Um conto de Felipe Eduardo Lázaro Braga
Felipe Eduardo Lázaro Braga é graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia, e graduando em Filosofia. Escreve sobre política e arte contemporânea, e trabalha com pesquisa de mercado e opinião.
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Otávio, uma odisseia no espaço
Num segundo calmo, ele era ponto, no outro ansioso depois, ele era traço. Era uma cor imediata entre o vermelho entediado e uns contorcionismos de cinza, difícil dizer, muita fumaça no quarto estreito e embolado. E era muito rápido, sério, uma geometria de céu escuro com traços e pontos de noite. Eu só olhava, eu e o Otávio comigo disputando a janela de ar aberto, eu mais alto de curiosidade que ele, ele mais baixo de medo que eu, os olhos vermelhos. Entre uma estrela paulistana e outra, o traço em movimento parou seu último círculo num ponto intrigado, e sumiu sua jornada afora, acelerando e vazio, tão rápido que nem existiu. Deixou pra trás uma boca aberta, duas insônias chapadas, e a solidariedade mútua de um “que porra é essa?”.
Eu sempre senti o Ota resistente pra queimarmos um livro da estante dele, o terceiro livro da segunda prateleira do canto esquerdo. Ele resistia da mesma maneira tímida, ajustava os óculos já perfeitamente ajustados no rosto de sorriso perdido, e sorria calmo minha insistência sempre aperfeiçoada. Ele nunca dizia não, mas o sim calava um silêncio desconfortável, constrangido, olhava longe qualquer coisa nítida que não fosse eu. Queimar livro é foda, é feio, é Santa Inquisição demais pra guardar no bolso sem remorso.
Eu bajulava ele. Sabe aquela bajulação que começa discreta na sinceridade, e vai indo, indo, indo ladeira abaixo até o desespero tocando axé numa tonelada de exageros? Tudo culpa da verdade, que não tem coragem de ser sua melhor mentira, uma verdadezinha sem fanatismo escondida na tolerância de um ponto de interrogação. Mas vamos queimar o livro pô. Eu sempre perdia meu sim inevitável num ajuste discreto de óculos.
Depois de suarmos nossa melhor intensidade, os lençóis desorganizavam uma tranquilidade abraçada, e ele, mais vulnerável de exaustão, adormecia aos poucos minha insistência debochada naquele quarto pequeno e acadêmico, um ronco cínico que começa bem antes do sono honesto, despistadamente. E se a gente queimasse aquele livro? Ota, vamos queimar isso aí, depois a gente come uma pizza, aquela sem cebola. Tá com dó do que Otávio? Vamos queimar ele e o livro do Hitler então. Ou você é a favor do holocausto?
Ele ia lá e ajustava os óculos de sorriso mudo, sua risada desrespondia minha insistência pré-adolescente com 10 anos de atraso imaturo, por favor vai, por favor.
Um dia eu contei uma piada tão boa, tão boa porque não era piada, era menos piada e mais devaneio político-genital, que ele babou de rir, uma risada cheia e improvisada, risada sem trégua. Nesse dia aceitamos inevitáveis o destino 451 do livro preto de inspiração carbonizada, edição bonita pra caramba, o terceiro da segunda prateleira funda – capturei o sim dele naquela risada inescrupulosa.
Era um sim sem vontade, um sim amuado que não tem coragem de assumir sua honestidade negativa, um sim que escorrega indefensável na última lágrima dos olhos rindo, o final de um sim encurralado. Se ele estivesse de óculos, meu sim virava silêncio ajustando o aro cinza, aquele mesmo movimento desnecessário que usa da delicadeza pra se esquivar do desconforto, timidamente. Mas a risada nua tirou despercebida a trincheira da sua proteção cordial, tirou os óculos pra secar as lágrimas, e eu venci meu sim de insistência bélica. Vamos queimar o livro, show de bola, combinado então.
