Em sua casa, após a queda de sua mãe do telhado, Marli não conseguia olhar para nada sem ter a sensação de ela poderia entrar a qualquer momento dando broncas e puxando sua orelha. Por todo lado que se olhava, se via dona Maria. Ao ir até o guarda-roupas para pegar algumas peças para levar ao hospital, Marli viu uma bolsinha de sua mãe. Aquela que ela andava para cima e para baixo. Abriu e lá estava um espelhinho trincado. Automaticamente, seu olhar começou a se ver quando criança.
Brincava na pracinha, quando começou a gostar de um menininho que também brincava. Sempre vaidosa e geniosa, correu até a mãe para que ela passasse batom e pudesse se ver em um espelhinho que carregava sempre. A mãe abriu a mesma bolsa que ela estava agora nas mãos e pegou seu espelhinho. Mostrou a ela. Que pegou de sua mão, atropelando a da mãe e, sem nenhuma noção de cuidado, deixou cair ao chão, trincando.
Com medo, Marli correu para o parquinho mais uma vez. Deixando o espelhinho ao chão. Mas de longe, viu sua mãe pegando e limpando. Marli viu, naquele momento, quanto aquele espelhinho era precioso para ela. Conseguiu entender a cara de tristeza que até então era de brabeza. Uma imagem substituiu a outra. Guardou consigo o espelhinho.
Quando caiu em si, estava em uma maca, dentro de um quarto com uma mulher a olhando. Ao abrir os olhos, ainda estava confusa. As lembranças se enrolavam em um filme sem edição.
– Você acordou? – Disse a mulher que estava ao seu lado.
– Cadê minha bolsa? Cadê? – Apavorada olhava para todos os lados.
– Calma menina. Está aqui. – A mulher já estava com a bolsa nas mãos. Marli abriu apressadamente, pegou o espelhinho e abraçou com um alívio, misturado de uma ansiedade. A mulher viu o espelhinho trincado e começou a passar mal, ficando zonza, mas Marli não percebeu, porque suas memórias mais uma vez voltaram. Dando impacto de realidade. Cadê minha mãe! Gritava a Marli sem medo e desesperadamente.
A mulher pegou em suas mãos. Apertou firme e com o olhar fixo e aflito, apertou os lábios e balançou a cabeça no sentido de não. A dor da vida é a morte. E ela passava por ali, mas dessa vez sem segunda chance. Marli teve a dela. Mas ao invés de viver a sua vida, vivia a dos outros. Sentia um peso, um carma, algo que a deixava sempre parada, mesmo em movimento. Mas agora com a notícia, ela realmente foi transportada para a atualidade, para a realidade e viu que a sua vida era boa, mas ela quem a fazia ruim. Com sua mãe, ela entendia que era nada. Que não podia ser nada. Sem sua mãe, ela percebeu que definitivamente agora não é nada.
– Como? Por quê? – Essas perguntas foram incorporadas à dor, à lembrança, à alegria, à tristeza. Uma mistura que deixava apenas a vontade de voltar. De sair. De fugir para algum lugar. A dor foi a única que não foi tirada do seu peito. Foi a única que não foi tirada do seu coração.
Marli pegou seus fones de ouvidos e os colocou e bem alto cantava NÃO QUERO LHE FALAR MEU GRANDE AMOR, DAS COISAS QUE APRENDI NOS DISCOS, QUERO LHE CONTAR COMO EU VIVI E TUDO QUE ACONTECEU COMIGO. Viver é melhor que sonhar… Sonhar, sonhar! As lágrimas já se unificavam com a baba. Tudo se unia. A enfermeira teve de dar um calmante para fazê-la descansar.
Marli despertou depois de algumas horas. Não parecia aceitar aquilo que está vivendo. Passou a mão debaixo do travesseiro e pegou o espelhinho. Tentou se levantar e quando olhou viu a mulher que a ajudou sentada em um banquinho de madeira bem em sua frente.
Marli ainda com olhos inchados, com o espelhinho nas mãos, olhava firmemente para a mulher que estava ali.
– Ainda aqui?
– Sim. Não poderia deixá-la. Sei o que está passando. – Respondeu a mulher.
– Sabe mesmo? Será? – respirou firme e vociferou – Pode voltar para a sua vida perfeita. Eu reconheci o carro quando desci ontem com a minha mãe. Eu sempre te vejo ultrapassar o ônibus em que estou todas as manhãs. Sempre alegre. Feliz. Com uma menina linda, também alegre e feliz.
– Menina? Que menina? Eu não tenho filhos. – As informações dadas a Marli a deixaram confusa e curiosa. – Você vê uma menina comigo?
– Sim. Ela está sempre sorrindo. E você também. Loirinha. Sempre uniformizada. Você nunca teve filhos?
– Tive. Uma menina. Ela faleceu há dois anos. Estava levando-a para a escola, quando ela pediu um espelhinho para passar um batom. Fui no porta luvas pegar e perdi o controle do carro. Capotamos. Ela não sobreviveu. O espelho parou do lado dela, trincado. – A mulher abriu sua bolsa, pegou o espelhinho trincado do mesmo modo, do mesmo jeito e levantou mostrando para Marli, que baixou seus olhos no seu espelhinho. Era de plástico e com forma circular. O risco do trincado pegava de um lado até o outro. As duas começaram a chorar. – Viu? Todo mundo tem um espelhinho quebrado que carrega para sempre.
Hallex Owen