Um conto de Edna Rezende
Edna Rezende é natural de Inhapim, Minas Gerais. Psicóloga com vários cursos de especialização na área, graduou-se também em Artes Cênicas. Reside em Brasília desde 1971. É autora das peças teatrais Cora, premiada no IV Concurso de Dramaturgia promovido pelo SESC (DF)/INACEN, e Prato feito, que obteve prêmio no XX Concurso Literário da Fundação Cultural do DF. A árvore das encomendas, seu primeiro livro de contos, foi publicado com recursos do FAC, da Secretaria de Cultura do DF, com destaque especial para personagens femininas, vigorosas e irônicas. No gênero lírico, publicou O sorriso atrás da porta, pela Editora Escrituras. O livro reúne poemas, permeados de impressões subjetivas, com motivação intimista, manifestações do pensar quotidiano. A Mulher Vitruviana, um livro híbrido – autobiografia/ensaio, foi publicado pela Editora Penalux em agosto de 2015. No texto, a autora, baseando-se na própria experiência e nas inúmeras fontes consultadas, fala da aquisição do hábito de fumar nas décadas 1950-1960, com suas contextualizações e desdobramentos. Nos últimos segmentos, o foco é o abandono do vício, em decorrência de enfermidade e do nascimento da neta Letícia. O livro revela humor e ironia diante da transitoriedade da vida. O conto abaixo faz parte de seu livro mais recente, A duras penas (Patuá, 2018).
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O COLEIRO
Nasci há quase um ano, possivelmente entre outubro e fevereiro. Levei um susto quando a casca que me cobria se partiu. É certo que eu, de dentro pra fora, investi contra ela muitas vezes. Mas não podia imaginar que, livre daquela clausura, iria encontrar tanta adversidade. Era um dia chuvoso e o vento atravessava o tufo de penas que cobria meu corpo e as ruínas do meu antigo refúgio. Ao me esticar para a esquerda, toquei em um corpo semelhante ao meu, morno e arrepiado. Soube, então, que éramos dois a lutar pela sobrevivência.
Depois de descansar um pouco, passei a observar o ambiente. Primeiro estiquei o pescoço para cima e me deparei com dois olhos, bem redondos, presumivelmente iguais aos meus. Assim como o bico. No resto, a diferença era enorme. Quem me abrigava tinha penas amarronzadas em todo o corpo e era capaz de abrir as asas para depô-las sobre nós, os dois ninhegos. Concluí que era nossa mãe. Tentei emitir algum som para pedir comida, mas não deu. Ouvi então um piado estranho, uma espécie de ruído esgoelado. Era o outro que, um pouco mais velho, conseguira se comunicar.
Minha mãe entendeu logo. Talvez tivesse outros filhos, mas como confirmar isso? Com o bico, ela pegou uma semente e ajeitou-a na minha boca. Fez a mesma coisa com meu irmão e passou a alternar o procedimento, ora meu irmão recebia a semente, ora eu. Satisfeito, pensei em me enroscar novamente debaixo das penas da minha mãe. Não cheguei a fazê-lo, porém. Vi alguém do outro lado da grade, que, penso, sempre estivera ali.
Tratava-se de um pássaro lindo, com cabeça, asas e rabo escuros, o que destacava a barriga branca. Trazia no pescoço um colarinho branco e, logo abaixo, uma nesga preta, para delimitar a barriga. Lateralmente, do bico até o colar, uma listinha branca lembrava um bigode. De cada lado, pequena pinta branca transformava-se em lista quando o pássaro abria as asas. Reparei que ele dava comida para minha mãe, por entre as ripas. Não tardou muito, uma mulher de cabelos vermelhos puxou a grade e o belo passarinho veio morar conosco. Ela colocou outros alimentos: milho-verde, jiló, couve, pepino e uns bichinhos deliciosos, as larvas de tenébrio.
