Um conto de Henriette Effenberger
Henriette Effenberger nasceu e reside em Bragança Paulista-SP. É romancista, contista, memorialista, poeta e escreve também literatura infantil. Publicou, em 2002, em coautoria com Maria Dulce N. K. Louro, seu romance de estreia, A Ilha dos Anjos. Outros livros publicados: As aventuras do Superagora (infantil); SSAAM — 80 anos de acordes em harmonia; Aeroclube de Bragança Paulista — uma trajetória nas asas do tempo; Liga do Pico, Futebol e Pinga e Sindicato do Comércio de Bragança Paulista — 70 anos. Publicou também Linhas tortas, em 2008, composto por contos premiados em concursos literários nacionais e internacionais, com apresentação de Ignácio Loyola Brandão, e Vida de sabiá — o que sabiam os sabiás além de assobiar, vencedor do Prêmio João de Barro de Literatura Infantil, editado em 2009, pela Fundação Cultural de Belo Horizonte. Em 2017, organizou a coletânea de contos Horas partidas (Editora Penalux) e a coletânea de contos e crônicas do Movimento Mulherio das Letras (Editora Mariposa Cartonera). Em 2018, publicou o livro de conto Fissuras, pela Editora Penalux. No prelo, em lançamento previsto para 2019, o infantil O menino que engoliu um furacão, vencedor do Prêmio Manaus de Literatura 2017, categoria literatura infanto-juvenil.
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Horas cinzentas
Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos
Quando o fogo era já frio.
Manuel Bandeira
A pele enrugada, quase seda, quase crepe. Manchas roxas. Hematomas de outra vida. Nem sentiam, nem arrepiavam, nem doíam.
Era crepe, tal como o embaçado espelho, que há muito perdera o cristal, denunciava sem pudor. E acusava o esquecimento.
A velhice, aos poucos, vai incorporando a morte. Amarela os papéis, mais do que a nicotina mancha os dentes e os dedos nodosos. Também transfere para os braços as nódoas do espírito. A voz é rouca. Os músculos elásticos transformam-se em barbantes, não se sustentam, muito menos aos membros.
Desalento.
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria
A agitação externa contrasta com o tédio interior. Os poucos sons que são decifrados pelo cérebro entorpecido ecoam: Centenário… centenário…centenário!
Mãos desconhecidas invadem seu corpo e tentam retirar dele o cheiro da morte entranhado nos poros, nas cavidades, na impermeabilidade da pele.
Um gesto mais delicado no órgão faz com que relembre de sua função: prazer!
As mãos ossudas tentam manter as miúdas onde estavam. Em vão! Um gesto brusco, seguido de um olhar zangado, quebram o encantamento.
Colônia. Talcos. Sabonetes. E o cheiro da morte continua ali, rondando, zombando da comemoração…
Cabelos ralos penteados para trás! Que inferno! Nunca usara o cabelo penteado para trás. Sempre se sentira mais Elvis Presley do que Gary Cooper. E cadê o topete que passara a usar já perto da meia idade e que as pessoas diziam não ser apropriado? Dane-se o apropriado! Num gesto de rebeldia, despenteou os cabelos com as mãos e chegou a ouvir: – Velho esclerosado!
E, como sempre, fez de conta que não escutou.
Todos o consideravam completamente surdo e senil. Sabia que estava um pouco das duas coisas. Mas quando se está prestes a completar um centenário, quem se importa com o que os outros pensam?
Muito antes já dava pouca importância aos julgamentos alheios.
Aos oitenta e cinco, deixou o cabelo crescer e os prendeu com uma fivela. Na mesma época resolveu colocar um brinco na orelha esquerda. Passou a mão no lóbulo da orelha e o brilhante não estava mais lá. Certamente o venderam. Sentiu apenas o pedaço de pele pendurada, nem lóbulo era mais.
Tentou rememorar quando foi que tinha perdido o domínio de seu tempo e de sua vida.
A chama queima. O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas…tem de ser…
Amor?…–chama, e, depois fumaça:
O fumo vem, a chama passa…
Na viuvez? No primeiro AVC? No esquecer da senha do cartão do banco? Ao não reconhecer aquele aparelhinho como telefone?
Ou quando deixou de responder as perguntas? Talvez quando deixou de ser questionado…
Lembrou-se da falecida. Do amor que viveram, da paixão que a rotina transformou em afeto e em amor fraterno ao longo dos anos. O que fizeram das cartas que trocaram? Possivelmente estariam lá, entrouxadas em algumas das muitas gavetas, amareladas. Após a sua morte, alguém as encontraria. Se tivesse sorte, a pessoa leria, comovida, as cartas dos bisavós. Se não, mãos descuidadas as colocariam no lixo.
Gostava de pensar que seria lembrado como o patriarca que legara fortuna e sorte aos descendentes, e que a figura do velho centenário, encarquilhado, se manteria apenas na memória dos cuidadores, regiamente pagos.
Novamente alguém penteou seus cabelos para trás, deixando a testa larga e rugosa à mostra. Mais uma vez ele espalhou os cabelos com as mãos.
Vestiram-no com um terno claro, camisa branca e uma ridícula gravata borboleta azul. O boné foi substituído por uma boina. Que cazzo de boina é essa? Sentaram-no na cadeira de rodas e como um bolo foi conduzido à sala repleta de pessoas que cantavam o ensaiadíssimo e sempre desafinado “parabéns a você”.
Adultos em trajes de gala, jovens com roupas casuais e crianças engomadas o rodearam. Teve a exata noção do que estava acontecendo quando o fotógrafo jogou um holofote em sua cara.
Não se conteve.
Deixando atônitos os presentes, que o julgavam mudo desde o último AVC, encheu de ar os pulmões e gritou: MERDA!!!
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria…
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria
Esta pouca cinza fria…
***
Este conto, inspirado no poema “A cinza das horas”, de Manuel Bandeira, lançado em 1917, é um dos que compõem a coletânea 1917/2017: O século sem fim – Editora Patuá, 2017 – e também está no livro de contos Fissuras (Editora Penalux, 2018), lançado pela autora no Mulherio das Letras do Guarujá, em novembro de 2018.