Um conto de Elisa Pereira
Elisa Pereira é de Belo Horizonte nas Minas Gerais que Elisa Pereira surge com sua escrita e poesia potente e negra. Ganhadora do Prêmio Nacional de Literatura Poesias Carlos Drummond de Andrade/SESC-DF (2016), 2º. Lugar, foi também finalista no V Certame Literário – Poemas para La Mujer –Conocimiento e Innovación Intercultural A. C.”Armando Hart Dávalos” – México, com o poema: Niña o Mujer.
Como mulher negra, a poeta, assume seu lugar de fala, personificando as dores, amores e presença de corpos negros em seu celebrado livro de poesia, Memórias da Pele, pela editora Chiado Books em 2018.
Participa de várias Coletâneas e Revistas Literárias Nacionais e Internacionais e movimenta a cena literária da cidade Paraty no Rio de Janeiro como, idealizadora, produtora e curadora do projeto Fuzuê Literário, reunindo poetas, escritores e amantes da literatura em saraus mensais. O Projeto ganhou uma Coletânea em setembro desse ano, a primeira Coletânea Fuzuê Literário em parceria com a editora local Selo Off Flip.
O conto abaixo integra Sem Fantasia, segundo título e primeiro livro de contos da autora, lançado pela Editora Venas Abiertas em setembro deste ano.
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O PÃO NOSSO DE CADA DIA
Lembro como se fosse hoje a vizinha entrando, aos tropeços, pelas portas dos fundos da minha casa. Com os cabelos desgrenhados e olhos de pavor, repetindo a mesma frase, como um disco arranhado:
— Ele vai me matar. Esse homem vai me matar! Me ajuda, ele vai me matar!
Comecei a tremer, incontrolavelmente, em um misto de medo e ansiedade, enquanto minha mãe lhe servia água e tentava acalmá-la.
Ana era casada, mãe de dois filhos, um deles recém-nascido. Vivia debaixo do porrete do marido, mas, nesse dia, as coisas pareciam ainda piores.
Fiquei espiando da janela, enquanto minha mãe tentava compreender a gravidade da situação. Não tínhamos telefone para chamar a polícia, não tínhamos a quem chamar. Éramos nós por nós.
De repente, avistei, pela fresta da janela, o homem, alto e robusto, completamente transtornado, com uma faca na sua mão direita, o recém-nascido na sua mão esquerda e pendurado pelos pés. A cena me deu um nó na garganta. Meu coração acelerou e me lembrei de uma história bíblica que ouvi no catecismo de domingo.
Era uma história sobre um rei – do qual não me lembro o nome – que, no desejo de exercer justiça, segurava naquela mesma posição, um recém-nascido, com a mão esquerda. Com a mão direita, segurava uma espada, com a qual ele ameaçava partir a criança ao meio e dar uma metade para cada uma das mães que brigava pela criança para, assim, apaziguar a contenda entre elas.
Intrigava-me o porquê de o bebê precisar ser dividido ao meio. Se aquele homem era um grande sábio, ele que achasse outra solução que não fosse sacrificar o pequenino.
Mas eu era uma criança e, talvez, por isso, também não pudesse compreender porquê o senhor Paulo segurava seu filhinho recém-nascido pelos pés e ameaçava rasgá-lo com uma faca, na porta da minha casa.
Sua exigência era que minha mãe lhe entregasse a mulher. Ele estava convencido de que ela havia se escondido em nossa casa. Depois de horas de negociação, minha mãe o convenceu a entregar-lhe o bebê. O homem, por fim, se rendeu, sentou-se no meio-fio e chorou como uma criança perdida e solitária.
Voltou para casa, agora ocupando somente a mão direita, que ainda segurava a faca. O sobrevivente estava seguro no colo da mulher, que, desorientada, procurava estancar o choro do bebê oferecendo-lhe o peito.
Senti muito orgulho da minha mãe e da sua coragem, e finalmente entendi o que era sabedoria.
marcelo
Maravilhoso e muito forte!….como a vida!…muito obrigado por esta informação!