Um conto de Débora Garcia
Débora Garcia é poetisa e gestora cultural com ampla experiência nas áreas do livro e da literatura. É idealizadora e artista no coletivo Sarau das Pretas, sarau literário protagonizado por mulheres negras. Atua junto aos coletivos Quilombhoje Literatura e Associação Cultural Literatura no Brasil, nos quais desenvolve saraus e projetos de incentivo à leitura e à escrita. Ministra palestras e formações sobre literatura, políticas culturais, questões de gênero e cultura afro-brasileira, além de desenvolver projetos culturais que agregam a literatura às artes cênicas e à música. É autora do livro Coroações – Aurora de poemas, e também publicou seus textos em diversas antologias voltadas à literatura negra, feminina e periférica. É formada em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista – UNESP e trabalha no Anexo de Violência Doméstica e Familiar da Comarca de Suzano.
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Doce Aventura
Carolina tinha cinco anos e desde bebê morava no abrigo Nossa Senhora Aparecida. Apesar de sua triste história, era uma criança muito alegre, extrovertida, cheia de vida. Dentre as brincadeiras e jogos, o que mais gostava, era colecionar figurinhas. Tinha muitos álbuns que cuidava com todo zelo do mundo.
Certo dia estava tristonha, sozinha no refeitório. Folheava um dos seus álbuns de figurinha. Roberto, seu melhor amigo, aproximou-se devagar e perguntou:
– O que você tem Carol?
A menina continuou folheando. Roberto sentou-se em sua frente e a olhou, sabia que estava chateada. Perguntou novamente:
– O que foi Carol, fala…
Então a menina disse, com pesar:
– Ah… é que hoje faço aniversário…
– Sim, eu sei. Por isso que achei estranho. Você adora comemorar seu aniversário!
– É que… Eu queria algo diferente sabe… Queria pelo menos uma vez na vida passar esse dia longe daqui. Andar, correr, passear pelas ruas como as crianças normais fazem, sem as tias por perto… Queria completar o meu álbum de figurinhas, e não consegui… A tia disse que iria trazer, mas esqueceu. Disse que tem muita coisa para se preocupar, que eu não sou a única criança daqui, por isso não pode perder tempo com essa bobeira de figurinha. Bobeira…
Disse com muita tristeza, passando sua pequenina mão sobre a página vazia. Uma tímida lágrima brotou no canto do seu olho e rolou por sua face.
Roberto era apenas um ano mais velho do que Carolina, mas de alguma forma se sentia responsável por ela. Cresciam juntos no abrigo e não se desgrudavam. Faziam as refeições, as tarefas e brincavam sempre juntos. Somente se separavam na hora de dormir. Eram unha e carne. Na verdade, Roberto cultivava uma paixão secreta pela amiga.
O café da manhã foi servido. Roberto mal comeu. Estava pensando em uma maneira para fazer com que esse dia fosse realmente especial, era uma questão de honra ver um sorriso no rosto do seu grande amor. De repente seu rosto se iluminou, teve uma ideia. Então estendeu o dedo mindinho à sua amiga e disse:
– Confia em mim?
A menina ficou surpresa, mas não poderia dar outra resposta, afinal, realmente confiava em Roberto, que era praticamente um irmão para ela. Estendeu o dedo mindinho que se cruzou fortemente com o dele. Ficaram assim por algum tempo, trocando sorrisos sapecas. O pacto estava feito.
Após o café as crianças se juntaram ao grupo que iria a pé para a escola que ficava no próximo quarteirão. A tia fez a contagem, estavam todos ali. Assim o grupo saiu rumo ao colégio, logo que virou a esquina, Carol e Roberto se separaram sem serem percebidos e seguiram em rumo à sua grande aventura.
Carolina sentiu uma euforia eletrizante. O ar estava gelado e ao entrar pelo nariz parecia que tomava conta de todo o seu ser. Seu coração batia acelerado. Roberto também estava eufórico, e sentiu-se poderoso como um daqueles agentes secretos de filmes de aventura, que tramam planos mirabolantes de fuga. Com certeza era um deles.
Segurou firme na mão de Carolina, olhou-a ternamente e disse:
– É pra gente não se perder.
Seguiram andando aleatoriamente. Não havia um destino, queriam apenas por um dia não ser mais uma criança dentre cinquenta, reclusas entre as paredes de um abrigo. Queriam apenas por um dia não fazer aquilo que as tias diziam que tinham que fazer. Queriam apenas por um dia ser Carol e Betinho, duas crianças livres.
Os dois estavam atentos a todo o movimento da cidade, carros, prédios, barulhos diversos e gente, muita gente, grande e diferente. Eram tantas informações novas que passaram um bom tempo sem conversar. Carolina estava com os olhos agitados com tanta novidade e Roberto estava com os olhos nela, admirado com a felicidade de sua amada. Ela estava ainda mais linda, pensou.
As pessoas estranhavam duas crianças pequenas, uniformizadas, de mãos dadas, caminhando sozinhas pela cidade. Passavam-lhes pela cabeça que talvez estivessem perdidas. Desconfiavam. Mas como não podiam parar, preferiam imaginar que os pais estariam por perto e, confortados, seguiam apressadamente para seus destinos.
