Um conto de Bruno de Abreu
Bruno Nascimento de Abreu nasceu em 1992, em Ribeirão Preto. É pintor e escritor. Mora atualmente em São Paulo.
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Pai
À minha frente está sentado meu pai. Tomamos café. Entre nós a mesa de mogno, que no escuro da sala parece vaguear suas medidas. O vapor embaça meus óculos e torna seu rosto enrugado numa mancha lenta, só cores fáceis e indolentes, afogueadas pela lâmpada. Depois reaparece, o café já queimando meu estômago, e suas rugas ficam estranhamente frescas pela nitidez recobrada – vejo então como se embaçam, por sua vez, os vidros dele, grandes e quadrados como janelas de caixilho grosso. As mãos tremem muito.
Sempre tremeram, na verdade, agora apenas a eloquência é maior. As extremidades de seu corpo delicado sempre pareceram tremeluzir feito uma chama de vela que se debate sobre o eixo continuamente consumido, sem poder escapar, resolver-se em asa, alçar voo. Gosto de pensar que um poeta é um escultor com dedos raquíticos, que não pode arrebatar a pedra definitiva quando a encontra, e precisa explicar, atônito, como era soberba e inteira, e como foi incapaz, mais uma vez, de segurar o martelo, encontrar o cinzel adequado.
Lembro da vez em que me mostrou um sapo. Eu devia ter uns três anos. “Isso é que é um dragão, André”. E fiquei decepcionado. Ao que ele agachou, catou o anfíbio com os dedos pequenos, que quase não podiam envolvê-lo – mas grudaram-se tenazes a ele feito ventosas – e aproximou rapidamente a cara do sapo de meu rosto. Foi a coisa mais assustadora que já vi. Soltei um berro, mas não saí correndo. Consegui despistar o amargor do choro na garganta. “Você é um rapaz corajoso, André”, e me pegou no colo. Seus braços tinham um calor de lenha que começa a queimar.
Sim, meu pai é um homem bastante estranho. Mas conservava alguma regularidade nos gestos antes do ataque. Eu tinha treze anos. Àquele dia, lembro-me bem, eu brincava, já com um fastio adolescente, com as peças do xadrez herdado de meu avô, pai de meu pai. Eram soldados batalhando sobre o vasto campo do tapete persa. Nunca aprendi a jogar xadrez. Meu pai, se sabia, nunca me ensinou. As peças, cheias de detalhes anatômicos, dispostas no tabuleiro roxo e vermelho, eram o hermético coração da sala de visitas, só demovido de seu lugar quando eu o trazia ao chão para empreender batalhas completamente destituídas de regras.
Lembro muito bem: o cavalo negro acabava de ser perfurado pelo bispo branco, e sangrava muito, relinchando doloroso com minha voz falha de adolescente, ao que ouço uma pancada na vidraça no andar de cima. Cacos esmigalhados. Em seguida o barulho de meu pai descendo as escadas feito ele fosse uma tropa inteira de soldados. As botas que usava costumavam fazer o som mais duro e seco de todos os calçados da família, absolutamente nenhuma reverberação, nenhum eco na madeira, mas dessa vez era como se galopasse. Passou a gritar coisas em latim e atirar. O destino dos tiros: as figuras da tapeçaria da sala de jantar, coisa que naturalmente só vim a saber depois, por conta própria, como alguém que jamais tivesse posto antes os pés naquela sala e descobrisse os resquícios de um crime. Foram vítimas de sua loucura um caçador, dois cães e a mancha multicolorida da explosão de uma espingarda. A raposa, intacta, continuou a fugir, e nunca me pareceu tão frenética como nas duas semanas seguintes, após as quais alguém tirou a tapeçaria de casa. Nunca mais a vi.
Lembro vagamente do corpo imenso de meu tio a me surpreender por trás, invisível, e de ser elevado até seus ombros como um bebê grande. Em seguida a manhã clara queimava meus olhos. Nada mais me acorre à memória.
