Um conto de Antônio LaCarne
Antônio LaCarne é cearense, autor de Exercícios de fixação (AR Publisher, 2018), Todos os poemas são loucos (Gueto Editorial, 2017) e Salão Chinês (Patuá, 2014). Participou das antologias A nossos pés (7Letras, 2017) e Golpe: antologia-manifesto (Nosotros Editorial, 2017). Seus poemas já fizeram parte de publicações na Colômbia e na Grécia.
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Lápis de cor
Aos sete anos Guto sofria calado. Os outros meninos zombavam dele. Na escola chamavam-no de menina, diziam que ele era mulherzinha. Todos os dias, durante o recreio, era a mesma coisa: Guto calado, sentado, sem amigos. As meninas o ignoravam, elas comentavam que ele era filho de empregada na casa de um rico dono de loja de móveis, e que só estudava naquela escola por caridade. As professoras fingiam não notar a zombaria contra Guto, que baixava a cabeça, envergonhado, morrendo de vontade de chorar.
Na hora da janta a mãe percebia o filho triste, sem fome. Intimamente ela sabia a razão de tanto silêncio, mas o cansaço dos dias, a falta de dinheiro e os outros filhos lhe tomavam o tempo. Ele já era grandinho, e por isso precisava ser forte, como ela, diante da pobreza e do olhar injusto das pessoas no mundo.
Durante a organização da festa junina na escola, Guto não suportou a chacota dos meninos, que aos berros diziam que ele não era homem, e que por isso não podia ter uma menina como par na dança. Guto passara a odiar festas juninas desde então, sem entender tanta grosseria das crianças que deveriam ser suas amigas.
De pé, diante da sala e da professora omissa, se debruçou em lágrimas. Soluçava, esfregando os olhos. Telefonaram para a mãe, explicaram o ocorrido. No ônibus de volta para casa quem chorou (disfarçadamente) foi ela, farta, humilhada pelo sofrimento do filho e o desprezo constante do marido.
Em casa a mãe fez um jantar delicioso. Frango ao molho era a comida preferida do filho. Enquanto ele comia, ela o observava, já consolada pela beleza, inteligência e graciosidade daquele menino que era o seu maior orgulho. Guto comeu e se lambuzou com as asinhas de frango.
Antes de dormir, pela primeira vez na vida, a mãe resolvera contar uma história. Ele ouvia atento, de olhos arregalados, feliz pela atenção extra que ela estava lhe dando. Dormiu feliz e sonhou com pai, que o carregava nos braços, dando-lhe beijos enquanto corriam num parque de diversões igualzinho ao que ele vira num filme.
Mas enquanto isso o pai roncava e não se importava.
Na manhã seguinte, na escola, foi o mesmo tormento. Miguel, o garoto mais grosseiro da turma, insistia na zombaria, perguntando por qual motivo Guto não tinha jeito de homem. Os outros meninos riam.
Guto, então, calmamente, tirou da mochila o seu lápis de cor de ponta mais afiada, e numa destreza inexplicável, cravou o lápis na testa de Miguel, que até hoje leva consigo a cicatriz no corpo e a homofobia enraizada no espírito – por culpa, talvez, da influência preconceituosa dos pais, da realidade, do mundo, da vida.