Um conto de Carlos Machado
Carlos Machado nasceu em Curitiba, em 1977. É escritor, músico e professor de literatura e línguas estrangeiras. Publicou os livros A Voz do outro (contos 2004, 7Letras), Nós da província: diálogo com o carbono (contos 2007, 7Letras), Balada de uma retina sul-americana (novela 2008, 7Letras), Poeira fria (novela 2012, Arte & Letra) e Passeios (contos 2016, 7Letras). Tem contos e outros textos publicados em diversas revistas e jornais literários (Revista Oroboro, Revista Ficções, Revista Ideias, Revista Philos, Revista Arte e Letra, Jornal Rascunho, Jornal Cândido, Jornal RevelO, Gazeta do Povo etc.). Participou da antologia 48 contos paranaenses, organizada por Luiz Ruffato e distribuída para toda a rede pública de ensino no Paraná. Integrou a banda Sad Theory, participando dos discos The Lady and the torch (2002), A Madrigal of sorrow (2004), Biomechanical (2006) e Descrítica patológica (2012). Em 2008, iniciou carreira musical solo, rendendo os álbuns Tendéu (2008), Samba portátil (2010), Longe (2012), o DVD ao vivo (Teatro Guaíra) Longe e outras canções (2012), o trabalho em espanhol Los Amores de paso (2013), Bárbara (2015) e DESencontro (2017), seu disco mais recente. Site: www.carlosmachadooficial.com
O texto “Pombas, oras bolas” é parte da coletânea de contos de Carlos Machado Passeios, publicada pela 7letras em 2016.
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Pombas, ora bolas
De tanto que me falaram, ando pela Praça da República com um pé na frente e os dois olhos ao redor. Perto da Boca-do-lixo. Passo pela esquina da Ipiranga com a Avenida São João e não consigo evitar o Caetano Veloso. Tivesse uma caixinha de fósforo era batucada na certa. Canto sozinho. Passos de um estrangeiro nessa cidade. Desço em direção ao Vale do Anhangabaú. Uma longa rua que faz com que os pés escorreguem de aflição. Nas portinholas ao lado, inferninhos. Aqui moço, quer conhecer a casa? Apenas cinco reais, shows a cada quinze minutos. Do lado do homem que anuncia, uma calça branca sobre saltos altíssimos de tigresa, uma pequena calcinha perdida entre as nádegas e um tope que mal cobria os seios fartos, caídos. A barriga querendo saltar pelo cinto da calça. Apenas cinco reais? E com direito a uma dose. Bato as pernas para cima de qualquer suspeita e vou em direção ao calçadão de São Paulo. Uma pequena subida para voltar ao nível de antes. Na banca ao lado preciso do mapa. Museu do Pátio. Onde fica? Segue naquela direção e dobre à direita. Como enxergar o caminho que devo pegar com tantas barracas de produtos incertos? DVDs pornô apenas 3 reais. Mas será que só se pensa nisso por aqui? A oferta é grande. Pergunto novamente para o da lanchonete de sucos. Onde fica? Desvio dos vendedores de tênis branco e encontro a entrada principal. Uma praça. Marco zero. Está na cara que sou turista: fico para ler a placa da estátua. Máquina fotográfica na mão e o mapa semiaberto. Algumas pombas atrapalham a leitura. Quando eu era criança, adorava correr atrás delas na praça Osório, espantando-as de meu caminho. Mas parece que quanto mais velho fico, as pombas ficam gatos: teimosas. Bato perto de uma delas para tentar ler o que dizem as palavras, ela sai rapidamente, mas logo volta. As pessoas ao redor não vêem o mesmo que eu. São inertes a esses acontecimentos. Será possível que ninguém se incomoda com os pássaros? Com algum esforço, consigo entender o que significa aquele lugar histórico e ando até o museu. Próximo à porta, um homem de idade, barbudo, anda com leveza segurando um punhado de algo que não identifico. Deve tomar cuidado com os passos para não derrubar nada. Engano-me. Com um gesto inesperado, abre as mãos espalhando tudo pela calçada. Grãos de milho. Parece se deliciar com a cena: todas as pombas da praça, sabendo que o velho joga a comida, voam direto para lá. Uma por uma. Bico no chão e nas asas. Uma revoada que brigava por comida, eufóricas. O homem dá as costas para os pássaros por alguns segundos e volta com um saco preto na mão, desses escuros de lixo. Fico parado entre a porta do museu, os pássaros e o velho. Em seu rosto, um sorriso curto pelo canto da boca. Com uma das mãos abre o saco, enquanto a outra alisa a barba, pacientemente, calculando todos os movimentos. Procuro agir