Um conto de Anderson Estevan
Anderson Estevan tem 32 anos e trabalha como jornalista. Foi um dos 30 selecionados para a edição de 2018 da oficina de formação de escritores da Casa das Rosas, o CLIPE, que contou com mais de 1.000 inscritos naquele ano. Também faz parte do coletivo Água na Peneira, composto por jovens escritores.
***
Domingo
Era domingo, me lembro bem. Estávamos na casa do meu irmão. A tevê ligada, a vida vazando pelos cantos. O almoço com aquelas pessoas que nasceram com o mesmo sangue. O macarrão esfriando na mesa, a oração, o baque do alumínio, o suspiro da cerveja borbulhando, as conversas insossas. Era domingo, com certeza. Como a vida toda. Era domingo. Seria assim mesmo, em meio aos parentes, vizinhos, crianças destrambelhadas. Já havia decidido. Ninguém se esconde para sempre, a verdade precisa emergir. Mesmo com a garganta indo e vindo, o vômito represado, as mãos suando, a cabeça dando redemoinhos. Mesmo com o fogo do mundo nos calcanhares. Essas pessoas no sofá precisavam saber de tudo. Eles, a família, esse amontoado de gente tão igual, tão diferente de mim. Juntos à mesa, se dividiam entre o futebol ecoando na televisão e as amenidades. Já que a Copa da várzea, o futebol de verdade, voltaria só no ano que vem. Rubens, meu irmão, conduzindo a churrasqueira, se gabando das mulheres que ele dizia tão gostosas quanto os filés de carne na grelha. Os tios rindo, os primos abrindo refrigerantes, a mãe organizando as coisas, equilibrando lasanhas com as mãos cansadas. Mãos que já não sabem para onde ir desde que o meu pai se foi. Mãos sem bússolas ou sentidos. Eu no meio de tudo, de todos, me levantando, por favor me dêem atenção. Preciso falar de algo, preciso que ouçam. E depois podem fazer o que quiserem. Nem precisa concordar, não. Todos de olho. Tias, avós, sobrinhos. A atenção todinha em mim. Já não consigo dormir, meus dias são traiçoeiros. E tudo porque tenho escondido algo que tem me matado por dentro. Então, vou dizer em uma só toada. A dor será menos sentida. As sirenes, os helicópteros, a vinheta que todos já conhecem. Interrompemos a programação para um anúncio especial. Espera aí. Vamos ver o que aconteceu. A polícia localizou, na região da Vila Araucária, próximo à rua Lagoa da Confusão, o famigerado monstro que assola a vizinhança. Monstro? Que monstro? Ah é, falam que ele tem duas cabeças. Ué, mas eu ouvi dizer que é metade do corpo cavalo. Não era um homem-peixe? Bicho bom é bicho morto. Tem que matar, onde já se viu, um negócio desses andando por aí. Eles têm que proteger as nossas famílias. Eu então, de olhos aflitos, coração dando socos na barriga, grudado na tevê com essas pessoas. A câmera passeando de helicóptero, dando voltas no bairro, circulando a casa abandonada no fim da rua. Que monstro é esse que ninguém sabe, ninguém viu? Eu quero é mais que deem bala nesse bicho aí. Querem mais é que eu morra junto com ele. Querem é que ele me mate, acabe comigo. E que, sob nenhuma perspectiva, estivesse alinhado com essas pessoas, essa família. Qual família? O fato é que nunca pertenci a lugar nenhum, nem a ninguém. Meus dias seguiam rasos, incompletos, com minha mãe e o Rubens, como polos opostos do mundo. Eu fazia o possível para ir bem nos estudos, deixar que os vícios não me consumissem, mas aqueles tempos eram vorazes. O fim da adolescência era complicado, minha mãe dizia. Ela sabe de tudo. Meu irmão já achava frescura, bastava trabalhar que essa coisa toda iria embora. Ou eu iria embora. Suicídio, sabe? Reunia força suficiente para seguir, com o desejo de que tudo passasse alguma hora. Não passou. Mas foi o suficiente para que pudesse encontrar o seu toque, a sua vida pulsando nos olhos. Foi em uma noite chuvosa. Me deixava escaldar na água, as ruas vazias, buzinas distantes, faróis perdidos. O ouvido atento. E você se arrastando entre as casas, abraçando paredes para não cair. Eu nem pensei na hora, te agarrei nos braços, levei para a casa abandonada no fim da rua, te tirei do molhado. Eu te chamei meu anjo, mesmo você não me dando uma palavra, um nome ou apelido, mesmo não tendo asas nas costas. Meu anjo. Pois só um anjo poderia me socorrer assim. Interceder por mim. E os dias foram passando. A vida foi passando, e o meu anjo foi ficando mais forte, mais vistoso. A plumagem esbelta. Levava um prato de mingau antes da escola. Um misto quente pela tarde, coca-cola. Até que pudesse novamente responder por si. Nunca me disse uma palavra. Mas seus olhos falavam, os tentáculos desenhando figuras no ar também eram suficientes. O simples fato da sua existência, tão diferente quanto a minha, me bastava, me salvava. E, assim como meu anjo, eu também recuperei as forças, enfrentei meus medos. Me apaixonei. Definia o que importava nos intervalos de antes de depois de te encontrar. Ficávamos quietos, mudos, com os olhos cruzando galáxias. E tudo o que poderia ser dito, todas as palavras pareciam tomar forma dentro da minha cabeça. Consegui me reerguer, até a minha mãe notou que o meu anjo me fazia bem. Talvez ela fosse a única a te aceitar, meu anjo. A única. Mesmo que todas as dores do mundo fossem morar em seu peito. E isso já me bastava. Por isso, bem no meio do domingo, direcionei minhas armas e canhões para aquelas pessoas que nunca me entenderiam. Mas a televisão, meu anjo, e os homens maus me impediram. Isso, vai, vai, mete bala nesse bicho. Cadê ele, Orestes? Ué, mas a polícia não achou? Vai para internet, vai, Jéssica. Vê se eles sabem de algo. Ela não sabia. Ninguém sabia. O futebol voltando de pouco em pouco, a calmaria também. O domingo. Tudo como deveria ser. Ah, você não queria falar? Levantou, fez discurso. Vai logo que já eles acham esse monstro aí e a programação volta. Não quero perder detalhe disso. Esquece, não é nada, não. Certeza? Tenho sim. Não é coisa de política não, né? Não é nada. Só esperança, coisa pequena.