Queimar o livro era apenas a faísca pirotécnica do nosso ritual mútuo de desagravo, mútuo mais meu. Primeiro a gente assiste o filme, blz? Eu baixo aqui e levo, daí passa vc no mercado e compra aquela pipoca de bacon. Não compra aql mais barata da última vez, q fede o microondas. Depois debatemos sobre o filme, e daí a gente queima, feshow? Fechou. O filme começou sua lentidão profunda com planos de cores enormes, enquanto a humanidade caminhava em deserto épico seus primeiros erros. O macaco grunhiu uma natureza faminta, farejou os ossos inúteis em volta da tribo nômade, acasalou. Num dia vazio repleto de tempo, a sombra do monolito negro surgiu sua exatidão geométrica. Macacos correm em torno daquele silêncio reto, ora se aproximam, ora se afastam desconfiados, arremessando gritos e ossos. A trilha sonora de vozes grandes e desesperadas anuncia em desarmonia a humanidade à frente; cara, a trilha é muito foda, depois a gente escuta de novo no YouTube. O macaco desbravador tocou com cautela evolutiva a superfície artificial do monolito. Pela primeira vez, não sentiu as imperfeições magníficas da natureza, só a delicadeza monótona do engenho. É possível que um ato de vontade, calculado e atrevido, domestique o império inevitável da natureza? O sim ambicioso da pergunta risca a fronteira da espécie, um sim com milênios de ruínas atravessando seu progresso. O macaco grunhiu, olhou os ossos em volta, grunhiu. Espalhados inúteis no chão, armas, embora ossos. Lançou para o alto o osso assassino, o osso civilizacional, o osso primogênito de todo o resto adiante. O homem era a resposta completa e definitiva no grunhido daquele macaco armado.
Cara, que filme do caralho.
E no verso de uma obra sem fronteiras, Júpiter, enfim. Ali, o filme se derrete lisérgico numa supremacia de cores irrespondíveis e sons. Nenhuma imagem faz sentido, tudo é sensorial, frases filmadas em LSD, exercícios de formas em sobreposição rebelde, tudo caudaloso. Nenhuma frase é sentido, o filme de um espectador assombrado, quase Júpiter. Diálogos inexistentes, a imagem narra seu próprio tormento de cores ácidas. Mais ruído se contorcendo em alucinação desproporcional, tudo muito bonito e imediato. O homem, sozinho numa sala de luz vestida a Luís XIV, envelhece diante de si mesmo, ele e a tranquilidade de sua melancolia. No último espasmo de vida, vida insuficiente, o homem aponta para o silêncio perfeito do monolito negro, o destino em formas geométricas de indiferença. O filme acaba fecundado numa órbita definitiva de azul-interrogação.
Otávio, sabe o que eu acho? Esse filme aí tá falando sobre a inteligência, ele é a alegoria da inteligência na forma geométrica do monolito.
Pensa comigo, a natureza é o quê? A natureza é um excesso ao acaso, é uma probabilidade sem linha reta. Não existe contraste melhor, contraste mais definitivo com a natureza, do que a forma perfeita e negra do monolito, uma forma produzida.
É isso, o cara filmou a tradução visual da inteligência, foi uma puta sacada.
Lógico que é isso Ota. Sabe por quê? Pensa na reação diante do monolito, a reação de assombro, de terror, de curiosidade, de fascínio, todas essas emoções que a inteligência provoca nas suas mais indesculpáveis conquistas.
E isso no dia a dia, a gente fala sobre a tecnologia quase aterrorizados, porra a gente foi pra Lua, como a gente fez isso?
A escala da inteligência humana tem a imensidão coletiva do seu assombro, tá aí a megalópole moderna do arranha-céu do metrô do avião da vacina etc., e tudo isso somos nós, inacreditavelmente.
Cê tá pegando o arco da coisa?
A inteligência não se reconhece no espelho do próprio avanço. Se a gente parar pra pensar, a relação de estranhamento com o que a gente mesmo fez não é diferente da relação de estranhamento do macaco na frente do monolito, alegoria perfeita.
O finalmente breve de uma pausa na minha voz trouxe na voz mais completa do Otávio o argumento sofisticado que aquela discussão fumava e tossia, antes de tacarmos fogo no livro com o magistério químico do meu isqueiro. Nós nascemos de uma hierarquia assassina naquela África remota e contorcida de tempo, ponto. A contemplação perfeita do monolito em linhas retas de inteligência não é apenas um deslize evolutivo, o monolito é, lá no alto e inalcançável, uma aparição divina. A inteligência é a nossa pretensão de divindade na insuficiência biológica do corpo primata, a supremacia do homem diante da escravidão indiferente da natureza. Essa foi a sacada estética do Otávio, que esperou paciente uma trincheira de silêncio na soberania do meu entusiasmo: em Júpiter, no ato final do filme, o homem envelhece pouco a pouco diante de si próprio, envelhece direto para o renascimento do humano. Já deitado e sem forças, sem ar e sozinho, no limite insuportável da existência, ele encara assombrado a geometria perfeita do monolito. Qual é o gesto derradeiro daquele homem na extremidade da vida? Ele aponta para o monolito à frente, aponta o gesto idêntico de Adão antes de tocar nu a ponta do dedo de Deus de Michelangelo. O gesto é absolutamente idêntico ao gesto sistino, pausa o filme e olha: o assombro do Deus homem no extraordinário da própria inteligência.
