Um conto de Cinthia Kriemler
Cinthia Kriemler é carioca, mas mora em Brasília. É contista, romancista e poeta. Autora de Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance. Editora Patuá, 2017), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018. Publicou também pela Editora Patuá: Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos. 2015 – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016); Sob os escombros (Contos. 2014); Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Editora Penalux, 2017) e participa de diversas antologias de contos e de poesia. Tem textos e poemas publicados em: Revista Gueto, Revista InComunidade, Revista SAMIZDAT, Jornal ORelevo, Mallarmargens, Germina, Escritoras suicidas, Diversos afins, Revista Philos.
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Diferença
Descobriu bem cedo o quanto gostava de sexo. E se deitou (a princípio, desajeitado) com mulheres mais velhas e experientes, até aprender tudo o que elas gostavam. Entregou-se, então, às peles finas e lisas das meninas mais jovens. De início, uma obsessão pelas virgens. Mas cansou-se delas porque se apegavam demais, querendo torná-lo posse. Ciumentas, cobravam trocas que ele não se lembrava de haver combinado. Ainda por cima, uma cisma. A de que uma delas acabaria engravidando naquele entra e sai irresponsável sem camisinha. Gosto de sentir pele com pele — era o que ele dizia para dobrá-las à sua vontade. E elas cediam com medo de que ele fosse embora.
Passou então às mulheres casuais. Não possuíam a ingenuidade das virgens, não aceitavam trepadas sem camisinha, mas também não maquinavam casamento. Transavam. E mais tarde ele ouvia o barulho dos saltos na cerâmica, afastando-se para a porta. Algumas, ainda de madrugada. Outras, após um rápido bom-dia que, algumas vezes, era seguido de mais uma trepada.
Fez fama de bom amante. Por meio dessa rede de informações invisível que as mulheres mantêm entre si. Foi quando esbarrou em Maria Eduarda numa livraria. Ambos disputando o último exemplar de um livro que, ao final de um cappuccino tomado com conversa variada, já não se poderia dizer a quem pertenceria, ou se pertenceria.
Em um mês, só havia ela. Em um mês, faziam na cama o que ele nunca havia feito. Um tipo de alquimia assustadora que ia além de pele e pelos e fluidos. Um arrebatamento sem nome que os isolava numa realidade só deles.
O medo veio de repente. De que ela fosse embora, de que ela pudesse ter mais alguém. Do medo ao ciúme, escorregou no discurso e no tom de voz, e exigiu que ela se afastasse dos amigos da faculdade, das amigas íntimas, dos colegas de trabalho, do gato preto e branco. Separaram-se. Ela se separou dele. Não aguentava homem possessivo. Não queria dividir a cama, os dias, a vida com alguém tão inseguro. Não aceitava viver numa bolha. Não admitia imposição de homem.
Ele ouviu. E falou, também. Mas nenhum argumento a convenceu. Nem chantagem emocional. Nem a ameaça dele de tirar a própria vida. Nem o choro que ele deixou escorrer livremente, apesar dos ensinamentos do pai arcaico que ainda gritavam na sua cabeça: “chorar é coisa de mulherzinha”. Nada a impediu de ir.
Encontraram-se na rua, uns meses depois. Meses de inferno que ele passou imaginando como a teria de novo. Ter. Ter. Ter. Ter. Ter. Ter. Viciado naquela posse imperativa que ele tanto tinha desprezado nas outras mulheres e que agora havia se instalado nas suas entranhas enlouquecidas. Desejo. Fome. Gana. Paranoia em looping.
E lá estava ela, Maria Eduarda, ao lado de um homem. Loiro, negro, alto, baixo, gordo, magro. Que importa. Maria Eduarda sorrindo. Maria Eduarda de mãos dadas. Os olhos dela comendo os olhos daquele homem que não era ele. Uma sucessão insuportável de trivialidades de afeto que só os amantes conseguem performatizar.
Ele, imóvel. Meio distante, meio perto. Sofrendo do que não existia mais. Lembrando. Dos beijos mordidos. Da língua que arrepiava a sua orelha. Dos seios fartos, arredondados nas extremidades, que ele chupava até formarem um bico aprisionado pela ponta dos seus dentes. Das unhas que traçavam estímulos nas suas costas. Da boca que sugava, apertava, soltava, para logo prender novamente, entre as bochechas macias, o seu pênis excitado e faminto. Lembrando. Dele dentro dela. Acolhido, engolido por aquela porta quente e apertada que pulsava com ele, para ele, umedecida, ávida, esfomeada, mandona.
Mas não foi aí que ele desabou. Não foi pelas lembranças que ele desatou em soluços, sem se importar com o espanto e a piedade e as risadas das pessoas ao redor. Foi pela diferença. A diferença do olhar que ela entregava para aquele outro que não era ele, não era ele, não era ele. Transbordando de uma conversa sem voz que falava de coisas que os olhos dele nunca tinham ouvido. Nem ouviriam.