Um conto de Fernanda Maluf
Fernanda Maluf é psicóloga de formação e coração, e hoje atua calculando os números infinitos nas empresas da família. Ama escrever sobre o que vê passando na terra, na água e no ar.
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A MENINA E O LAMPIÃO
Dizem que a notícia da lua cheia ser maior que o normal e surgir tingida de cor fazia o mais bruto dos homens tirar o chapéu e apoiar o antebraço na testa suada e polvorenta, num ato de nervosismo e apreensão, que ajudavam a lembrar que o padre da igreja azul no meio da praça central e o pastor cunhado da dona Maria do armazém deveriam dar jeito naquilo. Senão, de que servia os trocados que entregavam no culto de domingo? O prefeito já disse que não ia resolver porque não era pago pra isso. Mas o pastor sim, e até agora não deu cabo do assunto.
Fato é que em noite de superlua rosa, vermelha, roxa, vá saber que diabo de corante essa menina colocava na lua, o campo e os rios ficavam claros como o comecinho do dia, o céu de um azul celeste que nunca chegava a enegrecer, a lua brilhando branco como um sol morno, só apagando por efeito de alguma nuvem. E o medo e a curiosidade se fundiam numa agonia sem fim para saber se aquela noite, ou um dia mal-acabado, seria a noite de ver a tão temida luzinha no meio do campo, amarela como a bundinha de um vagalume, com a diferença que ela tremia, mas não piscava. E o mais temido era que alguém a segurava desleixadamente, fazendo com que balançasse de um lado a outro, dançando no meio do verde azulado.
Nem o olho piscava, não dava nem pra confundir o microtempo do abrir e fechar das pálpebras com o passo do vagalume. Era uma luz extraordinária mesmo. Se olhasse diretamente para a luz, não dava pra ver quem estava junto. Mas se olhasse para um ponto fixo logo ao lado, lá estava ela, a menina segurando o lampião com a
luz tremelicante. O medo logo subia a espinha e doía bem na ponta dos cabelos, onde não dava pra apaziguar com um abraço. A menina parecia uma mistura de fumaça com desenho à lápis, cinza feito ar de churrasqueira com a incerteza da forma do ar queimado.
Pois ela nunca chegou perto de casa nenhuma, era sempre vista de longe. Se ela existir já era um problema, imagine acordar de dia e ver uma criação morta, vaca, pasto ou peixe. Ou até o milho recém plantado. Já ouviram casos de bebês terem parado de respirar na noite da visita da menina e o lampião. E a lua, aquela maldita lua cor de qualquer coisa que traga agouro.
Ninguém sabia dizer quando ela começou a aparecer, nem a razão pela qual ela fazia essa visita indesejada e assustadora. Faltava a coragem dos tolos de enfrentá-la e fazer todas as perguntas que o povoado queria saber, “quem é você e por que raios escolheu justo aqui pra levar as coisas?” “Por que não leva da banda de lá que tem gente mais rica?” A indignação só não era maior que o medo de ser tocado por ela e ter a vida ceifada e colocada como combustível do lampião, que era o que mantinha a gente toda longe daquela imagem.
Geraldo não tinha esse medo todo não. Pelo menos não pensava que tinha, que é o que acontece com o medo, você nem sabe que tem, até que tem que usá-lo. Foi levar comida já tarde pro pai na lida, alcançava quase uma da tarde. Com aquele sol a pino na moleira, pensou que entrar no rio pra se refrescar seria uma boa ideia, e divertiu-se sozinho como só um rapazote de 10 anos que não quer ser mais menino nem saber de ser homem consegue se divertir. Sentiu a pressão baixando lentamente ao sair, naquele limiar entre a consciência e o sono, e procurou uma sombra para deitar-se confortavelmente enrolado à camiseta que deixou seca pra trás.
Sonhou pelo que pensou ser uma horinha apenas, e acordou inundado de azul escurecido, por sorte e azar numa noite de superlua. O pânico lhe roubou o senso e perdeu o caminho de casa, tantas vezes percorrido em companhia do sol. Nem lembrou da menina nessa hora, só queria chegar nos braços da mãe e dizer que estava com muito medo de ser esquecido.
