Um conto de Ásbel Torres
Ásbel Torres foi membro da seleção mato-grossense de bets de rua durante a virada do milênio. Hoje, é publicitário e escreve por diversão, embora concorde que haja meios menos sofríveis de se divertir. Leitor de realismo mágico, ficção especulativa, gibi e outros onirismos. Publica o que tem coragem em Ásbel.
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Aquela poeira que teima em ficar
O paiero de seu Inácio deveria durar uns cinco minutos. Tempo de sobra pra dar algum chabu e um dos meninos vir correndo, gritando paiê com os chinelos cheios de terra. Atrás da casinha já tinha uma ribanceira de cigarros não terminados, porque seu Inácio sempre seguia o calcanhar dos moleques pra ver o que era. Quase sempre era um susto besta, mas ele é que não ia pagar pra ver. Jiboia custava caro demais pra arriscar.
Achou estranho dessa vez quando passou da metade e ninguém se intrometeu no sossego. Mas a paz é feito um peixe que você tenta pegar com a mão. A refração te faz achar que tá perto, mas ele sempre escapa. Catarina chegou apressada, limpando espuma de detergente no avental. “Pelamor de Deus, Inácio”, ela gritava. A jiboia devia ter entrado na terra do Tiãozinho de novo. Só que, se não eram os meninos trazendo a notícia, o coração até doía de medo. “Tião tá aí na frente?”. “Que Tião, home? É o Coronel”.
O diacho do Coronel tinha nome, mas ninguém dizia. Todo mundo o chamava assim porque daí evita humanizar ele. Dá menos remorso quando você cospe no chão depois que ele passa. “Algum problema, Coronel?”, foi tirando o chapéu. “Claro que tenho, se não tava longe daqui. Cê vem comigo”. “Os menino aprontaram alguma?”. Catarina começou a chorar e disse pra Inácio parar de teimosia. “Não sei de menino nenhum. Escuta a mulher, Inácio”.
A braquiária verde contornava o horizonte, pintada de manchas brancas de gado. Inácio cavalgava em silêncio, ao lado dum peão com uma marca na bochecha e outro que descascava laranjas pelo caminho. O cavalo do Coronel ia na frente, junto do seu homem de confiança. Inácio olhou pra trás. Não via poeira nenhuma e não tinha sinal da molecada. “Ô, meu santo Euclides”, pensou, “devia tá margeando a cerca atrás deles. Mas se falo não pra essa maldição de chapéu, é capaz dele me dá uma surra só pra não passar vergonha na frente dos peão”. Deu um toquinho nas costelas da égua, que respondeu cum trotinho curto. “Qual a dor de cabeça, Coronel? Preciso voltar logo. Tenho que cuidar da jiboia”, mentiu, ou pelo menos esperava que fosse mentira. “Cê sabe de abelha? Você que entende dessas coisa”.
“É problema no roteador. Precisa dum novo”. Coronel coçou o queixo com uma força que parecia raiva. “Cê num é o sabichão que tira água de pedra? Faz o troço rodar, homem”. “Juntou sujeira e queimou a placa inteira. Se fosse transístor, dava pra fazer gambiarra. Mas, sem chipe, num tem como as abelhas conversarem. Aí é cada uma pra si”. A porta abriu duma vez. Uma menina chegou correndo com um papel. Chegou gritando paiê e mostrando o desenho que fez. Eram ela, mamãe, papai e Lúcio, o cão preguiçoso que Inácio viu na entrada. O Coronel pegou ela no colo e olhou de lado, quase pedindo licença com a sobrancelha. Lá fora, murmurou algum elogio. A menina gargalhou com alguma brincadeira e voltou do mesmo jeito que veio. “O senhor faz o seguinte: manda desligar a colmeia na fonte. Aí os bichos não recarregam e nem se estranham”.
O diacho do Coronel ainda não tinha nome, mas tinha família. Isso é uma droga pra figura asquerosa que Inácio tentava conservar. Passou ao largo de casa, vendo tudo quieto demais pra ter sinal dos moleques, e seguiu campo adentro. Foi achar eles uns três quilômetros depois, sujos de graxa em cima da jiboia, desmontando de novo o eixo de rotação da vértebra trinta de sete. O campo tava arado só pela metade e não parecia que iam terminar o conserto tão cedo. Inácio amarrou o cavalo embaixo do pequizeiro e seguiu andando. Ia dar uns dois ou três minutos até chegar neles. Tempo de sobra prum meio paiero.