Durante uns dias, vivi sob as asas da minha mãe, num lugar especial, forrado de raiz de capim e de fiapos de casca de coco. Depois de algum tempo, eu já conseguia comer sozinho. Aí, nos separaram. Não sei onde estão os companheiros de outrora. Possivelmente em outras moradas.
Depois da muda de pardo, me deram uma gaiola. Sei cantar muito bem, sou elogiado. Minha barriga é branca, ostento meu colar branco, sou coleirinho. Orgulho-me da minha aparência, bela como a da ave que admirei no passado, e que, hoje sei, era meu pai.
Contei esta história para mim mesmo, porque preciso me lembrar de que sou um passarinho, destinado a galar os ovos das fêmeas, das quais ainda não tive notícia. Tento conservar meus pés nesses poleiros, tomar meu banho diário, comer alpiste e sujar o jornal que forra a gaiola, o ritual que mantém a continuidade da vida. Temo perder minha identidade, diante do fascínio que um animal maravilhoso exerce sobre mim, capaz de abalar convicções e raciocínio.
No quintal à minha frente, nada se modificou. Posso ver toda a extensão do gramado e sentir o perfume da rosa brava que circunda a janela banhada pelos raios de sol. Minha gaiola, que a aragem balança, está presa no mesmo gancho de sempre. Somente à noitinha a mulher de cabelos vermelhos, velando pela minha segurança, me leva para a varanda fechada, onde permaneço a noite inteira. Diz que é por causa das cobras. E agora eu, que ansiava pela luz da manhã, sonho com o crepúsculo, que anuncia o momento esperado. É nessa hora que ela, verde e linda, chega ao jardim. É uma cobra, sem dúvida.
Da primeira aparição, lembro-me bem. Era uma tarde ensolarada de inverno. Aos poucos o ocaso salpicava de manchas escuras as plantas do jardim, prenunciando a noite. A música tomou o interior do meu corpo e, para não explodir, comecei a soltar o meu canto simples e melodioso, de poucas notas. Deliciava-me com as pequenas pausas e a retomada rápida, para emitir uma frase musical diferente. E aí, a faixa saiu de entre as galhadas da murta e se perdeu nas sombras do chão. Tive medo de que não voltasse e, na tentativa de retê-la, incitei de forma alucinante a voz do coração.
O animal surgiu fulgurante e se destacou do chão terroso. Ergueu-se o mais que pode e, mesmo sem pernas, modulava languidamente o seu corpo roliço e verde, fragmentado em pequenas esmeraldas sob efeito da luz. Nesse espetáculo, eu era maestro e diretor. Se cantava rápido, o réptil volteava seu corpo como se fosse tragado por um remoinho de loucura, numa ginga imoderada. Quando eu gorjeava devagar, a cobra se punha voluptuosamente de pé, exibindo seus dons pendulares. Agora ela sempre me visita e eu a espero, ávido daquela estranheza magnífica, que mascara a realidade e me encaminha para o sonho.
Por diversas vezes, a cobra verde rastejou até o pé de rosa brava e enfunou sua cabeça em direção à minha gaiola. Penso que um dia ela forçará a portinhola e eu, com certeza, conviverei, no mesmo recinto, com seus olhos fulgurantes e com sua língua, labareda sutil que se aviva e se esconde.
Nasci no verão, no meio do mato. Uma pequena clareira de chão terroso serviu de apoio ao meu invólucro apertado. Para habitá-lo, tive que me enrolar bastante, a ponto de sentir, na pele, o toque de um pequeno espinho que eu tinha no centro do lábio superior. Depois de muitas tentativas, consegui serrar, com o dente do ovo, a casca que me recobria, pergaminhosa e úmida. Ao sair, observei que havia onze ovos amontoados, brancos e amassados. Apenas um ainda se conservava rombudo. Logo uma tira comprida e verde, sem pernas, saiu dele e se movimentou rapidamente em direção ao mato. Não parou perto de mim, mas pude observá-la. Éramos iguais, cobras-cipó.
