Um conto de Carolina A. Ieda
Carolina A. Ieda. Atualmente vive e mora em Várzea Grande – MT.
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Sars, mon amour
A primeira vez que escutei seu nome tive um sentimento inominável, era como ter a certeza das emoções vindouras. Convenhamos, o mundo era terrivelmente chato antes dele. A vida, terrivelmente igual. Desde então só busco por seu título, só me interesso por leituras de sua temática, durmo e sonho, você sabe com o quê. Em meu último sonhei que a vacina tinha chegado por correio, abri a caixa e ali estava o vidrinho com seu lacre metálico, aguardando a perfuração. Ao invés de utilizar apenas a dosagem indicada, enchi o corpo da seringa. Primeiro injetei em meu braço, parando de empurrar o êmbolo na metade do conteúdo, depois tirei a blusa e injetei o restante em um dos meus seios. Apesar do estranhamento, garanto que essa não é a parte mais absurda do sonho. Acontece que essa vacina possuía um efeito colateral: após a aplicação, ela automaticamente tornava-se fluorescente na área em que foi injetada. Então eu corri para desligar a luz e me ver no espelho. Havia um círculo azul neon no braço recém-perfurado, já no seio direito a vacina tinha se espalhado por ele todo, não de forma sólida como no braço, mas se enraizando como galhos por toda a costela e cintura, parecendo uma tatuagem feita de tinta fluorescente. No final apareceu um traço semelhante a um tronco.
Tive consulta médica essa semana e solicitei um motorista de aplicativo para a empreitada. Vidros abertos para arejar o veículo e máscara boa, dessas caras e que estavam em falta no início da pandemia. Foi inacreditável ver tantas cabeças indo para o abate e veja bem, isso era por volta de 15h. Desejo que todos morram. E cada número é como uma flor que ele me traz. Ando desejando um buquê farto. Chorei e sofri por cada um que se apagou da minha vida e já estou poupando as glândulas lacrimais para os próximos. Não estou mentido e você sabe que meu sofrimento é real, mas não posso negar que eu sinto o coração acelerar toda vez que vejo uma notícia desanimadora e escrota que sou, nem disfarço minha satisfação que logo se converte em uma energia inesgotável. Ando questionando minha bondade, já que posso facilmente cair no limbo da incompreensão. Sou tão ruim assim?
Acho que posso ser. Dia desses imaginei um maquinário, ao estilo Jhon Frink, onde o Sars pudesse ser aumentado até o tamanho daquelas bolinhas de silicone com espinhos, feitas para massagear as mãos. Eu pegaria o vírus e nem daria a ele o trabalho de encontrar minha saliva. Chuparia cada espícula, cada pequena protuberância. É claro que eu não faria isso e essa máquina não existe. Meu amor é a distância entre o medo e o fascínio, porém não passa de uma grande covardia, já que só posso amá-lo na evitação. Queria ter a coragem de quem ama o vírus com a própria vida. Por exemplo, neste exato momento existem pessoas contaminadas enfiando suas línguas infectas na boca de seus amores. E está tudo bem. Para elas não existe nada de errado, triste ou dotado de culpa.
Senti sede quando saí da consulta médica. Entrei em uma lanchonete contendo duas mulheres uniformizadas e um homem, esse de máscara no queixo, que insistiram em me atender como se eu quisesse. Sinceramente, não preciso do auxílio de três pessoas para comprar uma garrafa de água. Só que as funcionárias estavam tão desesperadas em atender bem qualquer cliente, que enquanto uma oferecia-me as mesas, a outra já estava colocando o cardápio, os sachês de maionese e aquele jogo americano ridículo de papel que esses lugares insistem em usar. Recusei a atenção e a mesa. No entanto, enquanto passava a mercadoria no caixa, um casal com duas crianças chegou ao local e, obviamente, a tríade da lanchonete foi ao encontro dos novos clientes. Houve a manifestação de uma alegria real, um verdadeiro laço entre os três. O homem, que se apresentou como dono do estabelecimento, mais atrapalhava as funcionárias do que de fato auxiliava. Terminando de realizar o pagamento, notei que a mesa antes ofertada a mim estava ocupada por uma família inteira, todos sem máscara, comendo e sendo atendidos como as pessoas mais especiais do mundo. Eu, que segundos atrás estava desejando a morte gratuitamente, senti pena. Pena e tristeza, mais especificamente. Só pude me perguntar sobre essa felicidade em poder trabalhar, sobre este trabalho que significa abrir portas, forrar mesas e insistir para que o cliente compre qualquer coisa a mais do cardápio. Essa é a felicidade de sobreviver? Talvez. Na saída, pedi por mais álcool e uma das funcionárias, antes tão solícita, fechou a cara e trouxe uma embalagem de tampa velha e aberta, com resíduos ressecados obstruindo a passagem do gel.
