Um conto de André Balbo
André Balbo é escritor e editor da Lavoura. Autor de Agora posso acreditar em unicórnios (Reformatório – prelo).
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A formiga
Sobrava tempo para tudo, principalmente para o esquecimento.
Silvina Ocampo, “O castigo”
De frente para a penteadeira, na falta de espelho Lionel olhou para uma formiga esmagada na parede. O abdome, mesmo rompido, mantinha a crocância anterior e a cabeça, arrebitada pelo rigor do dedo grosso, parecia um pequeno prego. O quarto era tão branco que o breve cadáver, feito nódoa, implicava uma interrupção da ordem natural. Evitando de lamber os dedos, Lionel dobrou as próprias pernas, idênticas às do inseto, e se esticou na cadeira que um dia fora maciça, deixando que a mão enorme metesse uma e outra vez a colher de sopa no vidro de um quilo de geleia de pera com limão. O rótulo, mínimo, mostrava um pato branco de gravata e a inscrição 1918, ano em que a Fundação entrara para o ramo das geleias. Estando ali trancado, indiferente à varanda vazia e de costas para a porta esquecida, as pequenas distrações eram como uma memória antiga: grandes indícios. E nos intervalos entre coisa alguma e qualquer outra, Lionel entocava à boca uma colher cheia do doce azedo inexplicável, oferecendo à língua as gengivas altas, e inflava o peito musculoso com um ar de grande importância; proibido de comer carnes e ervas de qualquer tipo, sob pena de morte, a geleia era seu único sustento. Assim abastecido, dançava o reto de sua coluna contra a escoliose de madeira. Era um instante de comando.
Um instante é suficiente. Em especial no caso de Lionel, que não faz a menor ideia do que vai acontecer. Há sempre um tempo, futuro, que se esconde no momento de sua irrupção. No caso deste conto, o entremeio em que um novo personagem, Jabu, assaltará com um pontapé contra a porta, apontando a pistola com a mão esquerda. Mas será como se o primeiro já soubesse disso, tamanha é sua imponência diante do fato.
Fique calmo, Jabu, e ao pedir isso sem tirar da bocarra a colher melada era como se mastigasse um rugido antigo e interdito. Girando consigo a cadeira débil, olhou para a varanda de qualquer modo que não de soslaio, para ouvir do estarrecido viajante Como você sabe meu nome? Pequeno e esbaforido, mais esbaforido que pequeno, era como se tivesse chegado ali a galope. À camisa em farrapos, violeta, faltavam os botões habituais, substituídos por um único botão de ouro. O braço direito, tão colado ao corpo, parecia o prolongamento maldito de alguma deformação no tronco. Não oferecia intimidação.
Sugerindo em tom mandatório que abaixasse a arma para conversarem, Lionel estocou a colher no pote de geleia e o apoiou na penteadeira com um gesto premeditado. Vai, senta na poltrona, falou grave apontando uma cadeira acolchoada que até então não tinha entrado na história. As mãos de Jabu não eram trêmulas nem cheiravam frias ou ardentes; a direita mal se aguentava de tão tensa e a esquerda não era nada senão o intermédio da iminência. Havia um vazio em seus movimentos, uma fingida displicência, e Lionel não deixou de reparar que o outro retraía o ombro direito, como se recém-lesionado. Acatando a sugestão, Jabu abaixou-se cauteloso, apoiando o cotovelo esquerdo no estofado e mantendo o bastão de ferro em riste. Inspirou pela boca, e com lenta irritação soltou o ar pelo nariz. Seus olhos, fixos na penteadeira, pareceram por um momento alhear o corpo, como se ele tentasse esticar da cabeça um vértice de memória, comer a geleia com as órbitas ou organizar uma frase em japonês. Lionel sentiu-se orgulhoso; gostava de que desejassem seu alimento. E súbito deteve a desenvoltura da atração pelo laço da fala.
