Um conto de Ester Chaves
Ester Chaves (Brasília, Distrito Federal, 1979). Escritora brasiliense. Graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília e Pós-Graduada em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Atuante na vida cultural da cidade, participa de vários eventos poético-musicais. Já teve contos e artigos publicados nas revistas literárias, Philos, Subversa e Gueto. Em junho de 2016, teve o conto “Os Voos de Josué” selecionado na 1ª edição do Prêmio VIP de Literatura, antologia da A.R Publisher Editora.
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Aleph
O menino não tinha pouso nem morada, era desses seres nascidos ao acaso, que alguns notam apenas a capacidade de ser sobressalente em determinadas situações. O Sr. Manoel Durango, proprietário da banca de jornal Livro-me, o apadrinhara com intuitos exploratórios. Logo cedo, o arremessava às ruas, a cumprir a meta diária: vender as mazelas impressas e voltar para ajudá-lo nos afazeres da loja. As viagens na bicicleta arruinada, que mal saía do lugar, diversificava os tombos e os arranhões. Mas o pequeno não desistia; limpava o pó do corpo, livrava-se da lágrima que teimava em lubrificar as pálpebras, desembaraçava a corrente e reassumia o controle do veículo. Atrás de si, ficavam os olhares zombeteiros e as palavras malditas.
— Lá vai o filho-de-não-sei-o-quê! O João Ninguém! Filho de chocadeira! Bastardo!
O rapazinho da casa amarela gritava inflando os fartos pulmões e exibia a tímida voz, que ainda ensaiava os primeiros tons na escala dos insultos. Alguns moradores enfiavam as cabeças nas janelas só para ver o pequeno jornaleiro domando o objeto desengonçado que insistia em fugir da calçada. Esperavam o declínio do pequeno combatente, a ruína da criança que mal sabia dizer a idade certa e titubeava quando o assunto se desdobrava em questionamentos sobre a sua desconhecida origem.
— Qual o seu nome, amor? Indaguei-o na viela, perto do Beco das Estrelas enquanto ele ajeitava a engrenagem da bicicleta. Seguiu-se um estrondoso silêncio (…) o menino fincou o olhar no chão como se quisesse enterrar a presença ali, anular-se de si e varrer aquele instante da memória do mundo. Insisti sem perguntar, apenas com o olhar amoroso de quem entende a solidão e compartilha a quietude do silêncio como a marca dos que sofrem.
— Aleph. A voz saiu baixa, quase um sussurro indecifrável. Percebi que ele não estava acostumado com presenças outras que não fossem para insultá-lo ou desmerecê-lo, mas eu estava ali para lembrá-lo de sua plenitude etérea.
— “…vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph de todos os pontos, vi no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo”.
O olhar da criança sorriu gratidão, solicitou-me proximidade e abrigo. Desembrulhei o melhor dos abraços; longo, aconchegante, afetuoso e sincero… desses que só os que compactuam abismais segredos sabem oferecer. Os cabelos molhados exibiam tons diversos, amarelos em gradação desciam pelos cachos que repousaram nos meus ombros na hora do enlace das almas. Aquela criança trazia nos olhos uma gravíssima tristeza, parecia que o choro estava sempre desabotoado e qualquer palavra seria o estopim para o desaguar da escondida mágoa.
— Aleph. “O ponto que contém todo o universo”. O Aleph (1949), de Jorge Luis Borges — a indecifrável estrutura do Universo — O infinito… O Além-Sem-Fim”. O “plurimultisingular” menino escondia no nome a natureza das coisas — o segredo místico de um mundo que não se desvela com olhares secos e dedos em contínuo disparo. Depositei as cédulas nas mãos frias e retirei alguns jornais da garupa da bicicleta. Sem jeito, Aleph tentava devolver as notas que extrapolavam o preço das notícias.
— São suas. Compre um livro ou qualquer coisa que goste.
O olhar do menino borbulhava faíscas, os tons fosforescentes da alegria visitavam aquela alma elegante e despia-me de todas as mesquinharias mundanas. Como era possível? Aquele ser transcendente que andava de guarda baixa e passos arredios mantinha em si a vertigem do Universo. A insuspeitada forma de mostrar-se ausente, quase nulo, sem dar a conhecer a sua inexplicável Beleza era apenas um modo silencioso de existir sem pertencer ao lugar comum — à mesmice dos que se exaltam sem oferecer coisa alguma.
Parecia loucura… aquela criança agigantava-se em sua mais remota forma de ser — os traços rabiscados em paisagem humana indicavam o delírio do voo. Somente eu a enxergava assim? “Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada”. A protuberância crescente nos flancos — invisível sinal de liberdade dos que marcham para além de si. O rapazinho andorinhava em formato humano, mas não se deixava conhecer pelos vãos comuns, pelas frestas intermitentes do ser. Deixei-o ali, preso em suas vertiginosas asas, com aquele olhar paralisado no tempo, o sorriso incandescente de uma estrela e o céu todo a percorrer.