Os sentimentos são incríveis, não acha? Mal terminei de sentir a carga de culpa e logo desejei que as funcionárias, o patrão e toda aquela família estivessem ensacados em um necrotério superlotado. É uma pena que o vírus não possua um critério mais pessoalista em relação às vítimas. Quando aqueles termômetros do centro mostrarem 46°/47° os mesmos pássaros mortos estarão nas ruas, assassinados pelo calor que só aumenta a cada ano. Só que agora meu coração está mais aquecido, já que posso imaginar O IML cuiabano cozinhando paredes afora, enquanto os corpos apodrecem paredes adentro. O problema é que em todo lugar existem lanchonetes com funcionárias demasiadamente atenciosas e proprietários espalhafatosos. Todos prontos e muito bem treinados para te fazer esquecer que, naquele espaço de acolhimento artificial, a causa da sua morte pode estar entrando pelo seu nariz.
(Silêncio)
A verdade é que eu sou uma hipócrita. Gostaria, mas não admito, de ser como essa imagem caricata que chamo de “todo mundo” e provavelmente o meu martírio é não conseguir fingir essa normalidade proposta. Não consigo colocar um sorriso nessa minha cara pálida, carente de vitamina D após quase um ano e seis meses de confinamento. O problema é que odeio essa felicidade que só pode existir na ignorância e não me sinto convidada a participar deste teatro. Quero mais mortes sim, mais gente enlutada, mais raiva estocada e mais indignação. O mundo e a vida não podem parar? E eu? O que faço com meus mortos mal sepultados? Onde vou enfiar essa inabilidade? Quando lembro da notícia que recebi, fiquei imaginando o enterro dela, aquela pessoa que jamais voltarei a ver nesta vida, sendo enterrada no mesmo dia em que recebi o comunicado fúnebre. Dizem que poderia ser pior, ainda tentaram me convencer de minha sorte, já que pelo menos ela não foi enterrada naquelas valas coletivas do norte do país. Imagino a retroescavadeira lutando contra o fluxo de caixões enfileirados como peças de lego. Nisso tive a sensação de que se fosse possível, os gestores colocariam os caixões de lado para poupar o espaço do cemitério. Daqui a alguns anos quando essas covas forem abertas acredito que encontrarão apenas as faces com as alças, ao invés da cruz clássica adornando as tampas.
Dizem que todos devem voltar a trabalhar se quiserem sobreviver, pois eu estou trabalhando e sobrevivendo. Não deixei de trabalhar um minuto, pelo contrário. O foda é que as atendentes da lanchonete são consideradas trabalhadoras e seu patrão, um empreendedor. Eu não. Enxergam-me como uma vagabunda privilegiada que está trancada por escolha própria. Então fico neste movimento de espera pelas boas novas da peste, aguardando as imagens que só aparecerão quando se tornarem indisfarçáveis. Junto com os números, sem dúvida. Inclusive quando os números que nunca corresponderam à realidade tornarem-se absurdos mesmo com a farsa e conivência que os antecedem.
