Um conto de Carla Bessa
Carla Bessa estudou teatro na UNIRIO e na Casa de Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Em seguida, emigrou para a Alemanha, onde trabalhou 15 anos como atriz e diretora. Hoje, vive em Berlim e é tradutora literária alemão-português do Brasil. Traduz autores renomados da literatura contemporânea alemã para as editoras WMF Martins Fontes e Estação Liberdade, ambas de São Paulo. Foi condecorada com várias bolsas de tradução e residências literárias na Europa. Estreou como escritora em 2017 com o livro de contos, Aí eu fiquei sem esse filho, pela Oito e meio, e tem vários contos publicados em antologias e revistas na web, além de escrever regularmente resenhas para o Jornal Rascunho. Em 2019 foi condecorada com o 3° lugar na categoria Conto do Prêmio Off-Flip de Literatura. O conto “Ele como qualquer outro (fuga imaginária que no fim nem houve)” faz parte de seu novo livro, Urubus, lançado no âmbito da Flip 2019, pela Confraria do vento.
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Ele como qualquer outro (fuga imaginária que no fim nem houve)
Só o estritamente necessário, ele tinha dito, leva o indispensável. A mala aberta em cima da cama feito um bocejo. Lá fora chovia. Logo sai o sol, logo tudo melhora, amanhã vai ser outro dia, Paloma pensa. É verdade que tinha relutado. Uma decisão dessas a gente não toma assim de uma hora para outra, tentou argumentar no telefone, a ligação ruim. Mas ele respondeu, é agora ou nunca. Então, agora. Só era pena perder a novela, a viagem ia ser longa. Puxa uma caixa de sapatos de cima do armário, junto vem um bolo de fotos. Desabam sobre a sua cabeça: as últimas férias, as primeiras, um natal, a lua de mel. As etapas de uma vida assim embaralhadas, era mais real, era como sentia. No álbum, tudo posto em ordem, até parece que a vida vai para frente em linha reta, quando na verdade a gente anda em círculos, ela pondera. Se abaixa para catar aquelas recordações desbotadas e dá de cara com o marido no altar, o sorriso aberto. Visto assim pelo retrovisor do tempo até que. Mas agora era hora de dizer adeus-bye-bye-passar-bem, chega de sentimentalismos. As lembranças ficam ali, espalhadas pelo chão. Paloma volta à mala.
O indispensável. A gente compra tudo lá, começa do zero, o outro disse. De começar do zero ela entendia, todo dia era um novo zero, todo dia o sol nascia, o sol se punha, e ela rodando em torno daquela vidinha como os ponteiros do relógio. O tempo passando e ela ficando no lugar.
Ele já devia estar esperando na rodoviária. O estritamente necessário. Ela balança a cabeça dolorida, não dormiu a noite toda, a consciência pesada não encontrava posição no travesseiro. Agora, aquele rosto ali na foto, a boca entreaberta, de repente pensou em repensar tudo. Afinal, dava no mesmo, ele como qualquer outro. Os anos gastavam a gente. Mas a decisão tomada, tudo acertado, o outro esperando. Pela janela, ela percebe, flutuam nuvens negras embolorando o azul que já era tão fraquinho, coitado.
O que era estritamente necessário? Calcinhas? Um livro? Uma foto? Ela não-conseguia-não-sabia-não-queria decidir. O celular, um pen-drive, cigarros? Daqui a pouco o outro liga, onde é que você se meteu? Talvez devesse deixar uma carta. Mas que ridículo!, o marido acharia. Documentos, dinheiro, sim, isso sim. E uma foto três por quarto sua, para não se esquecer de si. Não-conseguia-não-sabia-não-queria. Desarvorada, abre a porta e chama o elevador, vou com a roupa do corpo. A porta bate com uma rajada de vento que sussurra em seus ouvidos: agora não tem volta. Mas as mãos apalpam as chaves no bolso e ela manda o vento para o diabo. Na porta do elevador alguém riscou: seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo. Ela torce a boca e resolve descer de escada. Sai do prédio com o vento.
