Um conto de João Antonio Guerra
João Antonio Guerra é morador de Madureira, no Rio de Janeiro. Lê e escreve.
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Desgracido vampiro o Dalton Trevisan
Eu tentava ler um livro e o livro que eu tentava ler me vencia.
Tal livro que eu tentava ler muitos e muitos leitores devem pensar o mesmo, ele é o melhor livro da literatura do meu país.
Eventualmente eu desisti de tentar.
Passei a procurar inutilmente entre os meus livros que sobraram por uma leitura mais simples. Porém tínhamos acabado de nos mudar e quase a totalidade dos nossos livros ainda estavam em suas respectivas caixas de papelão.
Os livros que ficaram de fora dessas caixas ficaram de fora por fazerem parte dum grupo seleto de livros, as minhas leituras do interstício entre termos nos mudado e ter chegado finalmente a nossa nova estante de livros. O critério de seleção tinha sido justamente o de aqueles livros formarem um conjunto que garantiria que eu prescindiria de qualquer outro livro.
Esses escolhidos eram de fato os meus favoritos, os meus mais amados, e muitos deles calham de pertencer também ao grupo composto pelo que muitos e muitos leitores concordariam ser os maiores livros da literatura do meu país.
Incluí ali o livro que me faltava, verdadeiramente o melhor de nossa literatura, e que diversas vezes eu tentara ler e fracassara.
Seria o único da seleção nunca lido até o fim, e dessa forma eu estaria me forçando a seguir com a leitura até o fim.
Todavia logo não me senti mais capaz de encarar aquelas páginas do melhor da literatura do meu país.
Aquele livro me venceu e humilhou
E o pior da situação em que eu me encontrava foi que, ao me voltar para os demais livros da minha seleção, a leitura de todos eles se mostrou igualmente insossa. Desconhecia onde se metera o amor que mantive por aqueles livros a minha vida toda até então.
Me encontrei então no quarto menor, que já estava escuro e onde ainda não tínhamos nos incomodado de instalar a lâmpada. Reconheci no escuro uma das caixas com livros, me debrucei sobre ela e fiz força para fazer uma pequena abertura. O que eu enxergava era só uma bocarra negra, que era o rombo que resultou dos meus esforços, e meti a mão naquela bocarra e revirei revirei até pegar e puxar um livro.
Já no claro olhei pra capa e me decepcionei, era de um autor que eu não gostava. Todavia era um autor conhecido como autor de contos curtos e mesmo contos curtíssimos, leitura que parecia apropriada para o meu estado de então, absolutamente farto de ler e desencantado de livros. Como eram curtas ou mesmo curtíssimas, aquelas estórias não teriam a oportunidade de me serem danosas e me traírem como me traíram aqueles livros que eu um dia amara.
O livro que arranquei daquela bocarra escura se dividia em duas partes.
A primeira parte era de estórias propriamente ditas, do tipo das que não duram muito pelo qual aquele autor fez sua fama. A qualidade do que estava escrito ali me despertou uma voracidade de leitura tamanha que, pouquíssimo tempo depois, já tinha lido todas as estórias e estava então voltando pro início, relendo tudo. Meu amor ou minha crença ou minha confiança ou minha fé no ato da escrita estava afinal reestabelecida, reabastecida por aquelas estorinhas tão pequeninas que eu antes acreditara serem incapazes de me fazer efeito algum.
A segunda parte não continha estórias, continha cartas.
As cartas eram endereçadas a outros autores, tão importantes quando o daquele próprio livro.
O assunto das cartas sendo literatura, ou os livros dos próprios destinatários ou os de ainda outros autores, incluindo autores do seleto grupo dos autores mais importantes da literatura do meu país.
A leitura das cartas não me animava no mesmo nível que a das estórias me animava. Inclusive, entre uma carta e outra, eu metia a releitura de uma ou mais estórias.
Até que encontrei uma carta cujo assunto era o livro que eu abandonara mais cedo.