Ia visitá-lo uma vez por mês no sanatório. E desses tempos também lembro pouco. Era um lugar cheio de borboletas de cores pálidas que voavam trôpegas muito perto das canelas, como flores que tivessem acabado de aprender a voar. A cara de meu pai era a de um cansaço consolado. A loucura apaziguada talvez se desse a ver nalguma inclinação da sobrancelha, mas era difícil dizer o que é que me parecia mudado no rosto daquele homem, tão familiar e ao mesmo tempo tão distante, tão mais distante do que sempre fora. Vestia roupas claras – combinando com as borboletas.
Depois de três anos recuperou-se e foi liberado para voltar para casa. O recobramento era tido como um milagre da psicologia médica. Foi muito importante para corroborar um método específico que era novidade na época, o qual desconheço. Nunca procurei saber o que fizeram com meu pai por lá.
Até a faculdade passei a habitar a casa muito mais modesta de meus tios. Pela primeira vez me sentia regularmente próximo de outros corpos humanos no espaço. Eles eram corpulentos e espalhafatosos, eu espichava teimosamente, e o pé direito era tão baixo que certamente transformaria uma tapeçaria grande como a que havia na sala de casa num perpétuo fundo temático, ocupando toda a parede como uma tela de cinema (lembro dela em nossa mansão como uma imagem vaga e renitente aparecendo de um fundo escuro, sem moldura, eloquente como uma lembrança, suas figuras vagas esperando uma luz nova e estranha ou que alguém as interrogasse).
Meus tios eram bastante solícitos, boas pessoas, e creio que viam em mim uma oportunidade de contato com a antiga sanidade de meu pai. Mamãe sempre me penteara da mesma maneira que ele. Repartia o cabelo da esquerda para a direita, contrariando a disposição das raízes e o crescimento natural dos fios, o que deixava as pontas meio desgrenhadas – depois de seu falecimento, quando eu contava oito anos, minha tia continuou a pentear-me assim. Quando nadávamos no lago isso ficava evidente ao primeiro mergulho, após o qual a cabeleira emergia dividida ao meio. Além disso o nariz dele era muito fino e pequeno, lembrava o nariz genérico de uma criança, que ainda não adquiriu, digamos assim, sua personalidade óssea. De modo que eu, um quase mocinho, comportado, de cabelos penteados, devia ser uma imagem consoladora. Muito rápido, porém, meu nariz foi ficando adunco como o de minha mãe, e fiquei corpulento e rijo como a parte materna da família. E então, quando tinha quinze anos, meu pai voltou à nossa companhia.
Morava com duas outras tias, mais velhas que ele, uma delas a que já cuidava de mim depois que minha mãe morreu. A outra viera do interior para cuidar do irmão “mudado”, como uma vez eu a ouvira dizer, e senti uma pontada de nojo daquela figura velha e temerosa, que mal nos visitava nos tempos de saúde e aparecia agora, de repente, disposta a fazer caridade. Fora elas havia o caseiro, corpulento e sorridente, como um sol acobreado, uma figura jupterina rondando a casa noite e dia, pronto a desbravar quaisquer possíveis tempestades de meu pai – que consumiriam, certamente, aquelas mulheres severas e franzinas.
Mas parece que meu pai, se não havia dúvidas de que havia “mudado” para sempre, passara a cultivar a sua loucura de maneira interior, quase intimista. Seus traços esguios ficavam mais e mais arredios, como se treinassem uma fuga em segredo. Às vezes ele dava volteios com o corpo bastante dançantes, quase barrocos, mas que logo se aquietavam, como se tivesse capturado e absorvido algo que o incomodava ao redor. Como se deixasse escapar uma mosca só para poder agarrá-la novamente e ter certeza de que ela continuava ali, com ele, presa entre as mãos. Os olhos, no entanto, não se moviam muito. Pareciam engajados numa tarefa não necessariamente diferente da do resto do corpo, mas paralela e mais profunda, como se estivessem centrados na sala geral de controle.
