Um conto de Gabriele Rosa
Gabriele Rosa nasceu em 1988, na cidade do Rio de Janeiro. Graduada em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), é dramaturgista e atuante no projeto #CuidadoPoema. Autora do livro Fendas Extraordinárias, lançado em maio de 2019 pela editora Patuá.
***
NUVENS DE AÇÚCAR
(inédito)
Monóxido de carbono… Desencarnei! Tudo é branco e cinza e nada. O tempo não brinca conosco. Relógio quebrado, desajustada, ponteiros soltos em corpo mudo. Ei! Mocinha! Estou molhada, de novo… Vazada, mijada, imóvel, mobília. Ela se foi… Permaneço. Anoitecida… Corpo transmutado em pupila. Mulheres apressadas e sorridentes cruzam os corredores todos os dias, escuto os passos ditosos. Minha língua dança com os comprimidos… Ah! Os comprimidos! Retardo encapsulado. A vida é feita de doses homeopáticas de morte. Sinto o cheiro da juventude quando me deixam no jardim. O dulçor do vento me afaga. Meu filho, Jiló, me visita às vezes… Ele é amigo de todos por aqui! Me lambe as mãos, os pés, a face, corre em volta da minha cadeira. O filho da Lola morreu. Dois dedos de bainha e ficará perfeito!… Os termômetros permanecerão em baixa durante a semana, hoje teremos máxima de 25ºC. Hoje é terça? Pensei ser domingo… Não é o dia da Macarronada? Que pena, tenho fome. Sai Jiló, não quero abraços, está com cheiro de chuva, menino. Já disse que não pode brincar na lama, seu pai não gosta! O filho da Lola morreu. Não use minhas tesouras Carlinhos!
Já é hora da novela? Lola está tão triste com o filho na guerra… Atenta. Vislumbro com os ouvidos. Carretilha sem linha. Antena. Mãos me tocam sem afago. Reconheço o perfume das mocinhas que me cuidam. Por vezes me invadem quando menos espero: sonda, fralda, lenços… Banhos secos e úmidos e velozes. Esse não é o meu quarto… Não consigo me mover… O que houve comigo? Carlos, Carlinhos você está em casa? Esta é sua casa?… Quem apagou as luzes?… AJUDA!… Se lembro, existo. Se esqueço, vegeto. Sem corpo, palavra avulsa, relapsa, inaudível. Essa mania de existir que não me deixa. Fruta madura de árvore oca.
Arsênio. Do ventre, o sorriso. O fim é o repouso numa casa com desengrenados. Eu te amo. A última ceia: tragadas profundas, sorrisos sinceros. Tu e eu. Só nós dois, sem o mundo. Como o tempo te alcançou meu filho… A fumaça baila em sua face, rechonchuda, agora. Estou aqui, ainda. Não vês? Desaprendeu a olhar, eu te perdoo. No Litoral, a previsão é de sol entre nuvens, com possibilidade de pancadas de chuva no fim da tarde. Sem culpas, querido, mamãe tem muito orgulho de você. Os netos não vieram… Poupados da avó fraturada. Pare de falar Nelson!… Minha enxaqueca está voltando…! Vai meu filho e seja feliz. Você já é um adulto Carlos, não precisa da minha permissão, nunca precisou. Hoje vamos ensinar como cultivar a flor-da-fortuna. Tenha a planta da felicidade em seu quintal, depois dos comerciais. As noites são todas úmidas, os dias desabitados. Suja. Assistida. Limpa. Velha. Sinto falta da agulha entre os dedos, do cerzir da máquina, das clientes, da minha laringe estridente. Petróleo fecha em alta e recupera parte das perdas. Tira a mão do meu seio! O que faz em minha casa? Estamos no banho? Não lembro de nada. O que fizemos? Fizemos? Vai me vestir?… Eu vou… Gritar… Sobe para quinze o número de desabrigados na Região Serrana do Rio. Nelsinho… Veio me visitar? E tua amásia, esteve por lá? Como é abraçar a terra?… Eu só odeio uma coisa na vida: Fralda! Carlinhos já está expert, me cuida como ninguém. Meu único filho. Pai-filho de mãe ausente.
Nunca vi planta tão feia! Extremidades alongadas e finas, sem frutos, tampouco folhagens, feita de ferro, eu acho, mas a flor… É a mais bonita que já encontrei. Ela pode ver no avesso dos olhos. Enraizou no meu quarto, em frente a poltrona. Ela me olhou, sorri timidamente. Um cumprimento, acenei de volta. Foi amor à segunda vista. Carlinhos surgiu de repente, pegou a telinha do bolso e nos emoldurou num click silencioso. O que ele pensa que está fazendo? Virei cachorro? Estalando dedos… Meu filho… Seu pai já morreu, não quero usar camisola! Está esquecido? Quero vomitar… Essa lavanda está me enjoando. Pra quê tanta loção? É o décimo xixi que faço nessa fralda, e você aí esmurrando a parede. Eu devia ter te ensinado a pentear meus cabelos… Impaciente como o pai… Homens…! Horas olhando para a planta esquisita que ele trouxe. Vive disso o menino… De plantar o tempo…
Cádmio; irrealizada! Quando uma porta se fecha, uma janela se abre. Eu vivo nos minutos. Sentada sobre os neurônios. Todos os dias, até o sempre. Nunca mais desliguei a TV. Acho que ele é feliz longe de mim: do diagnóstico, da vida. Suspendi meu corpo e aguardei o finamento, sentada sob o lençol umedecido, sozinha, despupilada. Encamei, desenxurrada. Fátima chegou pela manhã, aguamos. Pernas amansadas, braços embrutecidos . Carlinhos está na escola, ele já aprendeu algumas palavras. Leio para ele todas as noites. Somos apenas nós dois, e um mundo a nossa volta. Se pudesse não teria soltado a sua mão. Carlinhos é o filho que pode ser, mora em bairro chique, faz fotografia de revista, não me deu netos, penso que gosta de rapazes, nunca dissera. Eu o amaria da mesma forma. Na reunião de pais ontem, Dona Márcia foi só elogios… Mas, Carlos não escapou da recuperação esse bimestre… Ah! Matemática!