Estávamos nós dois consumidos de prepotência filosófica naquele quarto pequeno repleto do essencial: uma cama de solteiro de concreto, estreita e intensa, com o espaço contorcido de nós dois colados; a tinta escorrida de um Fora Bolsonaro pichado em vermelho-oposição, cicatriz irreversível de domingo à noite numa crise de choro eleitoral; os títulos na estante apertada de livros indispensáveis, exceto um, fogo nele; alguns farelos de preguiça espalhados na nossa intimidade, e mais quantas calorias de pacotes vazios; era tudo isso num andar paulistano perto da Marginal poluída com um vidro aberto de ar confortável, muitos rapazes entre a intimidade do nosso carinho, e muito mais mosquitos naquele quarto universitário com gerações e gerações de juventude. Eu fiquei de um lado da parede, o Otávio do outro lado, e nós dois fazíamos força pra ampliar a dimensão daquele cômodo, empurra a parede, mais força, mais força, empurra a parede pra caber aqui no quarto pequeno o tamanho da nossa discussão.
Essa discussão de noite prolongada é o último ato inevitável do filme, o acorde final da trilha que fica suspensa e uníssona durante horas e horas de um teto branco inconformado na sua frente, martelando o mesmo what fuck was that – uma odisseia no espaço. Ou você pensa sobre o filme, ou nada, você vai pensar sobre o filme e acabou, seu incômodo tá roteirizado naquela vertigem de cores sem narração – o silêncio é o protagonista indispensável da obra. Esse argumento eu não usei naquela noite de quarto estreito e incêndio literário, mas a inteligência não é apenas alegoria de um monolito imóvel na superfície densa do filme, ela é a própria estética da obra em silêncio, toda filmada de incômodo e fascínio sem resposta. A inteligência é uma conquista difícil, ela é um caminho constante de solidão com trilhas inéditas e planos em falso, são imensidões abertas pra você minúsculo. A gente vai lá, reflete, discute, troca, discorda, junta, quebra, desiste, chora, retoma, fuma, e o filme continua seu mesmo impossível silencioso, cada vez mais quieto e eloquente. Eu não disse isso pra ele naquela noite. Em compensação, perguntei se ele ia querer a pizza sem cebola. Pede a maquininha só pra você, eu tô com dinheiro aqui.
Do nosso lado e sem atenção, parado e bonito, parado e medíocre, negro como um monolito no fundo de um amarelo longe, aquele livro de capa dura e contagem regressiva era só um epílogo de dia seguinte. Suas páginas em branco estavam repletas e entediadas de explicações, cada vírgula simples explicava a simplicidade da vírgula seguinte, num bocejo com 300 páginas de certezas, sem Kubrick, sem silêncio.
Qual é a mais perfeita antítese da inteligência? É a preguiça. Aquele livro de criativa incontinência intestinal despejou alívio afora sua pressa de não falar nada – publicado logo após o sucesso do lançamento do filme, o livro mastigou uma mordida pequena da odisseia no espaço, bem minúscula mesmo, aquele pedacinho de superfície com ETs e naves espaciais e computador que fala. Sem paladar, engoliu tudo rápido demais, esperou que o suco gástrico transformasse o bolo alimentar em uma massa aquosa, pastosa e fácil, e se aproximou daquele cara que, depois de ver o filme, queria entender tudo aquilo, que filme difícil, não peguei nada do final, filme chato. Digestivamente autoral, regurgitou sua literatura salivar diretamente no esôfago do cara. Não regurgitou na boca, porque daí o cara ia ter de engolir, ai que chato, que preguiça. Regurgitou no esôfago mesmo, pra coisa ficar mais fácil de digerir e esquecer, ufa.
