Um conto de Giovana Proença
Giovana Proença é taubateana e estuda Letras na FFLCH-USP. Com experiência no teatro, atualmente colabora para a revista literária Frente&Versos. Escritora de primeira viagem, publica contos e se arrisca na poesia.
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Antes, quase, nunca
Lori percebeu a inquietação de Ricardo assim que ele passou pela porta. Resolveu não dizer nada e evitar qualquer conflito. Vivia com ele tempo suficiente para saber que era o certo. Se quisesse, ele confessaria suas atribulações. Respirou fundo e foi conferir a carne no forno, ocupava-se com os alvoroços na cozinha em seus dias de folga, puro entretenimento. Não gostava de pensar em si mesma como dona de casa. Pianista, vivia a rotina entre ensaios para recitais e a vida com Ricardo. Considerava ter êxito em ambos. Afinal, percebeu instantaneamente sua inquietação.
No outro cômodo, Ricardo olhou o piano com satisfação. Sempre sentia uma onde de prazer percorrer a espinha ao ver o instrumento, hoje não seria diferente. Folheou um jornal sem muita atenção, nem pôde perceber que era do dia anterior. As notícias eram sempre as mesmas de qualquer forma. O cheiro da carne invadiu seu olfato. Molho madeira, adivinhou. Era seu favorito, teria dificuldade para explicar a falta de apetite.
Mal teve tempo de procurar algum programa para matar o tempo na televisão, Lori anunciou que o jantar estava pronto. Era insistência dele que jantassem juntos, sabia que ela se contentaria a uma degustação solitária. O segundo ponto de Ricardo era a trilha sonora. Faziam as refeições ao som de música clássica, bem baixinho. Lori chegava a duvidar que ele ouvisse algo, seus próprios ouvidos treinados já acostumados ao ritmo. A terceira exigência era de Lori: um quarto de taça de vinho branco, lera uma vez que realçava o sabor.
-Sua ex mulher telefonou. Disse que era algo sobre o Joaquim, mas não deixou recado. Acho que ela liga amanhã. Tem um jeito tão pomposo de falar! – divertiu-se contando, não pertencia ao gênero que deixava-se corroer pelos ciúmes do passado. Costumavam jantar em silêncio, alguns poucos comentários sobre o tempero. Lori resolveu quebrar quietude, sabendo como informações perdiam-se facilmente nas próprias divagações.
Ricardo murmurou alguma expressão de entendimento. Antes mesmo da menção ao filho, sabia quem era a autora do telefonema. Em outro dia, a imagem de um diálogo entre a formal Lena e a irreverente Lori o teria feito reprimir o riso. Lena – Helena sempre insistia, detestava apelidos. Ela não o detestava. A separação decorrera de forma amigável, iniciativa dela. Era o melhor a ser feito. Na época a pesquisa de Lena, Literatura Brasileira contemporânea: Clarice Lispector, ainda pensa com orgulho, fora aceita por uma universidade no exterior. “Uma oportunidade única! É impressionante como Clarice tem sido lida fora do Brasil…”, era um belo discurso, embora não o lembrasse inteiro. A verdade é que poderia tê-la acompanhado. Mas a ideia de partir para São Paulo em sua busca já rondava a cabeça. “Não posso fazer isso, desculpe-me.” Ela voltara ao país com Joaquim há uns dois anos, desde então liga semanalmente, todo o papo de estreitar os laços com o filho. Se ao menos tivesse uma menina…
O riso de Lori interrompeu o pensamento quase cruel que delineava. Tinha uma dessas risadas impossíveis de passar despercebida.
-Acho a coisa mais engraçada do mundo como você conheceu a Lena, sabia? Já me contou umas mil vezes, nunca me canso. Consigo ver direitinho: ela lá sentadinha na praça lendo Clarice, você chega e interrompe! Tudo isso ainda pra dizer que era sua favorita. Isso só funciona com uma mulher como a Lena mesmo. Te digo mais, se fosse uma dessas de hoje acharia ruim um desconhecido atrapalhando a leitura. Como ela aceitou sair com você, realmente, eu não sei. Ainda bem que você melhorou com o tempo. E experiência. – Se estivesse em melhor estado de espírito, Ricardo acharia graça na insinuação da diferença de idade entre eles. Lori dizia que logo o chamaria de “velhinho”. Não se importava, amava aquela juventude pulsante que ela transpirava. Incomodava-o mais a farpa quanto a experiência, beirava uma alusão a Lana, a mulher com quem vivera antes de conhecer Lori.
-Já te disse que livro ela estava lendo? A Lena? – perguntou Ricardo, a voz casual.
-Deve ter dito. Disso não lembraria, minha literatura é outra. – apontou o piano.
–Água viva! Sabe o que me chamou atenção? A capa do livro, não via aquela capa fazia tanto tempo… Minha mãe leu esse livro. Passou meses com ele no colo. Peguei um dia para folhear. Li uma frase sublinhada de caneta azul. “Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso ganhei ao deixar de te amar.” Claro que não entendi, era tão novo! Devo ter passado uns dez minutos só lendo essa frase. Sei que nunca esqueci. Hoje acho tão bonita… – Lembrava de segurar o livro entre as mãos, tão pequenas. Folheou com curiosidade, lendo e relendo a frase sublinhada. Quis perguntar para a mãe o que significava, não sabe por que não o fez. Naquela mesma noite o pai jogou o fósforo no piano.
