Um conto de Anielson Ribeiro
Anielson Ribeiro, Casa Nova – BA, tem 24 anos, é professor, licenciado em letras – português (UPE), membro antidadaísta do Círculo Literário Analítico Experimental, também é colunista no blog https://attraversiamocolunasco.blogspot.com/ e mantém um pequeno espaço no Medium (medium.com/@anielson.ribeiro777) para divagações, contos e poemas. Não possui nenhuma publicação oficialmente publicada (o subemprego não cobre o ISBN).
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A PRÉ-HISTÓRIA DO AMOR
NAQUELA QUASE-MANHÃ, a terrível e imensa bola fumegante levantava preguiçosa. Podia-se sentir a confusão e o estranhamento orvalhando nas luzes insípidas dos postes às seis horas. Desmantelo. Dia após dia, um gole após o outro, e enfim afogado. Agora era aurora. Andava meio louco, meio cambaio pelas vielas. Luz nos olhos, cheiro de buceta pelo corpo e o asfalto rugindo no ouvido. Tinha de chegar em casa. Mas não sabia onde estava, tampouco controlava os pés. Um medo de ser assaltado naquelas condições o afligia rápido, nos pequenos lapsos de consciência. Casa era segurança, era grades, era portões e eletricidade. Naquele momento, nem lhe era incômodo pensar nos fantasmas que a rondavam à noite. Quando o primeiro homem ou mulher resolveu-se abrigar, há doze mil anos atrás, deve ter pensado: antes do fogo, a paz.
Preso entre o mundo noturno e o diurno, comprimia a força do sol entre seus dentes com uma imprudência vigilante. Sentia aquele gosto de nuvem na boca, gosto de verdade ou de guarda-chuva. Era uma violência de retorcer ferro-velho que lhe doía a barriga. Era fome de quê? De tudo, até onde se sabe. Aquela sem-razão do êxtase que o movia lhe golpeava em cheio. Sua cabeça agitava-se, seus olhos ofuscavam-se. Pelo estreito da mente, tambores de guerra marchavam entre a penumbra cáustica dos entulhos de mil explosões estelares. Ele podia escutar claramente, em meio a este turbilhão, todos os ossos de um epilético tremerem na fila do INSS e os sinos dobrarem em todas as catedrais pernambucanas. Parecia mesmo algo sobrenatural. Porém, foi assim que abençoou aquela manhã e aquele caminho. Entre passos irregulares e mal pisados, o sono o guiava. Enquanto isso, a cidade permanecia calada. O comércio fechado. As escolas fechadas. Afinal, estava só com o mundo. Mesmo assim, sentia que aquela maldita cidade não era dele, nunca fora. Pelo contrário, ele é que a pertencia, como um micróbio respondendo às tripas desse imenso organismo. Sentia-se como o próprio chão em que pisava.
Ainda trôpego, cruzando calçadas esburacadas, não perdia o horizonte de vista. Um mapa para o réquiem. Trôpego, coxo, com um coração perdido e desfigurado. Sabia-se assim a vida inteira, por isso se mantinha invariavelmente evasivo. Uma hora ou outra iria afundar em algo, no plano das coisas ou noutro qualquer. Mas era isso: estropiado como a criança que deixara chorando em casa. Enquanto erguia para si um mundo silencioso no ar da terra. Porém, todas as noites retrocedia com as volúpias do chão, como um pássaro morto. O garoto era movido a cordas, esbarrava sempre nos poucos móveis do aposento. Ele o odiava. A mãe odiava o pai na mesma medida. Odiava-se a si também por conceber a criança, e odiava a República por permitir. Círculo fechado, terreno estranho, fotos perfeitas.