Vê-se que herdei a propensão paterna para enlevos poéticos… Mas gosto de pensar, ainda com um pouco de dor, é verdade, que ele teve mais sorte: ele vira o dom das musas aflorar em seu coração ao namorar minha mãe – multidões de versos sobre “margaridas sinceras”, “róseos ninhos de pássaros” e “luas peroladas” – enquanto eu descobria meu veio poético debruçado na escrivaninha do quarto, sozinho, com uma gastrite renitente, as musas me ditando ao meio do sono esgotado estrofes inteiramente nonsense sobre “pássaros esquálidos” e “sóbrias rajadas de âmbar” (ainda hoje de manhã dava uma olhadela nos primeiros cadernos), que eu anotava como uma missão divina – não apaixonada. De fato os versos me apareciam inteiros, como que gravados no escuro táctil da mente, e eram tantos, tantos, que chegava a ficar irritado. Mas me pareciam perfeitos, perfeitamente objetivos, como uma profecia. Não demorou muito tempo para desvendar a mediocridade do anjo que me destinava tantos segredos da alma. Ao menos mantinha-me ocupado naquela adolescência que começara de modo tão bizarro e doloroso.
Lembro de uma viagem, devia ser o segundo ano de sanatório de meu pai, em que vi, de dentro do carro, um gavião descendente, decidido como o próprio destino. Quando já me encontrava enredado em seu vôo, absorvido por sua existência selvagem e agudamente inclinada sobre o campo esparso, quando eu já estava completamente convencido da existência da presa, de sua carne prenhe das garras do pássaro, vi-o desaparecer atrás de um morrinho, onde certamente encontrara a presa, mas a ocultara eternamente de meus olhos. A ausência de presa visível e a sensação de que a imagem abortava sua missão numa espécie de prolongamento infinito do voo na memória, me trouxeram à mente a figura de meu pai descendo as escadas no dia fatídico – e essa imagem eu recriava constantemente numa espécie de tarefa infinita, posto que meu ponto de partida era apenas o som. Enquanto a nobre ave me parecia repentinamente ridícula caindo no nada, o som atabalhoado de meu pai pelos degraus pedregosos adquiria uma súbita e estranha – e redentora – elegância. Perdi o poema que escrevi sobre isso. Lembro apenas que não falava de aves nem de voos, nem de escadas nem literalmente de um pai, mas de um velho marujo com um cão.
Lembrei desse poema hoje de manhã, de repente, entre observar meu pai à frente, magricelo e de espessa barba branca, e remexer os versos da adolescência. A constatação de que meu pai está parecendo um velho marujo, com esse tampão e essa jaqueta de taquitel imensa e azul feito um inchado mar nórdico, veio junto com a lembrança do poema. Mas talvez o personagem daqueles versos nem fosse um velho marujo, apenas um velho com um cão. Sim, provável. Sim, sim, agora me lembro: escrevi alguns poemas sobre marujos, era uma obsessão particular, mas este era sobre um velho que corria com seu companheiro pelos campos de sua casa de campo, repentinamente disposto depois de alguma doença ou dia melancólico. Tudo muito vago e miraculosamente saudável – adolescente.
Há muito que terminamos o café. A película de líquido nas xícaras já começa a pegar a textura de sangue coagulado. Os dedos dele, após caminharem demoradamente pelo fio dourado da borda, acabaram derrubando o recipiente delicado numa ardilosa manobra do sono: sua palma a recobre, os últimos resquícios de consciência foram o bastante para protegê-la de um baque espalhafatoso. Sua mão parece uma galinha chocando um ovo tão grande quanto ela, se bem que mais pálido. Meu pai dorme profusamente, as bochechas prodigamente côncavas, a boca bem aberta, apontada para o teto. Não, não parece um marujo. Nunca pareceu. É apenas esse tampão. É apenas a cirurgia. A última de tantas. Ontem mesmo me dizia, e ele fala bastante lucidamente pela idade – sua voz a correr empolgada com o cão da língua pelos campos genéricos de seu presente – que nunca imaginou que teria de fechar os olhos por obrigação. Que um poeta, um “romântico” como ele, é um ser muito saudável que escolhe fechar os olhos por conta própria. Às vezes até parece que ele superou completamente os anos de loucura. Que ele mal se lembra dos tiros, do sanatório, dos cadernos queimados um anos após a lucidez recobrada, quando o caseiro o encontrou petrificado à frente da imensa fogueira que armara no quintal, pedacinhos de papel voando a seis, sete metros de altura – mas não houve volta ao sanatório, o psiquiatra estava hospedado na cidade e veio imediatamente garantir que aquilo “era esperado” e que não devíamos nos preocupar. Mudou a medicação, conversou longamente com meu pai durante o verão, e nunca mais houve outra manifestação como aquela.