Com a correnteza do Ganges que traz consigo a verdade, estamos todos abaixo do pé direito de Shiva. Danço no compasso desse ritmo quase cósmico, sendo espectadora e sentindo o poder das modificações externas. Quando observo seu comportamento, seus recuos, avanços, suas fotos coloridas digitalmente, tenho certeza de minha sorte. Sorte de ser contemporânea dessa existência grandiosa, embora microscópica. Vivo e sou parte da história e serei testemunha de que vi o germe da destruição, o golpe de misericórdia que estava faltante. No fechar de meus olhos, logo o vejo ali, despindo-se e vestindo-se de novas cores pintadas por terceiros. Peço apenas que os corpos continuem queimando. Convenhamos, é impossível ter empatia. Não é possível ter uma fagulha de bondade vendo os mesmos erros sendo repetidos com as mesmas caras arreganhando seus sorrisos nus. Não tenho. Boa parte das pessoas que morreram, por enquanto, eram completamente irrelevantes. Tão irrelevantes que a vida continuou, muito bem obrigada. Se fossem tão importantes assim, não pisaríamos em corpos com tamanha naturalidade. Devemos admitir que a maioria dos nossos são da mesma casta das atendentes da infeliz lanchonete, essas que ao primeiro comando obedecerão seus patrões histriônicos. Pouco adianta rememorar as emas ou os desinfetantes, muito menos seus disseminadores. Falta-nos a sensibilidade para entender que a morte gratuita não é uma tragédia para quem nunca foi sujeito o bastante para habitar a vida. Só sei que sinto minha superioridade a cada manifestação destes grupos, que lutarão para cumprir o papel de fornecer mais combustível para minha verdadeira paixão.
Sabe qual é o maior medo? Temo a erradicação do vírus, ou o seu esquecimento. Porém ele é tão imprevisível quanto os romances nunca superados completamente. Quando você acha que tudo está caminhando para uma resolução íntima, quando todos os sinais indicam que a estrada correta foi encontrada, chega uma notícia ou comentário capaz de embaralhar todo o mapa. É o vício da superação imediata, esse comportamento higiênico que temos com tudo que morre dentro da gente. Quanto mais ignorado é, mais forte, mais imprevisível e mais exigente ressurge. Nem vou aprofundar essa próxima questão. Liberté, égalité, fraternité, mas só para eles, não é mesmo? A áfrica que se exploda. Sars, mon amour, não desapareça, não parta sem deixar rastros. Traga o limite da sanidade para essas mãos brancas que alicerçam os cus apertadíssimos de seus habitantes, todos temendo pelas porcentagens cada vez mais decrescentes de seus imunizantes. Pensei em todos os cenários e já adianto que caso ocorra o contrário farei de meu amor uma memória a ser contada. Caso queiram apagar seu nome, mais minha boca se abrirá para invocá-lo, se tentarem esquecê-lo, erguerei memoriais em nome de sua eternidade. Se tudo for impossível, farei de meu amor uma prece. Sars nosso, viajante dos mares e do céu. Noticiado seja teu nome, venha destruir nossos reinos e seu poder seja sua vontade. Aguardo seus sinais vindos tanto da terra quanto do céu, com a morte alheia nos alimentai hoje e perdoai nossas ofensas a ti. Da mesma forma que perdoamos as nossas repetidas ofensas, não nos deixei cair em ilusórias tentações. No mais livrai-nos dessa vazia vida. Amém.
Amém.
Já que a liberdade de crença é um direito em meu país, sinto-me autorizada a professar minha fé. Enquanto a grande parcela da população estava ocupada em cantar, louvar, incorporar ou dobrar seus joelhos, a minha divindade demonstrou sua dominação, adentrando nas vias aéreas dos presentes sem maiores dificuldades. Sua entidade te protege? Seu deus te ama? Pois o meu te ama mais. Ele é a própria natureza cumprindo sua missão, a soma de todos os atentados contra nós mesmos. As mesmas bocas que se abriram para professar suas crenças, pelo menos uma parte, estão com elas mais abertas do que nunca, com os cantos dos lábios ressecados pelo tubo que empala a garganta dos intubados. Sabe o que é mais engraçado? Nos primeiros dias de fechamento eu saí para comprar um remédio na Avenida do CPA, era fim da tarde e só as farmácias estavam abertas. Sentei embaixo do viaduto e observei aquelas pistas consideradas largas, que estavam completamente vazias. Acima delas estava a visão do céu que nunca decepciona, mesmo entre prédios. Era a mesma cidade que tanto odiei com o mesmo asfalto que servirá de cama para os pássaros mortos. Foi a primeira vez que pude vê-la em silêncio, respirando com liberdade. Recebi seu convite para uma dança, para a vida, sentindo que poderia habitá-la, já que alguma semelhança entre nós era visível.
E o que mais você sentiu?
Eu senti pertencimento.