Passei por muitas peripécias, desde a saída da minha resistente casca protetora até a vida solitária nos troncos de árvores, sempre atenta para não me ferir. Não conheci minha mãe. Por referência às minhas origens, tenho apenas aquela fita verde igual a mim, deslizando pelo chão em direção à floresta, logo depois que nasci.
Em pouco tempo, e com pesar, perdi o dente do ovo, a tal serra que me ajudou a fender a casca. Senti-me desprotegida, até perceber que ele não me fazia falta. Porque sempre estive só, não sei ao certo o que as outras cobras comem. Quanto a mim, aprecio os camundongos, que se escondem nas raízes das árvores, atraídos por algum alimento. Fico bem quieta, armo o bote e zás. Mas não sou gulosa. Aguento muito tempo sem comer.
Em certo dia, presenciei uma cena curiosa: uma cobra que não era cipó picou um cachorro-do-mato. Vi perfeitamente que ela possuía dois dentes na frente da boca e que, com eles, feriu sua presa. Fiquei perplexa porque não tenho dentes assim. Os meus ficam bem atrás, quase no fundo da minha boca. Neste ponto, sempre estive em desvantagem. Não posso me queixar, porém. Poucos animais têm essa capacidade de se esconder, de se fingir cipó. É o que eu faço, sempre que me agridem ou quando algo me amedronta.
Acredito que tenho dois anos. O quanto já percorri de déu em déu? Não tenho a mínima ideia. Quem poderia medir o meu rastro, marcado nos galhos das árvores, onde treino meu mimetismo? Debaixo delas se avolumam peles de vários tipos de cobras, imprestáveis depois das mudas. Observo esses tubos de escamas viradas pelo avesso com muito cuidado. Pode haver alguma inimiga, rondando a clareira.
Atualmente ando atrás de uma fêmea para acasalar, pois venho sentindo umas coisas esquisitas, um desejo de companhia, ainda que transitório. O bom disso é que não há preço a pagar, os filhotes deixam os ovos, apressados, no afã de se livrarem de seus pais que, por sua vez, também não querem saber deles.
Atravessei o bosque muitas vezes, até chegar a uma região descampada, que dá acesso à cidade. Contudo, sempre voltava. Temia encontrar seres humanos. Até que um dia, açulada pela curiosidade, arrisquei um pouco mais. Bem à frente, transpus uma ramada grande de melão de São Caetano, que também se chama fruta-de-cobra. Os frutos têm a forma de bagos dourados, que, maduros, se dividem em três partes para expor suas sementes vermelhas. Provei mas não gostei. Sei que as crianças apreciam essas sementes e que os passarinhos pousam nos frágeis pendões para bicá-las. Talvez seja por isso que a planta tem o nosso nome: passarinhos atraem cobras, sementes atraem passarinhos e a planta se apropriou do nosso nome. Pode ser, embora eu não goste de comer pássaros. As penas dificultam a deglutição, fico entalada.
Num certo dia, não voltei para a mata. Atravessei a ramagem e segui coleando até alcançar uma rua com calçamento de pedra. Ao ver uma criança, escondi-me no bueiro e segui em frente. Após me arrastar por breve inclinação, alcancei o fim do túnel, anunciado pela luz da tardinha. Deixei-me ficar nesse observatório ideal. À minha frente estendia-se um gramado, salpicado de plantas. Uma árvore coberta de flores brancas, muito cheirosas, erguia-se bem perto de mim. Ainda que ajardinado, o terreno constituía um grande descampado. Temendo ser vítima de ataques, resolvi me abrigar no bueiro. Mas aí eu ouvi um som muito lindo e, contrariando todas as leis de preservação, voltei ao jardim.
Pela primeira vez na vida vi um passarinho preso. Sua gaiola pendia no vão da janela contornada de flores. Ele esticava seu pescoço, abria o bico e cantava. Sei que há um consenso de que nós, cobras, não temos boa audição. É falso, nosso jeito de escutar é abrangente. Eu me encantei com a música do passarinho. As notas vibravam rente à minha pele, tomavam-me as entranhas, faziam de mim um cordão maleável e lânguido, desafiavam-me a astúcia. Pouco me importavam o perigo, a exposição, o ódio. Queria estar perto daquele pássaro que, preso, soltava sua voz numa liberdade incomparável. Nunca uma sensação total, catalisadora dos meus instintos de beleza, me havia atingido antes. Quis ir até ele, adentrar a gaiola, mas temi que se calasse.