O remetente não escondia seu desprezo não somente por aquele livro, um dos mais amados livros da nossa literatura, mas também o seu desprezo por aquele autor, que repito era considerado um dos autores mais importante do nosso país.
Apesar da minha péssima experiência mais cedo naquele dia, e também todas as péssimas experiências nas minhas tentativas anteriores de leitura, eu ainda assim me senti forçado a defender a reputação daquele livro e de seu autor. Procurei procurei na carta algo que eu pudesse rebater, algo que me fizesse capaz de apontar ao remetente o erro da sua interpretação.
E encontrei o tal erro de interpretação.
Na primeira página da carta tem um momento em que o remetente aponta o que acredita ser uma incongruência no livro.
Que no tal livro tem um homem e uma mulher mas a mulher se finge de homem.
E como quem narra é o homem, acontece dele comparar o estado da sua barba com a da mulher, que é claro ele pensa ser homem. Ele diz já fazia tempo que eu não passava navalha na cara, contrário de e aí dava o nome de homem adotado pela mulher.
Dessa sentença acima, o remetente chega à conclusão logo, ela fazia a barba?
O que era claramente para mim um erro de interpretação.
Porque quem narra é o homem e o homem pensa que o outro homem ali do lado é homem também mas está errado, como o remetente pensava que aquela mulher fazia a barba mas estava errado.
O homem que narra diante do rosto sem barba de quem pensa ser homem igual a ele é claro que chega à conclusão de que aquele homem passara a navalha no rosto ainda agora.
Precisava apontar para o autor daquele livro que arranquei da bocarra negra o seu erro de interpretação.
Acontece que aquele autor era famoso não somente por causa de seus contos curtos, suas ministórias. Sua fama sendo advinda também do fato desse autor ser um autor recluso.
Ficando portanto impedida qualquer visita da minha parte.
Sendo necessária então algum método diverso de comunicação.
Eu já tinha me decidido acerca do método de comunicação adequado ao caso, e estava absolutamente convencido da sua eficácia.
Andei de cômodo em cômodo fechando cada uma das janelas e apagando cada uma das lâmpadas, o sol já se pondo e portanto por toda parte a mesma penumbra do quarto menor. Naquele momento por causa do horário não fazia diferença não termos instalado nenhuma cortina ainda, mas eu me certificaria de que estivessem nas janelas já no dia seguinte. A minha cópia da chave de casa eu tinha deixado no claviculário com a certeza de que nunca mais pegaria nela.
Certeza também de que me tornando um recluso, mas um recluso tão recluso quanto o recluso autor daquele livro metade contos metade cartas, eu prescindiria de procurar por ele.
Porque ele é que procuraria por mim.
Portanto naturalmente eu me sentei no sofá.
Como um recluso escutaria, eu escutei os vizinhos. Não ouvi nada, como um recluso não ouviria. E se estivessem os vizinhos tentando me escutar, nada escutariam. Eu fazia um silêncio que só um recluso faz.
Quando minha esposa chegou em casa exausta, foi o tempo de eu explicar pra ela sobre a minha decisão e os meus motivos antes dela adormecer ali mesmo ainda vestida do trabalho. Fui acordando minha esposa lentamente, botei ela de pé e dei um banho nela. Massageei onde doía (tudo doía) até que ela dormisse novamente, e espiei a noite pela janela como um recluso espiaria, isso até que eu próprio cansasse e dormisse.
Na manhã seguinte dei continuidade à minha reclusão. Aproveitei minha novíssima situação pra por ordem naquela casa, abrindo cada caixa o mais silenciosamente possível, não somente para não alertar vizinho nenhum, mas também para não acordar minha esposa.
Quando ela acordou boa parte das caixas já estavam esvaziadas, achatadas e empilhadas num canto, seu conteúdo disposto separadinho pelo chão. Tomamos o nosso café da manhã tardio (isso umas onze horas, tendo sido ela quem foi à padaria comprar o pão e os frios, e o café propriamente dito fui eu quem fez) e nos beijamos e nos demos tchau, té mais tarde.