naturalmente e desvio a atenção para o outro lado da cena. Uma mulher de vestido florido, rasgado, tenta colocar algumas latinhas de refrigerante no carrinho com papelão. Quando volto o olhar para o homem, vejo pombas desesperadas sendo agarradas e colocadas dentro do saco. Uma depois da outra. Elas se debatem tentando sair do escuro, mas o velho segura com mais força e fecha a entrada com um nó bem apertado. Um olhar de satisfação aflora por sobre sua pele castigada e suada. Não há mais nenhum grão de milho pelo chão, tudo muito rápido. Ele grita para a mulher das latinhas esperar um pouco e joga o saco com as pombinhas por cima dos papéis. Os dois seguem pela rua até dobrarem a próxima esquina. Entro no museu que foi a escola de José de Anchieta, agora imagens sacras, santos em madeira policromada, santuários, pia batismal, quadros. Um jesuíta rodeado de índios e pássaros no óleo de Benedito Calixto. Seriam pombas? Até o dia em que Marquês de Pombal enxotou um por um. E assim fui ouvindo a estagiária de artes contanto histórias quinhentistas daquele pedaço da cidade. Gostei de seus lábios. Levanto a mão: já havia pombas nessa época por aqui? Como assim, senhor? Pombas, oras bolas. Já imaginou uma praça sem esses pássaros? Um cafezinho para terminar a tarde. No hotel estico-me pela cama, ainda seis da tarde. No sonho, acordo pomba: esse lugar está muito escuro, ar rarefeito. Olho para um homem em minha frente carregando uma máquina fotográfica e um pequeno mapa. Tenta ler as palavras da placa, mas acho que o estou atrapalhando. Quase sou derrubada por suas mãos, porém sou mais ágil, livro-me do vento. Logo volto ao mesmo ponto. Ao lado da entrada do museu, o velho barbudo de sempre. Eu sei que não devo ir, ele vai nos pegar, mas a fome fala mais alto, afinal de contas como resistir ao milhozinho que se espalha pelo chão?, ora bolas! Sem chances de fuga, sou agarrada e colocada em um saco. Sabia que isso ia acontecer. Esse lugar está muito escuro, ar rarefeito. Sinto que sou jogada em algum canto. Duas pessoas conversam: velha, consegui cinco dessa vez. Sufocada. Falta. Escuro. O telefone do hotel. Acordo suado, enrolado debaixo da coberta. Senhor, são nove horas da noite, como pediu. Durante à noite, resolvi voltar à região dos inferninhos. Eles são inúmeros. Parecem ter saído de cada buraco das calçadas. Um ao lado do outro. Por apenas cinco reais você vai ver as mais gatinhas da noite de São Paulo. Quer provar? Uma dose de whisky, nacional, purinho. Pernas para quem te quero. Em debandada para o próximo quarteirão e mais casas, mulheres. Parece que estou entrando em um livro de João Antônio. Aquele ali pode ser qualquer Paulinho Perna Torna. Dessa vez nada de DVDs piratas, a pornografia é real mesmo. Pombas, só as de pernas de fora, com estrias, é certo. Entro em uma que me parece menos falida. Sento-me na primeira mesa que vejo. O bar vazio. Recebo minha dose, água quase pura. Três mulheres aparecem vindas de trás de uma cortina mofada. Sem pedir licença acomodam-se nas cadeiras. Conhecem a teoria do buraco negro?Como é que é? Rio sozinho com a brincadeira. Pedem um cigarro. Vamos ao que interessa: quanto? Subo as escadas com as três. Uma noite dessas, vi um filme em que três mulheres brincavam peladas em uma grande cama. Tive vontade. Nuas, desfilam pelo quartinho apertado. Em nada lembram as mulheres do filme, procuro ignorar a falta dos dentes e o cheiro forte de catinga barata. Os beijos são para a estagiária do museu, lábios carnudos. Latinos. Uma em cima da outra, eu no topo. Caio suado no colchão aberto. Apenas quinze reais para cada uma e tomo a direção da porta. Ainda com o alarido do sexo pelo corpo arranhado, caminho pelo Vale do Anhangabaú noturno. De tanto que me falaram, ando com um pé na frente e os dois olhos ao redor. Mais cuidado do que nunca. Embaixo de uma árvore, um carrinho de lixo e um cobertor aberto, furado. Estico o pescoço. Aquela barba, uma velha, os dois deitados com as cabeças próximas a um saco preto. Guardam as pombas. Sinto vontade de acordá-los. Por que pegaram os pássaros? Fazem isso sempre? Mas não os incomodo, o sabor do perfume barato das mulheres ainda na minha boca, sigo adiante. Pela portaria do hotel peço para que me acordem às nove. Amanhã volto para Curitiba.