Olha, Jabu, chegar aqui não é brincadeira. Muitos cavalheiros tentaram e não conseguiram, e conforme Lionel falava era como se o invasor, vidrado no doce, aos poucos se esquecesse da lesão e adestrasse o braço. Eu sei como você tá se sentindo, eu sei que a Fundação é confusa e que você não sabia da minha existência até agora, é como a velha história da cabra e o escorpião, conhece? Não quero saber de história nenhuma, eu quero saber quem é você e como sabe meu nome, lançou uma baba ao responder, quase tossindo, como se submergisse a um afogamento, e a polpa de seus olhos brilhou por um instante, surpreendendo-se ao descobrir a própria saliva, que lhe pareceu uma gota mágica.
Não era porque franzino que Jabu deixasse de falar com a própria medida. E que assim fosse, pensou Lionel, mas não por isso afrouxaria as rédeas. Ok, Jabu, eu vou responder suas perguntas, mas antes eu quero que você vá até a varanda, ou nada feito. Mesmo sentado, Jabu pisou o chão com uma força admirável, provocando Lionel, cujas pernas de formiga jamais seriam capazes de responder àquele desafio, e saiu com agilidade em direção à pequena varanda, sem baixar a guarda do punho letal. Chegou a esbarrar na parede antes de estacionar, selado na certeza de seus joelhos. Jabu mal teve tempo de calcular as obviedades antes de ouvir Lionel dizer Muito bem, agora posso dizer: quero que você pule.
Bastou um naco da palavra “agora” para Jabu entender que, por mais que Lionel sorrisse, não trotava com ele. Insultado e certo de que aquele era seu limite, Jabu assestou a arma e, enquanto encarava o outro sentado à penteadeira, desviou levemente os olhos para a parede manchada; a mão direita, muito mais tensa do que antes, ganhou a altura do rosto e projetou dois dedos sobre a têmpora. Por alguns segundos a cabeça de Jabu pareceu tremer; as pálpebras semicerraram e as sobrancelhas empurraram estrias na testa, e Lionel divertiu-se imaginando que aquela hesitação não seria nada perto da surpresa iminente. Você não tem coragem, Jabu. E ao ouvir seu nome relaxou o rosto e desfez a pose da mão direita, levando-a como apoio para a outra. Era questão de apertar.
O estalido apático, menos vivo que um tric, investiu Jabu em seu estado bruto anterior. Desesperando-se diante da calada, trocou de mãos a pistola, cedendo ao exagero de premer o gatilho várias vezes, tric tric tric, como se a repetição fizesse a perfuração pretendida no corpo estranho. De tão descrente, levou o queixo ao peito, ignorando a risada exagerada de Lionel, então erguido da cadeira, e andou de volta até a poltrona. Antes que pudesse tricar a esmo mais uma vez, despencou ao pé dela, impedido de saborear o conteúdo do vidro que lhe acertara as costas da cabeça. Em pé, satisfeito, Lionel abaixou-se e virou o corpo de Jabu para encará-lo; a testa, cutucada pelo piso, gritava tudo o que a pistola silenciara, mostrando uma estranha vibração. Mesmo inútil, Jabu ainda soltava ar quente, estabilidade que seria resolvida na varanda. Tomando da boca a colher, que deixara pendendo do beiço durante o percurso diagonal, Lionel recuperou do chão o pote de geleia ainda firme e voltou para a penteadeira.
Duas colheres cheias eram justa medalha diante de mais uma vitória. E o sabor fazia o poder. O doce azedo inexplicável. Impossível. Impossível que aquilo estivesse acontecendo. A excitação do momento não justificava o tremor no pescoço, os espasmos nas mãos fortes, o concerto dos tecidos do tronco, o início de uma confusão mental. O peito arfava e parecia dobrar de tamanho enquanto apenas as pernas permaneciam quietas. Seria um engasgo tolo? Não fazia a menor ideia. A cadeira, mambembe, não suportou seus movimentos e arrebentou em três. Lionel não chegou a se perceber no chão. Não houve tempo para imagens nas pupilas, faróis de escuridão, fotografias na cabeça. Nada. Onde estava suas memórias? Onde estavam seus desejos proibidos? O que aconteceria agora? Perguntas que nunca teve tempo de se fazer. Seu corpo seria removido dali e o quarto térreo serviria a um novo morador. Numa manhã amena e desimportante, as portas da Fundação se abririam para Lionel, o último de sua espécie. Se ao menos tivesse percebido, depois do tiro frustrado de Jabu, que a parede da penteadeira estava perpetuamente branca.