Um conto de Hildon Vital de Melo
Hildon Vital de Melo, o Camaleão Albino. Jundialmente conhecido por ser escritor e pesquisador à deriva, mas é professor de filosofia, por razões de sobrevivência.
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Estação Terminal Jundiahy
“(…) Vai e vem, no vagão do trem,
fazendo dinheiro, ligeiro, éh, salve os marreteiros!”.
Organização Xiita – Marreteiros.
(Clique aqui para ouvir a música)
Acordei atrasado, mas ainda em tempo.
Levava pouco mais que as roupas e o corpo. Na mochila: maçãs, dois lanches, garrafa com água fresca, meia dúzia de cigarros e dois baseados, a blusa xadrez de sempre, livros e o cantil de Santhiago de Compostela – goles de uísque são para recordar antigas viagens, trechos percorridos com um velho amigo pela América Latina dos corações insones. A cada passo sentia que se afastava a melancolia da quarentena. Eram ansiosos os olhos das pessoas com quem cruzava pelas calçadas, havia aquela aflição matinal inclusive nos carros que iam e vinham e as árvores exalavam nascimento, crescimento e morte.
Dias empilhados em isolamento e contendas, a incerteza pairando em cada minuto – eu procurava um novo fôlego, meu novo fôlego –. Pôr a cara nas ruas povoadas por gente anônima parecia, apesar de tudo, o recomeço. Havia ruídos nas portas de alguns comércios; conversas que em vão tentavam afastar o passado recente e as angústias de todos os tempos.
Nos arredores da estação ferroviária o preço das passagens é sempre menos abusivo que na bilheteria. Um ou dois bilhetes a cada cem engasgam na catraca, mas podem ser trocados. Vantagens da vista grossa e dos pequenos comércios paralelos.
O sol castigava nossos rostos cansados logo pela manhã. Muitos protegiam os olhos com uma das mãos; outros usavam bonés e não eram raros os que faziam dos amarrotados envelopes de papel pardo para currículos uma proteção contra a claridade. À direita e à esquerda rangiam ferros; e há tempos as faixas amarelas de segurança tinham descascado.
As linhas principais eram para trens de passageiros; num segundo plano ecoavam apitos magoados das composições de carga; e, já ao longe, alguns rebocadores e peças de manutenção escapavam da vista panorâmica. Empregados e usuários trocavam de turno e assim executavam o ballet mecânico das atividades. As plataformas assemelhavam-se a ilhotas repletas de náufragos assombrados – um bando de sozinhos: o início e o fim de tudo estão sempre ali.
– Estação Terminal Jundiahy – ressoam nos aços as palavras até esbarrarem nos tijolos e madeiras podres da construção avelhantada. Gente pobre, gente cansada e fodida que se acotovelaria até o fim dos tempos a espera dos vagões negreiros.
– A CPTM informa: cuidado com o vão entre o trem e a plataforma – disse.
– A CPTM informa: evite desconforto aos demais usuários! Ao embarcar, leve sua mochila nas mãos. Colabore! Autofalantes não dão trégua. O aglomerado se agita ao assobio ainda longe, mas que se aproximava. Trem cheio, abarrotado de odores, idas e vindas; cargas e descargas – A CPTM informa: Senhores usuários, bom dia. Este trem tem como destino a Estação Terminal Luz. – disse, mas já não havia quem se dispusesse a ouvir. Vidas periféricas, bairros e assentos dormitórios disputados no soco. Lá, bem longe, a cidade grande em concreto armado se insinuará para mais um dia de cansaço.
Afobação, correria, mas não por causa do vômito de algum pinguço de meia idade, nem mesmo se trata de um suicídio consumado. No instante em que a embarcação abre as portas, num ponto próximo da plataforma, alguém que tentou driblar os fardas-bege, empurrando quem queria embarcar, foi pego antes de alcançar o alambrado que cerca a estação. Levou coronhadas, muitos chutes. – A CPTM informa: evite acidentes, não sente no piso do trem –. As sacolas pesadas, toda a mercadoria de amendoins salgados e doces que seria para o dia inteiro é apreendida, os guardas gritam para que ele mostre o dinheiro – ninharia de dar pena, ainda não havia começado sequer a fazer os corres. É um marreteiro inexperiente, um ambulante nos seus mangueios, talvez seja o único sustento, talvez tenha sido a forma que encontrou para pagar a pensão alimentícia de algum filho ou as dívidas da sua própria casa. Ninguém saberá.
Agora ele permanece com a cara no chão, imobilizado. Gritos de revolta contida, algumas pessoas empunham celulares, gravam o ocorrido. Quando os milicos o levantam ele reluta enquanto um fio de saliva rubra lhe escorre da beirada da boca e empapa a camiseta velha, números de algum vereador arcaico. Eles o levam. É só mais uma manhã na Linha Sete Rubi. O trem enchido dá a partida, eu e outros usuários resolvemos aguardar o próximo trem e ninguém se dispõe a comentar o acontecimento por mais de três minutos – A CPTM informa: colabore com a segurança. Envie torpedo SMS denúncia para 971504949. A CPTM deseja a todos uma boa viagem.
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(Fotografia [detalhe]: Gabriela Castro)