Depois dessa carnificina de versos ele continuou a escrever. Mas juro que nunca encontrei os escritos. Meu pai sempre foi bastante bom em esconder coisas. Se quisesse mentir, mentiria por anos a fio sem ser descoberto. Creio que não é do seu feitio. Provavelmente nunca traiu mamãe, até porque não teve nenhum amor depois de sua morte. Acho sinceramente que lhe aborrece a ideia de despender tanta energia para esconder realidades duplas inteiras – seu talento não era justamente o de velar as já inevitáveis? Por outro lado tornava os jogos de esconde-esconde para mim e meus primos missões praticamente impossíveis, ao longo das quais ele ria gostosamente, creio que realmente orgulhoso de sua capacidade de ocultar para sempre apontadores, bolinhas de tênis e bonequinhos habilidosamente feitos com guardanapos de papel, que ele nunca, jamais, revelava onde estavam, até que apareciam, no dia seguinte – quando já estávamos fora do jogo, absorvidos pela realidade – placidamente encarapitados na samambaia ou na caminha do cachorro. E ele também encontrava grande prazer em nos apontar, com as pupilas fulgurantes, aqueles objetos repentinamente teletransportados para tão perto de nós (e sim, era delicioso encontrá-los!).
Ainda hoje o vejo escrevendo num caderninho pelos cantos da casa. Abandonei os versos há muito tempo. Acho que num determinado momento, talvez ao passar a receber contas mensalmente, comecei a pensar demais na vida, e ela se revelou muito clara, sem esconderijos possíveis. Para que correr sobre o deserto se não nos dirigimos a uma gruta? Para que sair da gruta se é infinito o deserto? Perdão pelos arroubos poéticos. Fato é que tenho saudades deles. Só não os posso sustentar tempo suficiente a ponto de destilarem-se e se tornarem mais naturais, sem os babados e rococós da inspiração desavisada.
Mas eu realmente me preocupo com a poesia. Sei apreciá-la, li os clássicos, recordo com afeição os mestres da juventude. E sei que a poesia de meu pai é boa – era, pelo menos, quando eu gozava de meus vinte anos e um gosto certamente duvidoso, e ele ainda publicava aqui e ali em revistas de vanguarda. Há trinta anos que não o faz. Há trinta anos que escreve miúdo em cadernos miúdos que incham ao longo das semanas de tanto serem dobrados e desdobrados e percorridos pela pele gordurosa, até que se abrem perpetuamente, como flores irremediavelmente desabrochadas, e somem. E não sei onde os enfia, se é que se preocupa em guardá-los. Já revirei o lixo diversas vezes e não os encontrei. Não temos lareira. Já tentei pegar um deles do bolso de seu roupão enquanto ele dormia, o velho acordou e sua reação foi tão violenta que temi pela saúde dele – e, sem exagero, pela minha vida. Já não gostava de falar sobre sua poesia. Depois desse evento se recusa terminantemente.
Gostaria muito de publicar a obra de meu pai, que ainda goza de certa fama em alguns círculos de velhos poetas experimentais. Lembram-se dele. Vem visitá-lo uma ou duas vezes por ano, têm uma cara engraçada de velhos amigos a cobrá-lo elegantemente acerca do assunto de que vieram falar – seus poemas! onde estariam? sabemos que você ainda os escreve!, é o que dizem mais com os olhos que com as palavras, e olham para mim, a buscar uma resposta, ao que mantenho a mais solene cara de ignorante descendente da chama genial.
Não deixa de ser consolador, no entanto. Meu pai, o antigo louco, agora cheio de problemas perfeitamente fisiológicos, limpidamente destituídos de qualquer perturbação psíquica grave – além dos naturais achaques da velhice. E, embora esses problemas nos consumam boa parte dos dias, eu, estranhamente, ainda me preocupo mais com sua obra. Com suas realizações intelectuais. Com não deixá-las ir parar nas mãos de velhos poetas cujo talento caiu ao meio de sua juventude como um chapéu exótico e ainda não podem admitir para si algo assim, décadas e décadas depois. Velhos egoístas, que invejam a total liberdade de meu pai, o escritor que preservou para si o talento como um fiel cãozinho vira-lata, que não precisa ser conhecido pelo mundo inteiro. A obra. O público. Essas ficções genéricas que consomem tanta, tanta energia de artistas talentosos – nem que seja para se convencerem disso, de que são ficções, nem que seja a energia necessária para a desmitificação – nunca pareceram ocupar meu pai.
