Um conto de Fernando Ferrone
Fernando Ferrone, nascido em 1981, mora em São Paulo, SP, e é autor do romance À deriva, publicação independente.
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Loja de panetone
Eu vou ser bem sincero pra você. Se alguém tivesse me dito que o Munhoz só precisava de um episódio na vidinha sem graça dele pra mudar totalmente, passar da água pro vinho, eu juro pra você que eu teria dado um jeito de, vamos dizer, dar uma sacudida nele.
Já fazia um tempo que o Munhoz tinha entrado na firma. Ele é um desses caras de vinte e poucos anos muito do sem graça que ficam pulando de emprego em emprego, prestando concurso, não passa em nada. Daí fica de olho nessas vagas temporárias que aparecem e pegam a primeira oportunidade que veem.
Um fracassado, vamos ser sinceros.
A gente ficava sempre junto no quiosque. Mesmo se não tivesse movimento. Aquela porra de quiosque nem cabia direito duas pessoas, ainda mais um gordo como o Munhoz. Olha, eu vou ser bem sincero pra você, eu juro pra você que se eu fosse o seu Pereira, que é nosso chefe e que foi quem conseguiu sabe-se-lá-como a concessão do espaço no Metrô, eu jamais que colocaria um gordo seboso como o Munhoz pra tomar conta de um quiosque de venda de panetone.
Porra, é colocar o gambá pra tomar conta dos ovos. Não tem como dar certo.
Mas até que o Munhoz estava se dando bem. Ele chegava cedinho, com a camisa por dentro da calça, o cabelo colado na cabeça de tanto gel brilhante, e com aquela cara de bobo que faz a gente ter vontade de rir só de olhar. E não abria o bico.
No começo eu não ligava, porque eu também não sou de puxar muito papo, não. Eu tenho meus critérios de conversa, tá ligado? Eu só gosto de falar de coisa importante: futebol, mulher e empreendedorismo.
Tá meio que na cara que eu não vou ficar falando por que futebol & mulher é assunto importante. Só se você for uma bichona perna-de-pau não saberia que quando dois homens estão num lugar de onde não podem sair porque afinal são as regras e por acaso um deles se recusa a ficar uns minutinhos sozinho enquanto o outro vai lá resolver uns problemas a obrigação é falar de futebol & mulher. E eu tô falando de obrigação com ô maiúsculo. Futebol feminino é uma alternativa até que bem aceitável: economiza tempo. Agora, eu gostava mesmo é de falar de empreendedorismo. Eu tinha, na época, um monte de projetos. Eu vivia vendo uns vídeos no YouTube. Eu não tava a fim de muita teoria não porque teoria é um negócio que eu sinceramente acho que não serve pra porra nenhuma. Eu ficava mais é vendo vídeos de casos de sucesso. Vídeos de influencers que tinham conseguido muitos seguidores e visualizações. Mas eu tô fugindo do assunto.
Caso é que o Munhoz, ele não conversava nada comigo. Eu que conversava com ele. Eu ficava puxando papo, todo empolgado, e ficava falando mas ele só ficava me olhando com aquela cara gordurenta dele de adolescente tardio cheio de espinha e pelo encravado e só balançava a cabeça pra sim ou pra não. Mais pra sim que pra não porque uma das coisas que eu aprendi nas minhas pesquisas é que a positividade é sempre melhor que a negatividade então você meio que tem que fazer perguntas que vão ter respostas sim.
Pois um dia a gente tava nessa abre aspas conversa fecha aspas quando o Munhoz parou de olhar pra mim e começou a olhar pra um casal que tava na plataforma. Era domingo, então não tinha movimento nenhum no quiosque que ficava naquela estação modorrenta. Pois você veja que eu não sei o que chamou atenção do Munhoz naqueles dois porque eles não tinham nada de mais, talvez, sei lá, o fato da mulher ter uma bunda um pouco maior que a média. Mas, quer saber eu acho que não era nada disso não porque eu nunca que vi o Munhoz secando bunda de mulher nenhuma nas duas semanas que a gente trabalhou junto antes da coisa suceder.
Eu acho que o Munhoz prestou atenção neles porque eles estavam sozinhos na plataforma. Eles estava meio que conversando, o que é bonito de se ver porque quase todo mundo tá calado no Metrô. Tem gente que usa fone de ouvido, tem gente que fica alisando a tela do celular, tem gente que fica olhando com cara de peixe morto pro túnel esperando o trem aparecer, e tem um povo, quase ninguém pra ser sincero, que fica lendo em pé uns livros que eu nunca vi. Povo estranho. É um negócio meio besta mesmo você ficar em pé segurando um livro na mão no meio das pessoas. Deixa pra lá.