Mas a menina lembrou dele. Enquanto caminhava num rumo que pensava ser o de casa, sentiu um calor vibrando próximo ao braço direito, e viu a luz dentro do lampião de pertinho. Não sentiu medo, sentiu um laço morno se enrolando ao seu redor, espiralando até a cabeça, um encanto de fascínio pelo brilho do lampião, de um sol radiante movendo seus veios rapidamente, formando uma energia enorme, mas presa num vidro mágico de onde só saía o suficiente pra iluminar e não queimar a mão. Ele então sentiu o a ponta do laço invisível que o abraçava tocar dentro de si, e ouviu com o coração que era uma estrela, fácil de pegar de onde ela vinha. Flanando, ela seguiu um rumo pedindo a ele que a acompanhasse, caminhando da mesma forma que a viam à distância, se focasse o olhar nela, esfumava-se no ar. Mas se mirasse na tangente, lá estava ela, cinza como dia nublado. Geraldo não entendia como ela falava com ele, nem como ouvia, mas sentiu-se feliz do sol ter enviado uma amiga para esse momento de aflição.
Quando estava chegando perto de casa, a menina e o lampião sumiram como se nunca tivessem existido antes. Pensou que talvez fosse coisa da sua cabeça de quem ficou o dia todo no sol quente. Ardeu em febre pelos dias seguintes, fazendo a mãe rezar dia e noite em seu leito pedindo a Deus para não levar o menino agora, que ia começar a ajudar o pai na roça. E ele não foi, ficou pra contar a história que nem ele mesmo acreditava. A mãe pediu pra não dizer nada pra ninguém antes de tomar a benção do padre e livrar-se daquele devaneio de doente. E não disse, senão ele não ia nem pro céu nem pro inferno e nunca mais sua alma teria salvação, ficaria ele vagando no lugar da menina.
Muito tempo se passou e Geraldo conseguiu sair da roça pra estudar na cidade, com parcas economias por trabalhar pros fazendeiros do lado de lá do rio, que garantiram casa e um litro de leite por dia durante a faculdade pública, duramente frequentada por anos, ele já mais velho que todo mundo. Formou-se com muito custo em Zootecnia pra cuidar da criação, do pai e da dos outros, que dava mais dinheiro.
Numa visita de Natal, justo quando uma superlua se anunciava, ficou espantado ao perceber uma vaca morta ao pé da casa ao amanhecer. O pai então lembrou da história da menina do lampião, lamentando por ter sido ele o escolhido, um mau agouro logo na noite de Natal. Geraldo intrigou-se por aquela história, que já tinha deitado para dormir no fundo da alma, pra que fosse pro Céu quando morresse e lá prestaria contas dos seus pecados.
Decidiu então dar uma olhada na vaca para ver como é que ela tinha morrido, e percebeu que na verdade estava muito doente, e de algo contagioso. Não tinha sido obra da menina, mas na caída da noite percebeu que sim, quando seu ouvido do coração se aguçou novamente. Ela lhe contou que nas superluas chega para ceifar a vida daqueles que espalham pragas. Extirpava o mal logo no começo, pro sofrimento morrer junto com eles. Todos aqueles anos os pedaços de plantações deitavam-se mortos junto com as pragas. O gado era surrupiado antes de espalhar doença, os peixes boiavam a tempo de salvar o rio.
Mas ela pediu pra ele não dizer nada pra ninguém, que acreditar nisso o levaria para a fogueira das línguas que creem que o céu e o inferno são pra depois dessa vida terrena. Que era mais fácil quando ninguém se metia no trabalho dela, que continuassem crucificando o padre e o pastor, que eles deveriam tomar uma atitude contra o capiroto, e era dever deles controlar essa praga de na cidade. Geraldo ficou sem entender por que ela queria que continuassem excomungando esse gesto nobre, e de repente seu rosto se iluminou como se uma tromba d’água de sabedoria caísse sob sua cabeça. Assentiu, despediu-se dela com um sorriso, levantou-se e confirmou à mãe aflita na porta de casa, sem saber como tirar aquele animal enorme do terreiro: foi a menina, né mãe? Melhor a senhora preparar a erva e chamar o padre pra benzer essa terra.