Mas será que pretende mostrar seus poemas? Ainda escreve algo que valha para um público leitor? Ou adquiriu a vitalidade, na escrita, de alguém que passa manteiga a larga no pão de forma mais cotidiano? Absolutamente indiferente à apresentação e a leitores específicos que não a própria vítima da fome? Eu não sei, absolutamente não sei. Mas desejo fortemente que qualquer dia, entre os poucos que lhe restam, ele comece a me lançar olhares espertalhões, e eu, como num passe de mágica, encontre o amontoado de cadernos num canto da sala. Sempre que me pego pensando isso me espanto de como a imagem é infantil e improvável. Ah!, ver-se contendo os próprios devaneios na frente de um louco… Um louco profusamente ativo, um verdadeiro come-quieto!
Distingo algo muito especial na personalidade de meu pai. Muito diverso da minha. Ele jamais, jamais se ocuparia de “completar” qualquer outra obra que não a sua, não por egoísmo, mas por uma espécie de aguda consciência da realidade do artista. De que não é possível de outro modo. Jamais visitaria amigos antigos cobrando-lhes poemas, jamais lhe passaria pela cabeça tentar puxar o “tesouro da cultura” de debaixo de um corpo caquético que provavelmente estacará feito uma montanha sobre riquezas irrecuperáveis. Sua única riqueza é o que pode produzir com suas mãos. É um poeta. Não um homem da “cultura”. Jamais um “apreciador” da arte. Embora eu não consiga conceber puramente um sem o outro, sei que é uma limitação minha, que há um tipo de egoísmo que não tem tempo para salvar a cultura porque está completamente tomado pela atividade de criá-la. Não que meu pai não se importe. Quantas vezes não ouvi dizê-lo, com o livro de reproduções do Morandi sobre os joelhos ossudos, que enfrentaria um incêndio para salvar uma daquelas pinturas – mas essas exclamações soam como pura poesia, não como algo possível de se efetivar, por vezes me soam mesmo com uma ira adolescente, como se ele fosse igualmente capaz de provocar um incêndio só para salvá-las.
Bem, espero sinceramente que ele resolva teletransportar para debaixo do meu nariz, ou para o de outra pessoa (infelizmente…), no momento adequado, a sua obra ou seja o que for que tenha se tornado nessas décadas todas de absoluto silêncio, de completo descompasso com o público (será? Não teria ele escondido muito bem algum leitor ou leitora secretos? Não ouso abrir sua correspondência).
Se eu puder por as mãos nesses cadernos, e houver algo a ser publicado, então passarei num átimo a ser não mais seu filho mas uma parte do “mundo da cultura”, do “público leitor”, dessa ficção soberba que passará a existir simplesmente como o lugar em que a bola de tênis de sua obra se revelar disposta e “completa”. E poderei então cumprir com a minha vocação e com meu amor por ele, e lhe arrumar uma bela edição de seus poemas, onde seus velhos amigos figurarão com ensaios acerca da sua importância histórica, sua produtiva juventude, o estranhamento que os versos ásperos da velhice lhes causaram, “mas era o que esperávamos de uma personalidade tão inquieta e desbravadora: um desafio ao leitor experiente” – e nada além disso.
Ou talvez, talvez ele absolutamente não consiga enxergar as coisas que escreve como passíveis de serem salvas de um incêndio, talvez seu dom particular tenha vindo acompanhado do efeito colateral de uma completa ausência de capacidade de se por como espectador do que faz. Talvez tenha sofrido muito com isso a vida toda, e sua alma seja uma espécie de buraco que enquadra um céu fabuloso, uma toca onde permanece apertado e desconfortável, sem poder virar o torso, alcançar a borda com as mãos.
Mas por hoje resta apenas aguardar, mais uma vez, como filho e como, espero, leitor, que ele continue a roncar profusamente e então desperte.