Um conto de João Lucas Dusi
João Lucas Dusi (Curitiba, 1995) é autor do livro de contos O grito da borboleta (Penalux, 2019), redator dos jornais literários Cândido e Rascunho e criador da revista Madame Psicose. A narrativa “Kamikaze” faz parte de uma obra homônima que será publicada pela Penalux no segundo semestre de 2020.
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Kamikaze
No auge da narcose cocaínica, examino os pensamentos de Miyamoto Musashi. No momento exato em que o espadachim decepa a cabeça do herdeiro dos Yoshioka, deparo-me com um quadro em branco, salpicado de gotas vermelhas, e uma estranha presença sufocante. Um esboço de rosto simiesco me fita por um milésimo, olhos insanos e caninos agudos, deixando no ar uma angústia quase palpável. Enquanto a lâmina perpassa o pescoço da criança, sinto cada milímetro do pedaço de metal estraçalhar minha própria garganta. Engasgo-me com um jorro de sangue, até que a espada se desprende da carne e o deleite se esgota. Concluído o trabalho inicial do ceifador, que está prestes a enfrentar um clã inteiro sozinho, uma força inumana me arranca desse imaginário inóspito e me lança em rota de colisão com um caça Zero, três séculos depois, em uma manhã de 1941.
Na cabine claustrofóbica, um oriental mirrado tenta manter o controle de um avião baleado. Durante o treinamento de uma semana, aprendeu somente a dar partida e levantar voo. Não era do interesse do vice-almirante Takijiro Onishi (1891-1945) que os pilotos pudessem pousar as aeronaves, evitando qualquer possibilidade de captura e interrogatório, já que ao japonês ortodoxo a vergonha é mais assombrosa do que a morte. Avance quatro anos, após a derrocada do Terceiro Reich, e veja-o dilacerando a própria barriga com um pesado punhal de prata.
Na mente do piloto, segundos antes de ele se esmigalhar contra um Destroyer norte-americano, brotam imagens de belas moças nuas agitando flores, possivelmente lótus, festejando a bravura da força aérea japonesa. É como se, antes do fim, fosse importante que sua imaginação forjasse boas sensações. Ainda no delírio, o rapaz desiste do suicídio heroico e corre para os braços de sua namorada inexistente. Quando consegue alcançá-la, embalado pelas vaias de seus companheiros de exército, a figura se esfarela em seus braços e no horizonte desponta um gigantesco cogumelo radioativo, prenúncio ignorado, seguido de um tremor de terra que parte montanhas ao meio.
Anos depois, alguns sobreviventes da Segunda Guerra ainda juram ter identificado uma entidade antropomórfica pairando estática na fumaceira que tomou conta do céu. Ninguém levou a sério. O comentário que realmente se espalhou e é respeitado, no entanto, diz respeito a uma sensação maligna que apertou o coração do Ocidente naquele momento. Não se sabe dizer o porquê, e mesmo os jovens contemporâneos não têm coragem de contrapor essa versão dos fatos.
De volta à manhã fatídica, sigo guiado pelo vento divino. Canso-me da angústia do piloto delirante, na iminência da morte, e visito escombros naufragados. Os corpos, majoritariamente deformados, movem-se de acordo com a agitação marítima, acompanhando o ritmo dos caças que, na superfície, se explodem contra a base naval inimiga. O que me intriga é a disciplina incansável dessa potência do Eixo. Por um breve segundo, lamento o futuro de Hiroshima e Nagasaki.
Dominado pelo tédio, tento acessar a mente do Controlador, sedento por saber do porvir, e sou repelido por uma forte pulsão magnética. Antes de ceder, percebo que, assim como eu, ele deseja a extinção da espécie. Isso me basta. Desisto de examinar o futuro, tranquilizado, e me atenho novamente ao passado. Viajo para o Genocídio dos Hereros (1904-1907), no que hoje é a atual Namíbia, mas descubro que o assunto foi esgotado quando Thomas Pynchon publicou V.. Ainda foi possível sentir a energia do dentuço por lá, buscando o tom certo para seu romance de estreia. Não me atrevi a rever o encontro do Guardião da Chama com o lobo, muito menos pedir conselhos para Calvin Blacknesse.
Percebo que o próprio homem tem feito meu papel com maestria. Só para que minha participação não passe em branco, e que um último prazer não me seja relegado, assumo a condição de um moribundo maneta e me deixo afogar nos arredores de Pearl Harbor. Engulo alguns litros de diesel e pedaços de vísceras. Fecho os olhos, que são tanto meus quanto de todos os que foram trucidados na carnificina, e permito ao corpo afundar nonada. Compreendo a beleza do caos e meu despropósito no mundo.