Um conto de Ana Cláudia Trigueiro
Ana Cláudia Trigueiro, natalense de 46 anos, é escritora e psicóloga. Começou escrevendo histórias infantis, que lia para os filhos pequenos antes deles dormirem. À medida que foram crescendo, ampliou sua produção para contos, crônicas e romances. Tem alguns prêmios literários em seu currículo e seis livros publicados. Todos retratam histórias e lugares da nossa terra potiguar em contos e romances: Em busca do bem: aventuras de um adolescente cristão (infantojuvenil, 2013); Em um outubro rosa (relato de uma experiência com o câncer de mama, 2014); Francisca (romance de época), O Mistério do Verde Nasce (romance de época, 2018); João e Maria do engenho (infantil, 2018) e A ira de Judas – contos assombrados (coletânea de contos, 2018).
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CAIR ATIRANDO
– Quer dizer então, que agora estamos fodidas de vez?
– Me poupe dessa sua boca suja!
Detestava os palavrões que a filha declarava em alto e bom som, apenas para vê-la enervar-se. As coisas já andavam muito ruins para ainda ter que aturar aquela imatura e suas provocações: perdera o emprego há cinco meses e sacara a última parcela do seguro desemprego. Não teria como pagar o próximo aluguel, nem sabia para onde iriam, caso recebessem ordem de despejo.
Agora lavavam juntas a louça do almoço e ela tentava explicar a situação crítica em que se encontravam. Havia deixado currículos em vários escritórios, mas o desemprego atingira seus piores índices naquele mês. O ex-patrão falido se comprometera a indicar seus serviços de escriturária para antigos fornecedores, mas há algum tempo não atendia suas ligações.
– Mãe, isso é hora de tu se preocupar com a merda do meu jeito de falar? Estamos fodidas! FO-DI-DAS!
Respirou fundo. Um berro preso à garganta, um tapa formigando na palma da mão. Lembrou-se do cafajeste que a engravidou e sumiu do mapa. Lembrou-se do medo de ter a filha, sem um pai que a ajudasse. Lembrou-se da alegria de ver o bebê pela primeira vez, naquele hospital de corredores quentes e lotados.
Economizaria suas energias. O motor da máquina de lavar pifara e ela teria que passar a tarde lavando as roupas que as duas acumularam nas últimas semanas. A filha não a acompanharia, nem adiantava pedir. Ajudar a lavar uma louça era o máximo a que ela se dispunha.
Meia hora depois tomou coragem para chegar ao tanque da minúscula área de serviço. As peças descansavam no molho. As de cor branca, entupiam um balde. Calcinhas, sutiãs e meias espremiam-se dentro de uma bacia. Acocorou-se e começou o rosário de esfregação que a aguardava desde a manhã.
Lembrou da bisavó, paupérrima lavadeira de rio por toda a vida. Pensou com amargura, que três gerações depois, encontrava-se exatamente no mesmo ponto. Talvez estivesse ainda um passo atrás, pois a bisavó contava com a amplidão do rio para desembaçar os olhos foscos pela vida, enquanto ela, tinha apenas uma parede lívida à frente.
A avó fora costureira e garantira o sustento dos cinco filhos, vendendo as chamadas “roupas de carregação” nos bairros vizinhos ao seu. Um câncer de mama a levou cedo. Obstinada, ela ainda conseguiu pagar os estudos da filha caçula. A mãe, Josefa, fizera o magistério, mas seus sonhos de emancipação foram interceptados pelo casamento, destino único daquela descendência. Infelizmente os sonhos viraram pesadelos: por muitos anos sofreu nas mãos de um marido violento que ela finalmente denunciou, após ser surrada pela enésima vez.
– Merda de roupa manchada!
Esfregava com força, a camiseta da filha. Dedos dobrados, friccionando o pano quase até rasgá-lo; dentes trincados, lágrimas escorrendo pelo rosto furioso. A bisavó banhava-se no rio, ela chorava.
Quando cansou, deixou-se cair no chão molhado. As mãos ensaboadas sobre a bacia. Fodida! Fodida desde tempos ancestrais. Fodida de bisavó, avó e mãe! Todas atingidas pelos infortúnios que levavam as mulheres daquela família ao desespero: pobreza, doença, violência, desemprego…
No dia seguinte, a filha a encontrou preparando sanduíches. Demorou meia hora para perguntar o que significava aquela caixa de isopor e aqueles embrulhos de papel laminado.
– Estou fazendo o que as fodidas da família fazem quando estão acuadas. Daqui por diante, lave suas próprias roupas ou foda-se com suas camisetas encardidas. Saiu sem ver a cara de espanto da filha, que nunca vira a mãe falar um palavrão sequer.
Foi vender sanduíches na praia e só voltou quando vendeu todos os vinte que havia feito. No dia seguinte fez mais vinte. No outro, trinta. Estava furiosa com a vida. “Foda-se você!” Gritava intimamente. “Foda-se você!”.
Caíra atirando contra a sorte. Enfrentaria aquela sina dos infernos. Reagiria como as outras reagiram. Lutaria contra o destino asqueroso que as fodia a cada geração. A bisavó esfregara roupas, a avó costurara, a mãe denunciara o pai, ela venderia sanduíches. A filha que aprendesse, e rápido! Ela seria a próxima a ser caçada. O destino não a pouparia, afinal, ela era mulher… e era daquela família.