Sem discussão, sem debate, sem protagonismo, sem angústia, sem silêncio, só um bolo verde-amargo de estômago alheio arrotando um final feliz: tudo explicado – uma odisseia no espaço. Amanhã serão quatrocentos graus Celsius de revanche comigo e o Otávio no entre nós de um fogo mútuo, eu e ele mais próximos que cansados de tanto calor e suor, e a fumaça da nossa respiração ofegante um no outro queimando o livro no quintal do Bloco B, atrás do latão de coleta seletiva. Amanhã não, já é hoje nessa madrugada nossa: hoje vamos queimar o livro no querosene da nossa homenagem idiota, tão ou mais idiota que o próprio livro.
Cara, precisamos queimar alguma coisa, qualquer coisa. E ainda que a gente queime de novo, queime uma vez mais e outra depois, queime por algum tempo ainda, todo mundo é sempre um até quando, mesmo nesses poucos vinte e tantos em que tudo é tão definitivo. Ota, vamos queimar o livro? Pura desculpa esfarrapada. Vamos queimar o livro Ota, por favor! Esfarrapadíssima. Vai, vamos! Desculpa esfarrapada, uma odisseia no espaço. Vamos fazer uma coisa besta igual a gente fazia antes, antes das conversas esparsas e dos finais de semana cada vez mais ausentes.
O livro parado e preguiçoso na estante, o Otávio desnecessariamente vestido na janela. Estranho: duas vezes ele olhou pra mim, fez que ia falar, mas quietou de novo em frente à janela, intrigado de tão longe nesses centímetros de distância. Éramos só nós dois e aquela fumaça, nossa consciência emanando de um cinzeiro atarefado, horas de acúmulo criativo carbonizadas no imenso daquela noite. O Otávio pegou os óculos sem olhar pra nada, seu medo respirando fundo de costas pra mim, o cotovelo apoiado na janela era Otávio cada vez mais rua e menos quarto. Coloquei o chinelo e fui com ele até a curiosidade de um céu sem lua. Estranho mesmo.
Tinha um ponto meio longe se mexendo no céu. Muito longe, avião não é. Cara, tá mexendo mesmo, que doido e que rápido. Mexia pra todo lado, sem vergonha e sem rastro, sozinho naquele céu indecifrável. De repente, dividia o tempo em dois num círculo de cores silenciosas, pra frente, atrás do prédio, perto da antena, longe como a noite, cinza como o aro dele, meus olhos vermelhos. O ponto de gravidade egoísta, frequentemente traço sem deixar de ser círculo, ameaçou todas as direções do céu da cidade e, lá no Jaçanã de uma metrópole sem horizonte até o Grajaú longínquo, abandonou São Paulo de volta pra sua criatividade, sumiu. São Paulo estava acordada, ou aquele ponto era só nosso?
Desaparecido o ponto no céu, tão rápido que nem vimos, o reflexo da janela sem trinco mostrou a nitidez de duas covardias e acende essa luz, pelo amor de deus. Atrás da gente, o edredom continuava jogado no chão, coitado de farelo e roupa suja desde anteontem. O cinzeiro era o quarto inteiro num pedaço pequeno de estante, com o livro ali ao lado sem esperança. O notebook estava aberto e pausado na cadeira, bem na cena do homem apontando a divindade do monolito, igualzinho o Adão renascentista. A tinta vermelha do Fora Bolsonaro escorreu mais forte no Fora, a gravidade gritou democracia naquela parede indignada. Tudo exatamente igual no imenso daquela noite, no estreito daquele quarto, exceto nós dois e o céu em claro e.
E honestamente? Não sei se esse último parágrafo ficou legal. Tô achando ele meio carregado, meio repetitivo. Na verdade, os dois últimos estão soltos, tá tudo muito formalista, meio mofado. Tem hora que o autor perde a disputa pro texto: ele vai ganhando vida própria, vai por conta e risco, e de repente empaca.
O que eu tô tentando fazer aqui nesse texto é o seguinte: eu quero fazer um paralelo entre a visão dos dois no tal do quarto desarrumado, eles tão lá chapados, não sabem se viram ou se não virm o ponto no céu, e a aparição do monolito negro no filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Era essa a sacada do texto, essa aparição ia transformar a postura do Otávio diante da queima do livro, ele ia impor seu próprio desconforto, impor a própria voz, deixar de ser um coadjuvante naquela insistência toda, da mesma maneira que o monolito empurra pra frente o enredo do filme. A sacada é a inteligência, você olha pra algo nada a ver, algo maluco e impossível, e precisa pensar em uma solução nova, você não tá preparado praquilo, sua única fuga possível é ser criativo. A aparição seria o gatilho da inteligência, o desconforto do Otávio diante da aparição ia colocar um holofote no desconforto sobre o livro, uma coisa ia engatilhar a outra. Só que eu total parei nesse parágrafo, não consigo andar mais, bloqueei. Olha essa frase que eu escrevi, que ridícula: “A visão do extraordinário desarma uma armadilha: a familiaridade de todos os dias”. Pronto, deu.