No caminho para o ponto do ônibus, a padaria do Seu Álvaro. Tem o café pendurado de ontem, ela se lembra. Sente um incômodo, não podia deixar o português assim na mão, e agora? Nisso, vê o ônibus vindo, é esse que vai para a rodoviária? É sim senhora. E o ônibus para na sua frente e todo mundo sobe e ela fica plantada. Talvez fosse melhor ir a pé. O ônibus fecha a porta, o ônibus parte. Pegar um pouco de ar fresco antes de tanta estrada.
E resolveu primeiro ir tomar mais um café, melhor mesmo acertar as contas na padaria.
E resolveu correr para casa, melhor mesmo levar uma mala.
E resolveu ligar, melhor avisar que ia se atrasar.
E resolveu comprar uma sombrinha, parece que vai engrossar mais, a chuva.
E resolveu sentar no banquinho da parada do ônibus para resolver melhor.
Vai dar tudo certo, não se preocupe, ele tinha dito, tinha planejado tudo tintim por tintim. Ela deslumbrava, como é que pode a pessoa ter tanta certeza. Mas ficou quietinha, foi assim que aprendeu, antes dela a-mãe-a-avó-as-outras-todas, um rastro longo de mansidão. Mas a incerteza mordiscava. E se chega lá ele muda, a paixão esfria? Com o tempo a cara murcha, o braço pelancudo, ele vai parar de gostar. E aí não tinha volta. Aqui pelo menos cada coisa tem seu lugar.
Dá licença, senhora, diz uma mulher com uma criança no colo, esperando para entrar no ônibus seguinte que tinha chegado, ela nem notou. O susto dá um pulo e vai para padaria. Bom dia, me vê um pingado e fecha aí com o de ontem.
É o celular da senhora que está tocando?, o balconista pergunta.
É.
Adoro essa música do Roberto Carlos.
É, eu também, mas não vou atender, ela diz. O rapaz faz cara de não é comigo. Ela termina o café, deixa uma nota no balcão e tchau, pode ficar com o troco.
Lá fora, o vento levanta o seu vestido, o cabelo esvoaça e ela decide: à rodoviária!
Mas os passos vão puxando as pernas de volta para o apartamento.
O celular toca de novo, sei tudo o que o amor é capaz de me dar. Ela olha para o display, eu sei já sofri, mas não deixo de amar, imagina o outro andando para lá e para cá na plataforma, gritando no celular, Paloma onde você se meteu? Nisso, um estrondo estilhaça o céu e o seu sonambulismo não resiste aos empurrões e tropeços, todo mundo à procura de uma marquise. Um garoto, dezesseis-dezessete no máximo, passa correndo, tromba com ela e de repente o celular trocou de mão. Ela ainda ouve, se chorei ou se sorri, ecoando da mão do trombadinha. O garoto leva um susto rápido, mas é só bem rápido mesmo, nem parar, parou. O eco do Roberto Carlos vai se distanciando, dobra a esquina e já sumiu. As pernas dela seguem sonâmbulas na contramão da turbulência, as gotas se espatifando na sua cabeça e quando dá por si, está diante do seu prédio.
Dessabendo como, Paloma se vê no elevador, pingando, e se vê na porta do apartamento e se vê no banheiro e tira-a-roupa-enxuga-o-cabelo-põe-o-pijama. A mala ainda bocejando em cima da cama. Ela a fecha com cuidado para não prender o dedo, aconteceu da última vez. Sim, não é a primeira tentativa. Recoloca em cima do armário e erguendo as fotos ainda espalhadas pelo chão, põe a caixinha do lado da mala. Senta no sofá e liga a televisão. Daqui a pouco o marido volta para casa. A seguir cenas do próximo capítulo.