Um conto de Fabiana Tavares
Fabiana Tavares nasceu em São Paulo e vive na capital paulista com a família. É professora universitária, tradutora e orientadora de produção textual. Escrever é, para ela, ato catártico: “tal como a lágrima, a escrita é emoção que escapa quando o corpo e a alma já não conseguem segurá-la”.
***
Chuva
Chegou da porta um som. No início, indistinto, porque a água fazia uma tempestade sobre seus cabelos e suas mãos ensaboadas. Depois, mais forte. Batidas. Gritou já vai!. Desligou o chuveiro, pegou a toalha e pisou no atoalhado novo. Enrolada, foi para o quarto. Um braço jogava a toalha sobre os cabelos e os esfregava vigorosamente, outro desemperrava a primeira gaveta. Já vai, espera aí!, resolveu gritar antes que batessem novamente.
Vestiu correndo a calcinha branca, velha conhecida dos finais de semana confortáveis em casa, e jogou no corpo o camisetão puído. Francamente, quem quer que fosse, naquela noite chuvosa, não iria ligar de vê-la à vontade, e se ligasse, que fosse para o inferno. Onze da noite não era hora de visita formal, e se era amigo, tudo bem.
Tô indo! Passou a mão no desodorante, espirrou a esmo sobre a camiseta mesmo, e jogou no armário de qualquer jeito, já virando para a porta do quarto e indo para a sala.
Checou num olhar rápido o estado da casa: roupas no chão do banheiro, louça na pia, comida no fogão, almofadas espalhadas no tapete da sala. E o pó. Que se dane, estava na sua casa e não estava esperando ninguém. Nunca estava. Morava ali e sua diversão era fora, esporadicamente, com amigas. No serviço, tudo muito cordial e sorrisos congelados. Às vezes, gargalhadas com poucos deles. No mais, plástico moldado em lábios e dentes.
Sentiu o vento frio nos pés. Tinha esquecido de novo de comprar a proteção de areia pra fresta da porta de entrada. Sempre ventava tanto naquele lugar! Sentiu o metal frio na mão amaciada pela água quase fervente do chuveiro. Girou e abriu. Mas a lufada gelada que sempre acompanhava o movimento não chegou: ele barrava o vento. E estava fazendo uma verdadeira poça de água no seu capacho. Olhou de novo para cima. Cabelos escorrendo, camisa grudando no corpo, braços estendidos ao longo do corpo, jeans pesadas, capacho imprestável. Mesmo assim, era ele. E ela mal pôde acreditar em seus olhos.
– Você?! – Silêncio. Contemplou o rosto dele com a vaguidão que somente as memórias conferem às expressões humanas. Nem em seus mais loucos devaneios conseguira acreditar que um dia o veria ali, e muito menos sem ter sido chamado. Há quantos anos não o via? Desde que desistira de um dia tê-lo para si.
O relâmpago da janela do hall iluminou os pingentes que escorriam dos fios do cabelo e iam popular ainda mais o tapetinho da entrada. Não conseguiu dizer nada. Afastou-se, abrindo passagem. A figura passou e parou logo depois da entrada. Fechou a porta mecanicamente. Esqueceu-se de trancá-la. Tornou a olhar para ele. Sem pensar, estendeu a toalha úmida esquecida no ombro. Não pensou em oferecer o banheiro. Nem pensou na provável necessidade de um banho para aquecê-lo. Por costume, pensou naquele aguaceiro que ficaria em sua sala.
– Eu vou pegar uma roupa seca.
Há quanto tempo mesmo não o via? Sete, talvez oito anos. “Eu ainda vou lá”, era o que ele lhe tinha dito quando se despediu dela, no ônibus que partia para São Paulo. “Eu não vou mais esperar”, tinha sido sua resposta. Fechou a gaveta, a camiseta e a bermuda jogadas na dobra entre o braço e o antebraço. E agora ele estava lá. Outro trovão reboou lá fora.
Um chá quente. Era disso que ele precisava. Sentiu um arrepio. O vento ainda conseguia entrar no apartamento. Do corredor, gritou “pega aí!”, jogando as peças. Elas traçaram um arco no ar frio e foram cair no meio da sala. Ela não viu: já estava na pia, enchendo o bule. Apertou o botão de energia e girou o de gás. Ele estava ali.
Só parou de olhar a chama azul quando sentiu o cheiro da água fervente. Elas têm um cheiro característico, bastante curioso. Talvez só quando fervem em recipientes de alumínio. Droga. Tinha deixado ferver. Não ia render um bom chá. Colocou os sachês na água. Um relâmpago iluminou a janela da área de serviço. O cabelo úmido no pescoço causava arrepio. Um cobertor ajudaria a esquentar. Pegou a manta. Lembrou-se de quantas noites aquele cobertor tinha acalentado seus sonhos e enxugado suas lágrimas.
– Ana.
Assustou-se. Por um momento, tinha enveredado pela trilha do tempo na memória. O som do seu nome naquela voz grave e baixa a trouxe de volta para o seu espaço. Ajeitou a manta sobre os ombros, prendendo-a com uma das mãos. Ergueu a cabeça e foi para a sala.
Sentado no sofá, olhava para ela. – Onde posso colocar isso? – Mostrou as roupas e a toalha ensopadas.
– Na área de serviço, à esquerda. – Acompanhou-o ir, demorar-se um momento e voltar. E estava no sofá novamente. Não ficaria ali, ao lado dele. Estava bem no tapete, encostada na parede, entre as almofadas.
Muitas coisas estavam concorrendo em sua mente embaralhada para ver o que ganharia a corrida da corrente de impulso que liga a memória ao cérebro, o cérebro aos outros neurônios, na sinapse até os nervos e os músculos, para mover a língua, os lábios e empurrar o som para fora. Um nome de mulher ganhou em disparada: – Maria?
Ele fez que não com a cabeça. Os olhos grandes e castanhos completavam o silêncio: não havia mais Maria. Desde quando? E por quê? E por que ele estava ali? Como a tinha encontrado? E por que, principalmente, sentiu falta de um degrau e o coração pulou uma batida quando abrira a porta? Outros já tinham ocupado aquele mesmo lugar. Aquele mesmo? Mesmo?
– Ana. – Tremeu. A mão gelada segurava seu pulso. O hálito quente umedeceu-lhe a face, perto da orelha.
A manta se acomodou sobre as coxas cruzadas. Os braços rodearam a cintura dele, a face apoiou-se no peito agora seco e coberto com a sua camiseta. Sentiu sobre sua cabeça o apoio duro do queixo, sentiu a pressão leve do abraço nas costas. Poderia morrer assim. Sem perguntar. Sem querer saber. Só sentir. Sentir e se fazer sentida. Necessária.
Durante a noite, choveu ininterruptamente. A água lavou as ruas, as estradas percorridas, e refrescou as folhas crestadas pelo vento que soprara sem cessar. No apartamento, o chá ficou esquecido sobre o fogão. A manta cobriu o tapete. Mais tarde, cobriu dois corpos enroscados e ensopados estendidos ali. No tapete.