-Interessante, então acha que ganha ao deixar de amar? -Era mais seguro não responder, era provável que ela o estivesse testando. Afinal, ele ganhara Lori ao deixar de amar Lana. Nos meses que seguiram a partida de Lena, sentira com ardor a perda daquela presença feminina. Não imaginara o quanto se sentiria pequeno, menor do que o próprio filho, que ainda contava com aquela proteção maternal. Um medo crescente expandia-se como um buraco negro, alimentado pela ausência do outro lado da cama. Até que encontrou Lana – Lena, só que com a, pensou ao conhecê-la – para preencher. Mais velha que ele em meia década e viúva, não demorou para passarem a viver juntos. Durante todo o casamento, Lana foi uma mulher do lar e só. Não era com ele que isso mudaria. Levaram um casamento ao estilo anos 50, que o agradava de certa forma. Ouviu dizer que ela voltou para o interior quando ele foi morar com Lori. Não sabia ao certo.
Na falta de uma resposta, Lori bebeu um tímido gole do vinho. Uma taça inteira não seria de todo mal hoje, no íntimo, estranhava Ricardo. O olhar de quem divagava longe por mares proibidos, as verbalizações desconexas. Não devia ter insinuado nada que remetesse Lana, sabia bem. Costumava gracejar pensando nas mulheres que Ricardo teve antes dela: Lana e Lena, Lena e Lana. Não pensava em nenhuma das duas como rival. Sentia enorme pena de Lana, uma mulher com o orgulho ferido e as esperanças ruídas, viu o marido apaixonar-se por outra sem nada que pudesse ser feito para impedir. Lembrou do olhar vazio que Lana lançara à ela e Ricardo no restaurante. A mãe que vê o filho correr no meio da avenida e só assiste a tragédia, grito nenhum impediria.
Lori não se enganava, sabia que Ricardo era quebrado. Via no olhar dele. Ricardo tinha olhos de saudade. Conhecera-o num desses bares, no centro, um antigo piano bar. Tinha idade para ser seu pai, mas sentiu uma crescente atração por ele. Lori tocava o piano preto, uma dessas antiguidades que o tempo resolveu preservar. Nada ganhava, há tempos que ninguém usava o instrumento, esquecida decoração retrô. “Usam para tirar foto”, brincou um garçom. Sentiu necessidade de tocá-lo. O bar estava vazio, ninguém reclamou. Era estudante de música na época. Viu Ricardo chegar, o jeito inquieto que o acompanha. Falou com um senhor no caixa, mostrava uma foto e parecia afoito. Balançando a cabeça, encerrou o diálogo e se deixou cair em uma mesa.
Foi quando a viu. Lori reparou nele, o olhar de saudade mais intenso do que nunca. Abandonando o piano, sentou na mesa. Você toca lindamente, ele disse. Veio beber uma depois do expediente? Quis saber, curiosa por aquele homem maduro. Estava procurando uma antiga pianista, respondeu. Pois achou a nova, soltou a melodiosa risada pela qual é conhecida. Lana não teria a menor chance. Desde então, Lori nunca se apresentou sem Ricardo na primeira fila.
Uma avalanche de ternura a invadiu. Quis subitamente abraçar o homem a sua frente, afastar qualquer que fosse sua aflição. Ricardo, sou eu, Lori! Implorou com o olhar que ele a conduzisse para o quarto. Avançou a mão em direção a dele. A indiferença estampada no semblante a deteve. Quase podia ver os cacos espalhados, matéria turva para ela. Serviu uma taça inteira, só hoje, ela se permitiu.
Ricardo, por sua vez, quis afastar o vinho de Lori. Olha para mim, interrompia o silêncio ensurdecedor que achava que ela preferia escutar. Encarou a mulher, enquanto ela se distraía com a carne e o vinho, em efêmeros instantes que para ele pesaram a confissão de horas de angústia. Estive no asilo. Fui ver Lúcia. Eu vi minha mãe, Lori. A pianista. A mulher que eu procurava no piano bar. Anos e tudo em vão, sem respostas. O mesmo sumiço da noite em que meu pai queimou o piano. A mesma ausência prolongada. Nenhuma memória. Nada para mim Ela me olha e sorri, me chama de meu filho. Chama todos de meu filho e minha filha. Digo que me chamo Ricardo, isso não significa nada. Digo que lembro das intermináveis horas que a escutava em frente ao piano, o som na sala, nossos furtivos momentos de alegria. Ela pergunta se eu a assisti em alguma casa de São Paulo. Menciono meu pai, ela diz que conheceu um homem chamado Antônio uma vez em uma apresentação. Passamos longos intervalos de tempo jogando xadrez, e só. Tudo se resume a isso, a carreira e o piano. E tudo isso ela ganhou ao deixar de me amar.
-Ricardo? – ele fechou os olhos, calando o turbilhão. Temia demonstrar a rachadura a Lori. Não suportava a ideia de vê-la ir, assustada com a tempestade que escondia atrás da aparência sóbria. Lapidou um sorriso mal delineado, ela sentiu-se estremecer. Sendo ele como era, provocava reações que formigavam o corpo jovem e a essência feminina de Lori. Ele tinha inquietações, ela sabia. Viveriam assim. Por ora, se entenderiam melhor no quarto.
-Lori, joga xadrez comigo. – ela riu ao convite, entoando o som melodioso por todo ambiente. Tem uma voz linda, pensou Ricardo. Vai para o quarto, enquanto ela se serve uma última taça de vinho, planos para a noite sendo traçados em sua imaginação fértil, os lábios sorridentes na taça. Ricardo olha no espelho, tudo que precisa é de um alívio. Por hoje, se permitiria compartilhar da ébria excitação de Lori. Amanhã ligaria para saber do filho, mas se ao menos tivesse uma menina! Poderia ir no asilo, a ideia o acometeu. Levaria o livro, trecho sublinhado de caneta azul. O prazer o invadiu.