Ela queria o aborto, mas ele preferiu sabotá-la. Era este seu trabalho: o molde de ferreiro. Certo dia, não se sabe porque, sentiu um cheiro familiar e ameaçador vindo da cozinha. A mulher estava com a xícara já encostada à boca. De repente, veio o tapa, o líquido quente no ventre, um grito ou uma revoada de jandaias. Depois, soube-se que ela havia preparado o chá de artemísia pela indicação de uma vizinha, velha cabocla. Apesar de tudo, o dia natal veio com seu presente indesejado. Houve certa complicação – uma distensão no períneo -, mas o garoto nasceu. Dois dias depois, as fortes dores de uma contração uterina e a hemorragia profunda a levaram. Vontade de Deus, disseram. Dela não. Morreu ainda naquela casa, olhando as grades do portão como quem se olha no espelho e não gosta da própria aparência num dia ruim. Para ela, entretanto, todos os dias eram esse dia. Sangue e suor assombrariam aquele chão até o sal da terra consumir completamente o alicerce. O último alento foi o ódio cuspido contra o homem, com a força toda de suas entranhas.
A partir de então, todas as horas, durante a luta pelo sono ou pelo acordar, ele recolhia esse pavor e o transformava em fúria. A ojeriza maior era direcionada principalmente aos professores, que não o ensinaram o básico da vida: 1+1=3. Tudo, como veio a aprender mais tarde, é sempre uma questão de cordas e outra de cálculos.
Foi difícil conceber a noite anterior em sua memória. Difícil como um combate; difícil como um parto. Noite impossível, como aquela a qual o Universo rasgou para surgir. Parecia meio vaga, meio gasosa, completamente intocável. Lembrara de si numa estranha atmosfera de néon. Espírito contido numa redoma de vidro. Velhas paredes de liberdade. O azul explode atracado com a Lua. O homem sente os estilhaços na têmpora: delirar, delirar como um gato no cio, como um arquiteto numa cidade sem arranha-céus, como um fiel neopentecostal, delirar com o amor, o amor, o amor nas canções de ninar este século recém-nascido e moribundo.
Abriu uma porta. Entrando numa casa sem rua e sem mundo, dissera seu próprio nome para se saber vivo naquele espaço incontido. O eco não veio. De qualquer forma, era inútil, até pedras têm nomes. Mas nunca lhe ocorreu procurar suas vísceras. A sala tinha uma cortina púrpura. Num relance de olhos tortos, a imagem de uma mulher nua abateu suas crenças e sua libido, como um feitiço. Estava pousada sobre uma cadeira a sacolejar sua mão de um lado ao outro e depois em círculos com esmaltadas garras de harpia sobre a pélvis; em seus movimentos espiralados, enganava o clitóris: se aproximava pronta a sufocá-lo, ela podia acabar com aquilo a qualquer momento, mas recuava – e ele observava, seco, a vontade crescer em sua face –, as mãos dela eram oxigênio puro, invisível e tangível; sua vagina, um castiçal de ouro aceso – está próximo, está próximo, eis a chama descendo dos olhos à medula. Ela chamava seu nome, e agora ele sabia.
Deve ser por isso que se sentira tão pesado, a gravidade lhe afligia os ombros: esta memória de todos os mortos se impondo e se materializando dispersa nas leis da vida. Tudo ao redor foi-se desintegrando em um relance: a persiana, as paredes do tempo-espaço, os seus sonhos atômicos e o tropel de mil homens marchando nos pisos do crânio, exceto a mulher, a cadeira e suas gloriosas pernas anuviadas. Ela permanecia o fitando a uma distância adequada para lhe imputar vontade. Aproximação. Logo, ele tinha sangue no sexo murcho e derrotado. A mulher se fora e, em seguida, a casa e todo o mundo que os cercavam. Queria segui-la por essas brechas. É certo que o passado penetra tão profundamente no presente por algum caminho sem mapa – o mergulho das horas. É tanto que ora somos, ora fomos, tudo ao mesmo tempo, no mesmo instante sagrado. Não somos múltiplos – essa supervalorização esquizofrênica -, somos um só corpo-alma-e-solidão estilhaçado sobre o tempo, sob o céu. E estamos sós nessa cidade, como qualquer homem ou mulher esperando um telefonema ou um ônibus no Mercado Turístico, como o amor no cinema; assim na morte como no berço, mas nunca entre eles.
