Um conto de Clodoaldo Turcato
Clodoaldo Turcato, o Codo, tem 47 anos e é nascido em Caibi, oeste de Santa Catarina. Escritor, dramaturgo, contador, jornalista e artista plástico. Escreve desde os 8 anos de idade, porém, aos 40, iniciou a edição de seus escritos. Possui 5 romances, 6 livros de contos, 3 de poesia, 2 de teatro, 1 roteiro para longa metragem, inúmeros artigos em jornais e revistas. Atualmente escreve para a Revista Pense Mais de São Paulo. Toda sua obra foi criada pelo Brasil afora, mas em Recife, cidade que adotou como sua, transformou-se em livros. Em 2013, iniciou seu trabalho como ilustrador e pintor, e tem trabalhos expostos e vendidos na Argentina, Portugal, Irlanda, França, Itália, Estados Unidos, México, Suíça, Uruguai e Holanda, além de todos os Estados Brasileiros e do Distrito Federal.
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A BONECA DE VIDRO
Lá estava ela, a minha frente, andando devagar, lentamente rebolando, num ressoar de sinos tocado pelos deuses. Seguiu para o terminal de ônibus e tomou um coletivo para Boa Viagem.
Sua entrada foi triunfal e percebida por todos os homens que destinavam suas vidas naquele ensopado de gente, em típica manhã quente do Recife. Confesso que não tinha nada para fazer em Boa Viagem. Meu Destino era a caminho da Zona Norte, mas naquela manhã joguei às favas meu compromisso para seguir aquela mulher.
Chegou ao Pina e foi para a primeira cadeira disponível naquela segunda-feira de poucas gentes na praia. Despiu-se sem pressa como a querer expor às outras mulheres o quanto eram inferiores. Um biquíni amarelo surgiu e cada linha geometricamente delineada pelo Criador esborrou aos meus olhos. Seu corpo era grande agora, um misto de estátua renascentista com uma tela de Egon Schiele.
Passei por aquelas pernas redondas e contornos geometricamente calculados sem desejos humanos, não a queria para a cama simplesmente, bastaria ficar olhando-a o dia todo para saciar a tudo que eu mais pretendia numa mulher.
_ Ela vem aqui toda segunda-feira – disse-me uma vendedora de churrasquinho ao perceber meu encantamento – Fica umas duas horas e vai para casa. Sempre assim. Pouco se sabe dela. Deve ser uma garota de programa. Dessas finas.
Odiei aquela mulher. Como poderia pensar tal coisa dentro de sua camisa suja do Santa Cruz e um cabelo que não conseguia mais se encontrar diante de tantos caracóis, coçados com unhas mal feitas e sujas? Aliviou o fato de ter me informado. Ignorei o resto que pronunciou, exceto o final da frase que sugeriu que eu deveria ter muita grana para chegar perto dela.
Saltei para areia para me aproximar dela.
O rosto tinha formas curvilíneas e o nariz afilado sem qualquer indício de intervenção. O cabelo era liso natural e mesmo que jurassem ser produto de uma chapinha, não acreditaria: castanhos e lisos.
Pus minha cadeira o mais próximo que pude. Pedi um refrigerante e tentei olhar com discrição, sem êxito. Ela pareceu não se importar. Tomou o protetor de pele e jurei que iria pedir que passasse em suas costas. Não pediu. Isso aumentou ainda mais meu encanto. Ela não estava procurando clientes ricos. Poderia também ter percebido minha miséria. Refutei a ideia. Ela passou a ser minha deusa encantada e fim.
Não consegui qualquer contato. Ela seguiu para o mar algumas vezes. Eu estava sem sunga, mal preparado e não a segui. A maldita ideia dos quadros me chamava de volta. Precisava saber que horário e para onde iria depois.
Quando ela voltou para sua cadeira e iniciou o ritual de vestimenta, vi um crachá de uma loja do Shopping Recife. Teria que confirmar. Deixei que tomasse o caminho e segui depois, tomando o cuidado para não pegar o mesmo coletivo. Meia hora depois eu circundava a loja de confecções e não a via. Então perguntei a um vendedor pelo nome dela:
_ Dona Giovana é a gerente, está no piso superior. Gostaria de falar com ela?
Gerente!
Respondi que não era nada urgente e viria noutro dia.
E assim fiz vários dias da semana, mapeando seus costumes para uma possível aproximação. Não tinha um plano exato, apenas uma vaga ideia de que ela seria minha, próxima de mim, um instinto muito forte.
De qualquer maneira eu estava apaixonado.
Foram algumas semanas, não sei mais direito quanto. Acho que umas quinze até que consegui meu primeiro contato. Foi na loja. Pedi para falar com ela, tinha uma reclamação com referência a uma calça que comprara, de propósito, dias antes. A calça estava rasgada, queria trocá-la.
_ Posso adiantar o assunto – perguntou-me uma solícita atendente.
_ Não! O assunto é com ela, somente com ela – insisti.
Em dez minutos a bela gerente estava a minha frente. Ao mostrar meu problema ela me disse que eu poderia ter resolvido com a atendente. Era um assunto menor.
_ Desculpe, me pareceu que arrumaria complicações e gosto de tratar com quem manda – respondi olhando direto nos olhos.
Ela sorriu, olhou por todo meu corpo de cima a baixo.
_ Já vi você algumas vezes – pensou um pouco – Na praia. Sim! Várias vezes.
_ Sim, na praia – confessei.
_ Está me seguindo?
_ E se estiver?
_ Pode se tornar grave por dois motivos: assédio ou paixão.
Ela sabia o exatamente o que causava em mim.
_ Então, se for paixão, já era – disse-lhe sem mesuras.
Ela baixou a cabeça e deu um meio sorriso.
_ Bom, temos um problema aqui.
_ Casada?
_ Não. Namorando.
_ Sem problemas.
Ela voltou a sorrir.
Em seguida ela chamou uma vendedora morena, cabelos encaracolados e alta. Tomou sua mão de forma carinhosa e mostrou a aliança.
_ Querida, este é um amigo que conheci noutro dia na praia. Chama-se… Como é seu nome, mesmo?
_ Evandro – respondi automaticamente.
_ Pois é. Qualquer dia a gente chama você para uma cerveja, pode ser?
Concordei maquinalmente. Minha batalha estava perdida.
– Olha, a Isabela pode trocar a peça para ti – concluiu.
Naquele instante, ela estourou em minha frente feito vidro.