Ora organizava o que havia pra ser organizado, ora me voltava para as minhas demais atividades de recluso. Por exemplo me perguntar, será que alguém está me espiando? e procurar por possíveis espiões, para depois não me deparar com espião nenhum. O mais importante era mesmo assim não ter certeza de não haver espião nenhum.
Parte do que me incentivava a arrumar logo a casa era que se (não se, mas sim quando) era que quando o autor finalmente me visitasse o ambiente deveria estar apresentável e comfortável para conversarmos o que tínhamos de conversar sobre. A outra parte era um tédio de recluso novato.
Quando assim que ele chegasse eu logo apontaria o seu erro de interpretação. Eu mantinha por perto a todo momento a minha cópia daquele seu livro, na antecipação do evento da sua chegada. Abriria o livro na página correspondente ao problema e perguntaria você se recorda desta passagem? e é claro que ele se recordaria.
Eu deixaria bem mas bem claro mesmo a minha admiração pelas suas ministórias, o tempo todo reiterando a superioridade delas, e exemplicando com aquela experiência pela qual eu passara, largado pelos livros em que eu mais confiava mas só para depois ser salvo justamente por aquelas estórias tão pequeninas.
O autor não se importaria com ter a escrita corrigida por mim, e me agradeceria.
Estaríamos então livres para conversar sobre coisas mais prazerosas.
E também sobre coisas que ele desprezava.
Por exemplo aquele livro tão amado daquele autor tão amado.
Eu sei que certamente eu resistiria no início a desprezar aquela obra como o meu visitante desprezava. Mas não ficaria muito supreso se fosse afinal convencido. Desprezaríamos juntos.
Não demorou muito para que todas as caixas estivessem vazias, e tudo possível de ser posto em seu lugar estivesse de fato posto em seu lugar. Passei a esperar pela mobília que tínhamos comprado e que estava para chegar. Além das minhas atividades de recluso (eu ia alimentando minha onisciência das rotinas dos meus vizinhos, anotando os horários de fulano e sicrano fazeram tal e tal coisa.
Por não saber seus nomes anotava inicialmente velhote alto todo reto ou mãe do casal de gêmeos por exemplo, e caso entreouvisse um nome, tentaria correlacionar o nome entreouvido com os personagens no papel.)
Além das minhas atividades de recluso eu não fazia mais nada além de aguardar que chegasse a mobília que compramos.
Quando a casa estivesse verdadeiramente com cara de casa, e viesse o tal autor, muito provavelmente teríamos um diálogo como os personagens das ministórias dele tinham.
Ele diria — !!
— !!!!!!, diria eu.
— ?
— !, eu responderia, e então ele entraria e o que tinha que acontecer aconteceria.
Minha esposa me apoiava plenamente quanto à minha reclusão, e estava até satisfeita com os seus efeitos. A casa estava organizada como ela nunca imaginaria.
Eventualmente não havia móvel nenhum sendo aguardado, nem móvel nenhum sobrando pra ser montado. A casa estava apropriadamente preparada. Qualquer dia desses ele chegaria.
Enquanto isso eu ia acrescentando mais e mais à nossa conversa imaginária. Ao longo dela a nossa intimidade cresceria, a ponto de eu poder dizer coisas ainda mais perigosas sobre a escrita daquele autor do que a correção de antes.
Eu apontaria pro quanto que é demonstrável a preocupação com as sentenças que ele tinha quando escrevia, as linhas, era só ler a primeira parte daquele livro. Todavia, comparando as ministórias com as cartas, as linhas, tão bem traçadas naquelas ministórias tão encantadoras e de fato salvadoras, pareciam nas cartas umas linhas muito mal traçadas.
Esse último argumento eu estava desenvolvendo ainda quando ouvi baterem três vezes, batidas não na porta, mas na janela.
Foi um pouco como eu esperava.
— .
— !
— ?
— … !!
E abri a janela e ficamos juntos nós dois os reclusos.