Em presença só tenho Fátima, minha melhor amiga, cuidadora, parceira. Fatinha fica comigo em tempo integral, ordens de Carlos. Mas, eu ainda existo. Nos últimos anos, nasci em Carlinhos. Não farei bolos para os meus netos, nem roupinhas, tampouco contarei histórias… Eu acolho a morte. Meu fiar se rompeu. A moleira não conversa mais com os olhos, o lume se foi. As mães sonham futuros para os seus filhos, enquanto eles escolhem seus próprios presentes. Carlinhos sempre fora de pouca vida, sonhava em demasiado. Queria capturar o tempo desde brotinho… Tão bonito… Feito o pai. Esta Cintura precisa de um ajuste! Vou pegar mais alfinetes. Ele sente a falta do pai, não o culpo.
Alcatrão: caixinha de surpresas. Fogos de artifício. Mãos, pés, pernas, braços… tudo está formigando, acometida por uma descarga elétrica, respira Glória, respira… Uh! Uh!… Ah! Se a felicidade vem em caixa, dentro dela tem um vibrador. Certeza! Não há cura. Eu não vou morrer, vou extinguir, aos poucos, viver o avesso da vida, em vida. “Alguns anos” foi o que o médico disse, o restante passou despercebido, eu só conseguira ouvir o “alguns anos”, Carlinhos chorou como um bebê longe do seio da mãe. Eu sou a mãe. Caixa postal, pra quê esse menino tem celular se nunca me atende? Essa juventude… Fátima me compre um vibrador! Não questione, você acha que sou uma inválida? Se eu vou morrer, quero saber como é ter um orgasmo, e logo! Vi na novela. Eu também nunca entrei numa loja dessas, mas eles devem ter coisas para senhoras como eu, com um corpo… Que goza. Você não goza?… E, qualquer coisa você me ajuda, somos mulheres. Prazer, eu sou Glória, e você? Fátima, que nome bonito. Então será minha babá! 12×36 é o suficiente. Nelson é um exagerado. Desculpe, eu disse Carlos, não? Cadê o manjericão? Aff… Esqueci a sacola no supermercado! O que houve aí em casa Dona Rosa? Incêndio? Como a senhora entrou aqui em casa? Aberta? Eu fui ao mercado, comprar… Eu não fui comprar… Nada. Eu… Ai, meu teto todo coberto de fuligem… A senhora invadiu a minha casa! Há tempos percebo a senhora me espionando. Cadê o manjericão? Molhada, de novo? Lavei roupa ontem… Preciso ir ao médico, agora faço mais xixi do que prego botões!…
Nicotina… Não era amor, era fumaça! O amor não termina no caixote. Nelson abraçou a terra. Não vou impedir a sua presença, amásia. Não chore. Viva o seu luto, em silêncio. Meu filho não precisa saber das traições de Nelson. Ninguém precisa. Carlinhos!… Entre, seu pai logo chega, venha para o banho menino! Sujo de lama, de novo? Não quero ouvir… Esquece esses caracóis, traz doença filho! Escute, Carlinhos, vida não se congela. Seu pai não devia ter comprado essa câmera: brinquedo inútil! Vá jogar bola com os meninos da rua! Precisa de amigos! As roupas eu quem lavo depois… uma pilha delas. Lava. Passa. Cozinha. Costura. Satisfaz, não satisfeita. Filha, esposa e mãe. Nove vestidos, essa semana estou com muitas encomendas, Rosa, entre!.. Vou preparar um café para colocarmos a conversa em dia. Agora sinto calores. Com o dinheiro entrando, posso comprar uma máquina nova. Vou engrenar!
Nelson está tão ausente, chega tarde da repartição, quase todos os dias. Fingi que não vi o arranhão em suas costas… É instinto, eu sei. Ele não gosta quando eu tenho encomendas. Diz que eu me desvio. Ora! Se é a única coisa que gosto de fazer… Penso ser ciúmes, pois sou reconhecida: a melhor costureira do bairro! Tenho diploma! Há tempos sofro de enxaqueca, fora as dores nos quartos. Carlinhos é um bom menino, eu só quero ele cresça feliz, como sonha…! Pode o amor arrancar pedaços? Minhas sementes são fracas. Eu preciso me esforçar, quero este epílogo, já o amo. Duas sementes se foram nos últimos meses. Não quero ser uma incompleta! Será um menino? Acredito que sim! Ainda é cedo para saber… Nelsinho… se despeja em mim todas as noites, sem trégua. Mamãe não me contou que seria assim. Suja. Saciado. Vazia. Roncos. Mãos bem feitas, cabelo sempre penteado, o perfume que ele gosta, a camisola do dia escolhida… Ele aprecia quando me cuido. Coisas de homem, do meu homem. Enfim casados. Sim, eu aceito!