Em meio a tantos prédios, Carolina avistou uma banca de flores. Soltou repentinamente a mão de Roberto e correu em direção às flores. Aproximou-se de uma rosa amarela e a cheirou profundamente:
– Olha Betinho, que linda, que cheirosa! Vem ver!
O menino logo se aproximou. Ambos estavam encantados, pois nunca tinham visto uma rosa amarela de verdade, somente as dos livros. Enquanto as crianças olhavam admiradas e comentavam sobre a novidade, o dono da banca se aproximou vagarosamente. Achou aquela situação inusitada. Logo que o viu, a menina perguntou:
– Moço, quem pintou a rosa de amarelo?
Assim que concluiu a pergunta, uma abelha aproximou-se da rosa, pousou vagarosamente e começou a sorver seu néctar. O rosto de Carolina iluminou-se, como se acabasse de fazer uma descoberta.
Ao perceber que a menina associou o fato de a abelha ser amarela com a cor da rosa, o vendedor começou a sorrir, admirado com tamanha ingenuidade. Retirou a rosa do vaso, agachou-se e entregou-a a Carolina, dizendo:
– Já que você gostou tanto, essa é para você.
Carolina não se conteve de felicidade. Nunca havia ganhado uma flor e ainda mais amarela, tingida pela abelha! Era realmente muita sorte, pensou. Com sorriso no rosto agradeceu o presente.
Quando se deu conta de que as crianças estavam sozinhas, o dono da banca perguntou:
– Cadê seus pais?
As crianças se olharam e rapidamente desconversaram. Roberto respondeu como haviam combinado:
– Eles estão logo ali esperando a gente. Tchau moço, obrigado.
Saíram apressadamente da banca. Seguiram pela Rua do Futuro, sempre de mãos dadas conversando sobre a rosa que Carolina trazia orgulhosa em sua pequena mão.
Metros à frente encontraram uma banca de revistas. Pararam. Ficaram simplesmente encantados com aquelas prateleiras abarrotadas de capas com cores, formas e texturas diferentes. Entraram. Roberto foi logo à prateleira dos gibis, adorava histórias em quadrinhos, principalmente as de super-heróis. Ficava imaginando os diálogos, pois ainda não sabia ler direito. Assim que encontrou a prateleira dos álbuns de figurinhas com todos os tipos de álbum, um mais lindo do que o outro, Carolina ficou eufórica. Mas quase que instantaneamente sua euforia foi substituída por uma grande tristeza, pois se lembrou do seu álbum que estava incompleto. E o que era pior, não tinha dinheiro para comprar as figurinhas que faltavam.
Sem que ela percebesse Roberto retirou da mochila um punhado de moedas e entregou-as ao vendedor.
Os dois passaram toda a manhã na banca, até que o menino sugeriu à amiga que fossem embora, pois ainda havia muito para ver. Ela não queria ir, se pudesse ficaria o resto do dia com os álbuns, mas resolveu seguir seu amigo.
Assim que iam sair, o vendedor os deteve:
– Espera um pouco menina linda, vi que você gostou muito dos álbuns. Tem um que esqueci de te mostrar, vem comigo ver.
Naquele instante, Roberto percebeu que a aventura tinha chegado ao fim.
Minutos depois, uma viatura da Polícia Militar parou em frente ao estabelecimento. Como as crianças estavam uniformizadas, o vendedor desconfiado, entrou em contato com o colégio e informou que as crianças estavam na banca.
As diretoras do colégio e do abrigo saíram da viatura aliviadas por terem finalmente encontrado os dois, mas, ao mesmo tempo, furiosas pela travessura:
– Que papelão heim! Por que vocês fugiram?
Roberto prontamente respondeu:
– A gente não fugiu tia. A gente só queria passear, hoje é aniversário da Carol.
– Tá, ta bom, criançada ingrata! Até parece que a gente não leva vocês pra passear nunca! Disse a diretora pegando-os pelo braço e empurrando-os para dentro do carro. Estava visivelmente transtornada.
Ao chegarem ao abrigo, toda criançada queria saber como foi a aventura dos dois. Mas não foi possível falar muita coisa, pois foram imediatamente colocados de castigo.
Carolina ficou muito triste, pois o dia do seu aniversário parecia tão perfeito e acabou assim… Roberto e ela de castigo. Dormiu ressentida.
No dia seguinte quando acordou, ao colocar os pés nos chão, Carolina percebeu que pisou em um plástico. Era um pacote de presente. Recolheu e o abriu vagarosamente. Viu que era o seu álbum de figurinhas com uma página marcada. Curiosa, não demorou em folhear a página e, para sua surpresa, o álbum estava completo. Todas as figurinhas que faltavam estavam ali.
Naquele dia, Carolina foi tomar café da manhã saltitante, feliz da vida. Roberto também estava visivelmente feliz, pois havia conseguido cumprir com a sua missão. Era um homem de honra, de palavra. Ninguém entendeu nada, pois ambos estavam de castigo e não podiam se falar durante o período da penitência.
E assim passaram um mês, trocando olhares e sorrisos sapecas.