Eu fiquei olhando pro casalzinho e não vi nada demais. Ele era meio altão assim, tava com uma bolsa preta a tiracolo. Ela tava usando um vestidinho assim meio coladinho que era uma delícia. Eles estavam de braços dados e pareciam até animadinhos. Sabe aquele jeito meio bobo que os namorados têm de ficar conversando e meio que dando umas giradinhas pra cá e pra lá? A gente tava longe e claro que não dava pra ouvir o que eles estavam falando. O Metrô é um lugar bem barulhento e eles estava longe pra burro da gente. Mas era sorrisinho pra cá, sorrisinho pra lá, saca?
Então, daí, sem mais nem menos, o cara larga a mão da moça, tira a bolsa do ombro, espera ela cair no chão e se joga na frente do trem.
Na frente do trem, mermão.
Foi um baque imenso. Um barulho assim seco. Pou!
Naquela hora tavam chegando uns outros passageiros. Eles viraram as costas e saíram correndo. A moça que tava com o cara começou a gritar. Depois alguém lá do Metrô disse que ela tava em choque. E eu que achava que quando alguém ficava em choque ela ficava caladona assim com os olhões esbugalhados. Da mesma forma que ficou o Munhoz.
O pessoal do Metrô até que foi rápido. Logo chegou um cara lá com um rádio na mão. Ficou falando uns negócios. Daí entrou embaixo do trem. Daí apareceram mais uns quatro povo tudo com um macacão amarelo que cobria o corpo todo. Entraram com uma prancha e tiraram lá o presunto dentro de um saco plástico preto. Já era.
O Munhoz viu tudo paralisado. Paralisado mesmo. Tipo sem piscar.
Já era meio que fim do expediente. Ninguém mais foi lá comprar panetone da gente. Nem chocotone que é o que mais sai. Uma meia hora mais e a gente tava colocando a lona preta em cima do quiosque lá e pulando fora.
Eu fui de Metrô mesmo que eu não pagava. O Munhoz foi embora a pé. Ele só ia embora a pé quando ia pro curso dele de inglês e naquele dia não era o caso.
No outro dia era segunda, que era a nossa folga, e eu só fui ver o Munhoz na terça.
Quer dizer, eu achava que era o Munhoz. Parecia o Munhoz, mas tinha algo diferente nele.
Ele tava com tipo um brilho no olhar. Ele tava sorrindo mais. Ele tava até conversando. De repente, ele manjava tudo de futebol. Eu nem sabia que ele era Portuguesa. Eu nem sabia que existia ainda torcedor da Portuguesa por aí. Eu nem sabia que ele manjava tanto de futebol. Eu trabalhava no meio dos panetones pegue 3, pague 2 com o irmão-gêmeo desaparecido do PVC e não sabia. E ele começou a falar das moças. O Munhoz era um desses caras educados. Ele não falava que a mina era gostosa pra caralho. Ele falava que ela era bonita, escultural, helênica. O quê? Ele tipo começou a usar umas camisetas diferentes. Umas de umas bandas que eu nunca tinha visto. Eu nem sabia que ele curtia rock aquele gordo. Um dia ele me mandou uma playlist pelo zap que eu achei bem fera.
Você vai achar que eu não devia dizer isso, mas eu gostei do Munhoz depois que o cara se matou lá no Metrô. A gente conversa mais. O tempo passa mais rápido. Meu, eu até que não ligo de vender panetone o dia inteiro tendo o Munhoz lá pra conversar.
Pô, mas uma parada que não me sai da cabeça é: e se o cara lá não tivesse lubrificado o trem com as tripas dele? O Munhoz ia ser aquele cara lá bobalhão pra sempre? Aquele filho de vó que só usa camisa de botão com dois bolsos pra dentro da calça isso quando é novo e quando é velho usa calça social pra cima do umbigo?
Será que todo mundo que é assim meio tontão precisa de um choque desses pra ser mais de boa?
Não vai ter presunto que chegue.
Olha, eu não gostei de ficar pensando esse monte de coisa não porque meio que me fez mal. Eu gosto do novo Munhoz, mas esse tipo de pensamento aí que ficou me deixa meio bolado. E pior que toda vez que eu entro no trem pra ir embora eu fico pensando nisso.
Já o Munhoz eu não sei. Ele só vai embora agora a pé.