Um conto de Izilda Bichara
Izilda Bichara é formada em Letras e em Direito pela USP. Foi professora de Língua Portuguesa, procuradora do Município de São Paulo e orientadora de oficina de poesia e expressão escrita. Participa do Mulherio das Letras e integra o Coletivo Literário Martelinho de Ouro, desde a sua fundação, em 2012, tendo contos publicados nas diversas coletâneas do grupo: Achados e Perdidos, Serendpt, Sub e Eu não sou aqui e nos fanzines 50 anos daquele 64, Fancine e Flipzine. É autora da novela Térreo (e-galáxia) e de Desculpa o atraso e outros contos (ed. @link). Foi finalista do Prêmio Off Flip 2015. Contato: <https://www.facebook.com/izildabicharaescritora/> ou <izildabichara@gmail.com>.
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Novela
O passo na escuridão da esquina. A chave na porta de entrada. O corredor ocupado pelo vazio.
E o jantar atrasado.
É num instantinho que fica pronto. Vai tomando banho, enquanto eu ponho a mesa. Foi tudo bem na repartição?
A cebola espirra no óleo quente. Ela corre a ajeitar a toalha. O prato no lugar de sempre, o copo d’água, o guardanapo.
Enquanto coloca o arroz quentinho na travessa de vidro, ele se senta.
Ela pergunta se ele quer tomar uma sopinha antes.
Quer. Claro que quer. Se não quisesse, franzia o cenho e só grunhia qualquer coisa.
Assim tá bom? Só duas conchinhas. Espera que eu vou cortar umas fatias de pão. Não come muito que tem outras coisas. Hoje fiz picadinho com vagem. Aquele que você gosta.
Ele toma só a metade. Afasta o prato e espera.
Quer que eu coloque a carne do lado do arroz ou por cima? Come a salada também. A alface está fresquinha. Foi dona Maria quem trouxe. Veio hoje à tarde com a filha me visitar. Precisa ver como a menina cresceu! Ela falou que tá adorando o bairro novo. Tem de tudo por lá. Escola, sacolão, posto de saúde. Condução pra tudo quanto é lado. Uma beleza! Ela disse que o seu Dezinho tá muito contente. Largou até de beber e agora entrou pra Igreja. Acredita que a danadinha da menina me quebrou a asa da xicrinha azul? Sabe aquela que a gente ganhou de casamento? Mas tudo bem. Eu já colei. Dona Maria ralhou com ela. Disse que quando vier me visitar de novo vai me trazer outra xícara de presente. Imagine. Eu disse que não foi nada, que não precisava se incomodar. Mas bem que seria bom ganhar logo um jogo inteiro. Novinho.
Tá bom de sal? A menina chorou, dona Maria ficou sem graça e eu disfarcei. Mudei de assunto. Fingi que não tava nem aí. Mas, no fundo, eu fiquei triste. Logo essa que a gente ganhou de casamento.
Você se lembra quem deu? Foi a tia Guiomar. Levou na Igreja. Nossa, quanto tempo! Eu já nem sei o que virou da tia Guiomar. A última vez que eu soube dela, continuava morando com a Rita, naquela casinha de nada, lá em Serrinha. Parece que tava muito doente. Tadinha. Uma mulher tão alegre, tão cheia de vida, acabar assim. Também não foi fácil perder o marido e o filho único, assim, tudo de uma vez só. É de enlouquecer qualquer um. Não quero nem lembrar. A Ritinha vai direto pro céu, viu? Só ela é que teve coragem de cuidar da tia. Eu nem cheguei a me oferecer. Você não ia aguentar, eu sei. Você tem seu trabalho. Gosta da sua vida regrada, tudo direitinho. Imagine eu com a tia Guiomar, daquele jeito, aqui em casa?
Um pouquinho mais de arroz? Diz que ela ficou um tempão completamente largada. Não comia, não falava. Pra tomar banho era um custo. Parece que ela ficou igualzinha à mulher do seu Manoel da farmácia. Outro dia fui lá comprar os seus remédios e o homem tava acabado. A Mirtes me falou que a dona Dalva tá que é só pele e osso. Agora também deu pra vomitar. Não para nada no estômago. Eu respondi que, qualquer dia desses, a gente vai lá fazer uma visitinha. A gente devia ir mesmo. Mais por causa dele. Tão bom o seu Manoel, né? Sempre cuidando de todo mundo.
Terminou?
Quer doce de abóbora, agora? Fiz hoje. Ainda bem que já é tempo de abóbora. Na feira é o que mais tem. A dona Maria adorou. Já a menina, nem quis provar. Não parou quieta um minuto, aquela danadinha. Eu fico com uma saudade dos nossos meninos, quando vejo criança! Agora tudo marmanjo, morando longe. Nem pra visitar a mãe. Você tem falado com eles no telefone?
Bobagem. Imagine se iam ligar lá na repartição! Antes, o Marcelo ligava toda semana. Agora só uma vez por mês e olhe lá. O Mauro nunca foi muito de ligar. Sempre foi mais quieto.
Tava bom? Não coloquei coco porque não achei do fresco. Não gosto de coco de pacotinho no meu doce.
Quer café? Melhor não, né? Já é tarde. Depois você fica muito agitado e não consegue dormir.
Já vai subir? Deixei a água e seu comprimido no criado-mudo. Não esquece. Ah! Amanhã é dia de gás. Mas não precisa deixar dinheiro, não, que ainda tem um pouco na gavetinha.
Daqui a pouco começa a novela. Você não sabe o que tá perdendo. Hoje vão descobrir que o Gustavo está traindo a Helena com a Nicole. Não se fala de outra coisa por aí. Não dá pra perder de jeito nenhum.
O passo na escada. A porta fechada. O corredor vazio.
Na sala, Gustavo e Helena, Nicole e Gustavo e a louça toda para lavar.