As ruas digladiavam entre si. O homem não ousava perder de vista as primeiras fagulhas do sol. A luz tremia diante de um firmamento azul ou verde. As casas agrediam seus olhos. Os primeiros pássaros cantavam e preenchiam todos os orifícios do mundo. Ele não sabia porque estava ali nem de onde viera ou para onde estava indo. Era compelido a ir apenas. O cheiro de álcool o impregnava, mas não lembrava de ter colocado sequer uma gota de cachaça na boca. Contudo, essas indagações foram interrompidas por um som cortando o ar do outono e se achegando diante dos pés de seus ouvidos. Os passos colossais estremeciam suas veias. Era como se estivesse empedrado, como se, naquele caminho percorrido, não fosse ele que se aproximasse do destino, mas algo que fosse até ele através de seus pés. Sua alma insiste em uma impermanência devastadora, acompanhando os bueiros, os fios elétricos, as janelas, os cantos de pardais e o simulacro falho das lembranças, perseguindo cabisbaixo esse eterno desabrigo sobre nossas cabeças.
Primeiro, o Universo era um círculo perfeito: sem bordas nem centro. Depois, um átomo rebelde o cruzou trazendo a vontade do Nada em ser tudo. Entre as aglomerações espessas das nebulosas, a gravidade propunha a criação dos luminosos. A Terra nasceu meio débil das entranhas gasosas do Sol e permanecera filha prisioneira, amarrada por um cordão umbilical cósmico. Tempos depois, a água fará com que várias espécies passem sobre a Terra, muitas rastejando nas sombras das imensuráveis planícies, dos sonolentos vulcões e dos brancos prédios de apartamento. Algumas serão sufocadas pela poeira de um asteroide; outras, pelo pólen das flores. Mas a primeira lei se aplicará: tudo morre. A segunda lei também: tudo que morre ou vive se altera: as montanhas Jura se abalarão e de sua crosta emergirá a pele hegemônica dos répteis. Mas os dinossauros, os pterossauros, os ictiossauros morrerão e dos seus ossos: o marfim dos paquidermes. Mamutes e mastodontes também morrerão e do calor de sua pele: o homem. Estes filhos da aniquilação trarão, no intestino, a boca do Devir. Nada estará a salvo: nem pai, nem mãe, filho, passado, nações, filosofia, ciência ou mesmo os anjos que inventaram. Deus, astuto como é, foi-se abrigar na palavra, na Casa da Moeda e nas paredes do Parlamento. Mas, algum dia, haverá somente esse homem atravessando um deserto de casas carcomidas, observando a Terra degenerar. Há algo de origem em todos nós. Essa água reservada em nossas pupilas pronta a emergir nos momentos de medo e de alegria deve ser, suponho, por olharmos demais para o Sol em nossa mente com saudade do útero. Contudo, o Sol também explodirá, depois o Universo inteiro. Aquilo que cria resguarda no cerne de si mesmo a destruição. Terceira lei.
Ele sente o coração ausente rimbombar. O terror se aproxima. Basta dobrar o vértice. Conserva ainda aquele gosto estranho e amargo na boca, mistura de álcool e remorso. Talvez um estigma de Judas ou deste último éon. Mesmo sabendo seu nome, ainda não se sentia vivo. As artérias exigiam descanso. Finalmente seus pés trazem o onde o levavam: a casa; o choro da criança inundando seus tímpanos através de ondas binaurais; o homem completamente indefeso, morto de si mesmo. O Sol vai-se desamarrando lentamente. As primeiras pessoas saltam às ruas para comprar pão. Suas tripas se comovem. Mas enfim se depara com o dia seguinte. A estrela da manhã concentra em si a luz de todo o espaço, espalha o azul na atmosfera e surge suntuosa como uma mãe. A visão dele começa a se turvar, não por medo ou ansiedade, mas pela fumaça que exala do lugar em que deixara o coração, restringindo suas esperanças. Cinzas, somente cinzas, das paredes, das fodas, das pretensões, da criança, das fotos, do testamento, dos papéis de casamento e da memória. Ele ergue os olhos para a cidade, para os postes, os faróis dos carros, as demais estrelas, as palavras erradas nas escolas, tudo, tudo se apagando, e a fome prosseguindo em todos os corações cansados. Mas, afinal, em que ruína escura e muda das Eras a paz se recolheu, depois do fogo?