A partir de então, venho sempre que posso. Aguardo o crepúsculo, vou até o gramado e ali me exibo para ele, somos atores e plateia de um espetáculo arcaico. As penas dele evoluíram de escamas, tal como ostento ainda. Talvez por isso, as notas musicais, maceradas pelo sentimento dele, fazem de mim um ser ambíguo, um milagre da aerodinâmica, que se retesa e se prepara para um voo imaginário, em companhia do lindo passarinho que libertarei.
Hoje, por duas vezes, fui confrontada com a velhice. Sutilmente, por vias transversas, criadas pela minha carteira de identidade.
Primeiro, na agência bancária. “Que linda foto essa, a senhora está maravilhosa nessa foto!” Sorri amarelo. Maravilhosa, na foto. Ao receber o documento de volta, percebo no retrato acetinado sutil ironia.
De posse do talão de cheques, me dirigi ao consultório médico, onde os cheques ainda não perderam prestígio. No balcão de atendimento, apresentei minha carteira de identidade. “Puxa, a senhora era linda!” Permaneço calada. Hoje pareço com o quê? Com passarinho mudando as penas, claro. Só que as deles voltam novinhas e as minhas são apenas o prenúncio de uma lisura enrugada. Tive vontade de dizer à atendente que é o dinheiro dos transmudados que paga o salário dela, mas me contive. Afinal seria perda de tempo, ela aparenta apenas vinte anos.
Não sei por que fiquei tão triste com o caso da carteira de identidade. Isso deve acontecer com todo mundo. Talvez, por precaução, os documentos devessem ser trocados de vez em quando, assinalados por novos retratos de velhos, para que a comparação com o ser real não suscitasse espanto. Mas o que fazer se a vaidade é grande, a ponto de manter o uso de documentos antigos, nos quais a mocidade se insurge contra o atual estado de coisas?
Ao chegar em casa, procurei meu coleirinho silente. Sempre converso com ele, falo de mágoas e alegrias. Aproveito o monólogo para fazer carinho em suas costas, debaixo das asas e do queixo, em cima do colarzinho branco. Sei que para um coleirinho cantar muito, deve ser manuseado. Mas, como no poema de Bilac, meu passarinho insiste em ficar “mudo, arrepiado e triste, sem cantar”. Sinto-me como se estivesse diante de um ser comatoso, desejosa de mantê-lo consciente a qualquer preço.
Presenciei o acidente. Foi a partir daí que o mavioso canto cessou. Tentei muitos artifícios para avivar os olhos redondos do coleirinho. Abri a porta da gaiola para que ele fugisse, escalando a roseira brava. De nada valeu. Sua imobilidade foi mais um indício: meu belo passarinho vai morrer.
Ah, mas que ódio eu tenho dela! Sinto-me culpada, também. Argumento comigo mesma que eu jamais poderia adivinhar tal coisa, mas é inútil. Meu coração, confrangido, não aceita. Naquele dia, quando fui guardar a gaiola já era muito tarde. Tive que acender a lâmpada da sala para enxergar o gancho de sustentação. Vi aquela coisa imunda, aquela cobra-cipó ondulante, quase tocando a portinhola. Rapidamente fui até a cozinha, peguei o rodo de chão e, com toda força, derrubei-a. Percebi que o réptil, já no gramado, estava partido ao meio e que, ainda assim, se arrastava em direção à janela. Com uma pedra, pus fim à movimentação. Quando sobreveio o silêncio, percebi que, durante toda a ação, meu coleirinho cantara desesperadamente. Esse foi seu último recital.
MARIA CRISTINA da silvA
Uau! 👏👏👏👏👏