Um conto de Fernando Andrade
Fernando Andrade, 51 anos, é jornalista, poeta, e crítico literário. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura, no qual tem dois contos em coletâneas: “Quadris” no volume 3 e “Canteiro” no volume 4 do Clube da leitura. Colabora na revista literária Literatura e fechaduracom resenhas de livros e cd’s e entrevistas com escritores, poetas e músicos. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemoemetria, e Enclave (poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou, em 2018, seu quarto livro de poemas, a perpetuação da espéciepela Editora Penalux. E acaba de lançar, no final de 2019, seu primeiro livro de contos Logaritmosentido, editora Penalux, que pode ser adquirido aqui: https://www.editorapenalux.com.br/loja/logaritmosentido
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O despertar do galo
Talvez ao sinal do despertar, do abrir os olhos, o galo cantando logo ao alvorecer, cisca o terreiro, indo ao galinheiro para fazer o quê? Mas logo quando se ia se ajeitando com a claridade do quarto, a cena era deslocada para Dona Isabela com as mãos firmes no pescoço de uma galinha e na outra mão uma faca. Via o lento movimento do gesto, a mão segurando o corte, o embate da lamina no pescoço da ave.
Porque galos não morrem degolados numa certa hora da manhã?
A tina cheia de sangue e no ar dançando feito uma bailarina morta, a galinha sem vida. O galo cisma o galo cisca, onde está o galo numa hora desta? A hora da manhã na qual o terço é visto, onde mãe e pai iniciam uma breve novena. Saio da cama com manchas de sangue nos olhos. Talvez tenha socado o olho durante a noite num movimento invonlutário. A prece do dia é antes fazer a higiene pessoal, lavar as mãos, escovar os dentes, e cortar os pelos do nariz. Ir à cozinha e ver dona Isabela amparada com a barriga no enorme tacho sobre o fogo aventureiro. A que pequenas distâncias se cometem crimes logo no desjejum. Eu sendo abençoado pela mãe, que pergunta – Dormiste bem, filho. O pai no breviário do pouco à mesa já em contato com as obrigações do pátrio. Caras de serviçais procurando ordens já na porta do alpendre.
Hoje tem galinha à cabidela.
Não gosto muito…
Você sempre comeu…
Acho que enjoei
Dona Isabela me olhando de rabo de olho e dizendo – o galo botou despertador atrasado. A palavra que me vem é a do padre Estevão, que diz que manhã começa na ritualização da rotina.
Imagens me vem
Batina
Sacristia
Hóstia
Tia
Pia batismal
Vou para o quarto e abro a janela para a paisagem de uma cerejeira em flor. Desço da janela, ali naquele lugar entre o jardim e um córrego costuma ficar em posição de buda um lagarto todo escamado, um ser entre a terra batida do jardim e a água corredeira do córrego. Ele está lá, imóvel. Numa nota de escárnio, põe a todo momento a língua para fora. Costumo contar até cem na sua frente.