No final do texto, o Otávio ia se recusar a queimar o livro. Queimar livro é horrível, se toca. Eu tinha até inventando uma imgem legl: ele ia acordar, se levantar, espreguiçar, escovar os dentes, etc., etc., daí eu ia dar um jeito de colocar aquela frase-refrão do texto, “vamos queimar o livro”; ele ia ajustr o óculos, mas pela primeir vez esse gesto não seria desnecessário, não seria uma fuga tímida do assunto, na real o óculos tava torto mesmo. E ia falar que não ia queimar o livro porra nenhuma e acabou. Daí o outro ia ficar com raiva, puto da vida, ia sair do qurto batendo a porta, e a porta ia ranger um “ou ele ou eu”, briga feia. E o texto terminava numa digressão sobre palavrões: palavrão nunca pode ser substantivo, palavrão é sempre interjeição, essa é a etiqueta do palavrão, porque eu tava meio inseguro por ter usado tanto palavrão no texto. Cara, meu teclado tá falhando o a, eu não vou voltar pra consertar nessa hora da madrugada não.
Mas daí eu pensei numa coisa mais legal ainda, vê se faz sentido: essa angústia de não caminhar, de bloqueio, não é algo acidental quando você tá fazendo algo novo, a angústia é o lado esquerdo inevitável da inteligência. Putz, não é isso, não é assim, não tá legal, não consigo, que que eu faço? Esse é o poético da inteligência: até ela ser forma, até ela ser página, o que a gente tem é só silêncio e possibilidades, qualquer coisa vizinha do desespero mesmo. Tudo errado um milhão de vezes, até que uma frase para em pé, ufa. No final, só fica a frase que parou em pé, mas tem uma arqueologia de angústia soterrada por trás da frase, sempre. Taí o sofisticado da interpretação do Kubrick no filme, falar sobre a inteligência é falar, necessariamente, sobre o seu silêncio, sobre desespero.
Enfim, preciso terminar isso aqui, e ir escrever sobre o coronavírus, que o que var ter de gente publicando literatura sobre essa pandemia, rapz. Vou ser um dos primeiros a registrar essa palavra em literatura: covid-19. Ou melhor: covid-19 – uma odisseia no espaço.
Fica assim então: Os dois estavam encurralados no próprio medo, a janela aberta espalhava incertezas na fumaça daquele quarto íntimo. O ponto de interrogação cortando o céu de Pinheiros encontrou na bagunça do nosso cômodo um desconforto idêntico, os dois habitando o mesmo Otávio. Será mesmo que vimos aquele ponto se mexendo no céu? Fechamos rápido a janela de ameaça noturna, e a janela fechada respondeu, de uma só vez, toda a brisa de que precisávamos: mano, olha toda essa fumaça aqui dentro, apaga isso aí que a Bruna vai reclamar de novo, hoje deu. De repente, nossa certeza era uma risada mútua de compreensão: aquele ponto existiu mesmo, com certeza absoluta, senão a gente não tinha fumado tanta erva, faz todo sentido – sentido maconheiro e sem cronologia. Mas a risada do Ota durou mais – apaga isso aí! Tinha outra certeza escondida debaixo dessa frase, apaga isso aí. Vitor, eu não tô confortável em queimar meu livro não. Paguei caro, acho ele bonito, e queimar livro é escroto, meio fascista. Tudo bem? Ah, acho que ia ser legal, ia ser mais uma zueira nossa, fazer uma coisa nada a ver juntos, vingança nerd. Mas sem neura, deixa quieto então. Peguei o livro, e guardei de volta na estante. Mas guardei com um trecho rabiscado de vingança: deixei o livro gastrointestinal do lado esquerdo de Laranja Mecânica, e do lado direito de Fahrenheit 451. Do lado esquerdo, a ironia; do lado direito, a ameaça.
Fomos dormir. No dia seguinte, saí pra comprar um teclado novo.