Um conto de Jana Lauxen
Jana Lauxen tem 33 anos, é editora e escritora, autora dos livros Uma Carta por Benjamin (2009), O Túmulo do Ladrão (2013) e O Duplo da Terra (2016). Ministra palestras, cursos e oficinas literárias, e é colunista dos jornais O Informativo Regional (Sananduva/RS), A Folha (Não-Me-Toque/RS) e Tribuna (Carazinho/RS), além de colaboradora da revista Café Espacial.
Publicou em mais de quinze coletâneas, e organizou dez, algumas em parceria com outros escritores. Também é responsável pelo Projeto Nascedouro, da Editora Os Dez Melhores. Já organizou e editou cinco livros através desta iniciativa, publicando textos e desenhos de mais de 180 estudantes gaúchos.
Contatos: assinadojana@gmail.com / http://www.assinadojana.com/
***
A Branca, o Branco e o Fernando
A maldita era branca e o seu apelido era Branco.
Branco por causa dela, a branca.
Cocaína era uma merda.
Mas ele gostava dela, e gostava tanto, que ganhou o apelido: Branco.
E agora, muito tempo depois, outra vez ela.
A maldita.
Ali.
Tentou disfarçar, mas não conseguia deixar de encará-la.
Era impossível vê-la e não sentir tudo de novo.
Era sempre tão sedutora e gentil; tão atraente e deliciosa.
Como aquela loira encantadora que estava paquerando quando a enxergou ali, perto do sofá.
Se precisasse escolher entre a loira e ela, escolheria ela, sem pestanejar.
Trocaria todas as mulheres do mundo por ela.
Ah cocaína, sua safada!
Querendo se distrair, bebericou um pouco, sabendo que bebericar era o trampolim que precisava para mandar seus sete benditos meses abstêmios para a puta que o pariu.
Olhou para os lados e tentou, desesperadamente, encontrar alguma coisa que lhe prendesse a atenção, e tirasse seus olhos, seus pensamentos e seu nariz – que já começava a escorrer – dela.
Nada, não havia nada.
Não podia cair outra vez na sua lábia.
Lembrava bem, não tinha como esquecer: eram noites divertidíssimas ao seu lado, e Branco se achava o maior e o melhor, entre todos.
Ela o fazia sentir-se assim, poderoso, onipotente, sensacional.
E por isso ele a queria, por isso a desejava com tanta angústia.
Só que, de repente, ela sumia.
Desaparecia e o deixava completamente sozinho, passando mal.
Levava seu dinheiro, e não foram poucas as ocasiões em que levou também sua dignidade.
Então Branco olhava pela janela do seu quarto, vendo o sol pálido da manhã entrar como um intruso, e ele ali: sem cigarros, sem sono, sem noção, pensando nela, nela, nela.
Era horrível.
Nessas horas, jurava:
Nunca mais, essa pistoleira de araque!
Ela que não venha pra cima de mim, pois a mandarei para o inferno, lugar de onde nunca deveria ter saído!
Que nada!
Bastava ela aparecer outra vez, sedutora e gentil, e ele ia.
Ia com ela.
Ia sabendo que voltaria sozinho, de qualquer maneira.
Então inventava desculpas para perdoá-la:
– Estou triste, tenho que esquecer.
– Estou feliz, tenho que comemorar.
E mentia, mentia muito, mentia o tempo todo.
Por causa dela, e da falta que ela fazia, se tornou um sujeito agressivo e mal-humorado.
Quando não estava com ela, não queria estar com mais ninguém.
Porque ninguém era como ela.
Maldita cocaína.
Um dia deu um basta!
Trancou-se no quarto e avisou a mãe:
– Passe a comida por baixo da porta e não me deixe sair sob nenhuma hipótese.
A mãe acatou, sabia da paixão do filho pela danada.
E lá o Branco ficou, tentando deixar de ser o Branco para voltar a ser o Fernando.
Era Fernando seu nome?
Quase nem lembrava mais.
Passaram-se quatro meses.
Quatro meses no mesmo quarto, Branco versus Fernando.
Fernando ganhou, pelo menos aparentemente.
Saiu vitorioso, e chorou quando enxergou a rua pela primeira vez, depois de todos aqueles anos de devoção total a ela.
Anos em que não viu nada além dela.
Pensou que estava curado.
Maldita cocaína.
Agora de novo, ela ali, mais uma vez.
O encarando, o seduzindo, o chamando:
– Branco.
– Branco.
– Branco.
– Meu nome não é Branco!
É Fernando.
Era Fernando?
Sim, era, e disso ele não podia esquecer.
Tentou rememorar, com ansiedade, tudo o que ela lhe fez passar.
Não a perdoe.
Ela não merece uma chance.
Ela mente, é uma desvairada.
De tudo isso tentava se convencer; e Branco, renascido das cinzas, lutava mais uma vez com Fernando.
Acontece que Branco era desleal.
Chutava no saco, dava rasteira, apunhalava pelas costas. Atirava areia nos olhos do oponente, que tentava jogar limpo.
O pior era ver ela ali, torcendo contra.
Contra Fernando.
Que, cansado, pediu água e levantou a bandeira.
Bandeira branca, igual ela.
Resolveu se entregar.
Branco aproximou-se da mesa onde ela, soberana, repousava.
Vencera a peleja; com ela era realmente o maioral.
O mais forte.
O dono da situação.
O cara.
– Querida, que saudade!
Então sentiu.
Antes do primeiro aconchego e da primeira cafungada.
Uma dor de barriga lancinante, uma diarreia incontrolável.
Soltou dois ou três peidos, detectados pela audição e pelo olfato de todos que estavam por ali, com ela.
Tentou correr para o banheiro, mas já saiu se cagando por entre as pessoas que abarrotavam a sala.
Foi um fiasco.
A festa toda parou para ver Branco e suas mil flatulências.
Até a loira encantadora, que foi trocada por ela, agradeceu a Deus pelo fora que levou.
Branco, o fracassado.
Perdeu a batalha, por fim.
Como bom jogador, deveria saber que o jogo só acaba quando termina.
Fernando, afinal, tinha lá seus truques.
Truques sujos, além de muito malcheirosos.
Maldita cocaína.
Definitivamente, não queria vê-la nunca mais.